5/03/2025

O solitário da cabana (Conto), de Figueiredo Pimentel


O SOLITÁRIO DA CABANA

Perto de Damasco, em miserável cabana, longe dos seus irmãos, no retiro e no silêncio, vivia solitário um piedoso monge.

Passava o dia a meditar nas leis de Deus, a criar penitências, a se impor jejuns, a procurar nos bons livros os melhores ensinamentos religiosos.

Um dia, numa página de um desses livros, julgou ver brilhando o olhar enraivecido do Senhor, e a angústia apoderou-se de sua alma.

A festa da Páscoa aproximava-se.

O religioso apressou-se em pôr na mesa o pão bento, esperando que um conviva viesse partilhá-lo, porque a lei sagrada diz: — Cumprirás os deveres da hospitalidade.

Ninguém veio. O anacoreta chorou, bateu no peito, ajoelhou-se à beira da porta. Depois saiu, para buscar um conviva a quem pudesse dar de comer e de beber.

Avistou um mendigo, que a custo caminhava, apoiado ao bordão, e convidou-o a entrar.

Aí apressou-se em servi-lo, deu-lhe a beber o seu melhor vinho e deitou-o no seu próprio leito.

No dia seguinte o velho preparou-se para partir, cheio de reconhecimento.

O monge fê-lo demorar-se, e disse:

— Viajante que o Céu me enviou, sê bastante generoso para passar mais uma noite e um dia em minha casa!

O mendigo, que tão bem tratado tinha sido, acedeu sem custo.

Mas, em meio da noite, o asceta levantou-se, caminhou para ele, armado de um grosso pau, e feriu-o sem dó nem piedade.

— Bárbaro! — exclamou o pobre velho, todo ensanguentado. — Que te fiz eu, para que assim pratiques tão feia ação, contra todos os deveres da hospitalidade?

— Perdão! Perdão! — disse-lhe o outro, com humildade.

Depois beijou--lhe as mãos, tratou-lhe das feridas, e velou solicitamente por ele, dia e noite.

O velho, tendo-se curado, devido a tantos desvelos e cuidados, dispôs-se a partir, mas o hóspede de novo falou:

— Viajante que o Céu me enviou sê bastante generoso para continuar em minha casa mais um dia e uma noite!

Na noite seguinte novamente, levantou-se e aproximou-se do leito do mendigo, desta vez armado com um machado, para matá-lo. O velho, tendo acordado em sobressalto, arrancou-lhe das mãos a arma assassina, e bradou-lhe:

— Que loucura é essa? Pedes a um estrangeiro para se sentar à tua mesa, depois o espancas, e ainda queres matá-lo?  

O solitário da cabana olhou-o amedrontado:

— Escuta e perdoa. O que fiz foi para obedecer a Lei Sagrada, que nos recomenda três deveres principais: praticar a hospitalidade, tratar dos enfermos, e enterrar os mortos. Entraste em minha casa, e eu satisfiz os deveres da hospitalidade. Mas não tinha doentes para curar, e por isso feri-te com um pau. Não tinha mortos para enterrar, e quis matar-te. Oh! desgraça! Sinto que a minha hora se aproxima, e não pude cumprir o último dos três mandamentos!

A essas palavras empalideceu, estremeceu e caiu.

Um Anjo desceu até junto dele, libertou-lhe a alma dos laços terrenos, e exclamou:

— Mortais insensatos! O Senhor escreveu Santas Leis no fundo dos corações, e vós as procurais nos livros obscuros! Correis em busca da luz Celeste que brilha sobre vossas cabeças...


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025. 

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