Perto de Damasco, em miserável
cabana, longe dos seus irmãos, no retiro e no silêncio, vivia solitário um
piedoso monge.
Passava o dia a meditar nas leis de
Deus, a criar penitências, a se impor jejuns, a procurar nos bons livros os
melhores ensinamentos religiosos.
Um dia, numa página de um desses
livros, julgou ver brilhando o olhar enraivecido do Senhor, e a angústia
apoderou-se de sua alma.
A festa da Páscoa aproximava-se.
O religioso apressou-se em pôr na
mesa o pão bento, esperando que um conviva viesse partilhá-lo, porque a lei
sagrada diz: — Cumprirás os deveres da hospitalidade.
Ninguém veio. O anacoreta chorou,
bateu no peito, ajoelhou-se à beira da porta. Depois saiu, para buscar um
conviva a quem pudesse dar de comer e de beber.
Avistou um mendigo, que a custo
caminhava, apoiado ao bordão, e convidou-o a entrar.
Aí apressou-se em servi-lo, deu-lhe
a beber o seu melhor vinho e deitou-o no seu próprio leito.
No dia seguinte o velho preparou-se
para partir, cheio de reconhecimento.
O monge fê-lo demorar-se, e disse:
— Viajante que o Céu me enviou, sê
bastante generoso para passar mais uma noite e um dia em minha casa!
O mendigo, que tão bem tratado
tinha sido, acedeu sem custo.
Mas, em meio da noite, o asceta
levantou-se, caminhou para ele, armado de um grosso pau, e feriu-o sem dó nem
piedade.
— Bárbaro! — exclamou o pobre
velho, todo ensanguentado. — Que te fiz eu, para que assim pratiques tão feia
ação, contra todos os deveres da hospitalidade?
— Perdão! Perdão! — disse-lhe o
outro, com humildade.
Depois beijou--lhe as mãos,
tratou-lhe das feridas, e velou solicitamente por ele, dia e noite.
O velho, tendo-se curado, devido a
tantos desvelos e cuidados, dispôs-se a partir, mas o hóspede de novo falou:
— Viajante que o Céu me enviou sê
bastante generoso para continuar em minha casa mais um dia e uma noite!
Na noite seguinte novamente,
levantou-se e aproximou-se do leito do mendigo, desta vez armado com um
machado, para matá-lo. O velho, tendo acordado em sobressalto, arrancou-lhe das
mãos a arma assassina, e bradou-lhe:
— Que loucura é essa? Pedes a um
estrangeiro para se sentar à tua mesa, depois o espancas, e ainda queres
matá-lo?
O solitário da cabana olhou-o
amedrontado:
— Escuta e perdoa. O que fiz foi
para obedecer a Lei Sagrada, que nos recomenda três deveres principais:
praticar a hospitalidade, tratar dos enfermos, e enterrar os mortos. Entraste
em minha casa, e eu satisfiz os deveres da hospitalidade. Mas não tinha doentes
para curar, e por isso feri-te com um pau. Não tinha mortos para enterrar, e
quis matar-te. Oh! desgraça! Sinto que a minha hora se aproxima, e não pude
cumprir o último dos três mandamentos!
A essas palavras empalideceu,
estremeceu e caiu.
Um Anjo desceu até junto dele,
libertou-lhe a alma dos laços terrenos, e exclamou:
— Mortais insensatos! O Senhor
escreveu Santas Leis no fundo dos corações, e vós as procurais nos livros
obscuros! Correis em busca da luz Celeste que brilha sobre vossas cabeças...
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
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