5/03/2025

Os três cabelos do diabo (Conto), de Figueiredo Pimentel


OS TRÊS CABELOS DO DIABO

Zebedeu nasceu com dentes — uma dentadura completa, perfeita e igual. As “comadres” disseram que havia de ser muitíssimo feliz; e uma delas, que passava por feiticeira, profetizou o seu casamento com a princesa, filha do imperador do país, quando completasse quinze anos.

O monarca, passando casualmente pela vila, ouviu a conversa e os comentários. Ignorante e supersticioso, acreditou no vaticínio da velha e quis empregar todos os esforços para que aquilo se não realizasse.

Viajava incógnito, e assim pode apresentar-se, sem ser conhecido na choupana dos pobres camponeses. Dizendo-se negociante, propôs aos pais do recém-nascido tomar conta da criancinha e levá-la consigo. Prometeu adotá-la, pois não tinha filhos, legando-lhe toda a sua fortuna, quando morresse, e encarreirando-o logo que chegasse à idade precisa.

Soube usar de tal linguagem, conversa tão insinuante e habilmente, que os crédulos aldeões se deixaram influenciar, cederam, e confiaram-lhe o filhinho. O imperador despediu-se, levando o pequerrucho.

Chegando fora da vila, meteu-o numa caixa e atirou-o n’água, com tenção de o afogar, para que o prognóstico da bruxa se não realizasse.

Em vez de ir ao fundo, a caixa flutuou, até parar de encontro ao açude de um moinho.

O moleiro, vendo o fardo, apanhou-o, na esperança de encontrar algum tesouro. Admirou-se, quando viu aquele meninozinho tão bonito e esperto e, como não tinha filhos, adotou-o com grande satisfação de sua mulher.

Zebedeu cresceu, muito bem tratado, por entre os desvelos e carinhos dos seus pais adotivos.

***

Meses depois de haver ele completado quinze anos, o imperador, fugindo à chuva, abrigou-se no moinho. Enquanto esperava que a tempestade acalmasse, começou a conversar e perguntou se o mocinho era filho deles.

A mulher contou a história do enjeitado.

O soberano, vendo que havia falhado a sua primeira empresa, para fazê-lo desaparecer, lembrou-se de executar outro plano. Escreveu uma carta à imperatriz, ordenando-lhe que mandasse decapitar imediatamente o portador. Em seguida pediu ao moleiro que deixasse o rapaz levar a carta.

Zebedeu partiu, mas, não sabendo bem o caminho, perdeu-se no mato, indo parar a uma casinha habitada por uma velha.

Essa mulher, de muito bom coração, ouviu-o contar que se perdera. Avisou-o de que a casa onde se achava era um covil de ladrões, e que o matariam com certeza se o encontrassem.

Ele, porém, era destemido e, como se achasse em extremo fatigado, não fez caso e deitou-se.

Pelo meio da noite entraram os salteadores, e a velha contou-lhes quem era o portador da carta para a imperatriz.

O chefe dos bandidos teve curiosidade de saber o que continha a correspondência, e abriu-a. Indignado ao ver que o monarca mandava cortar a cabeça do pobre moço, lembrou-se de fazer uma partida ao malvado.

Imitou a letra de Sua Majestade, e escreveu outra carta, ordenando à imperatriz que casasse a princesa com o portador.

Zebedeu partiu pela madrugada sem desconfiar de coisa alguma, e chegou ao palácio.

A soberana admirou-se da missiva, mas cumpriu a ordem, acostumada como estava a obedecer sem discussão. A princesa Cecília casou-se com o enjeitado, na capela imperial.

Quando o imperador chegou, ficou aflitíssimo, mas viu que a culpa não era nem do moço nem da imperatriz. Entretanto, como se não podia resolver a aceitar por genro um valdevinos, sem eira nem beira, disse-lhe:

— Para eu consentir que continues a viver com minha filha, é preciso ires ao inferno e trazeres três fios de cabelo do diabo. Se nos trouxeres, serás príncipe.

O rapaz não teve medo e partiu.

* * *

Na manhã seguinte, começou a jornada. Depois de andar muitos dias, chegou a uma grande cidade.

À porta principal perguntou-lhe uma sentinela que ofício tinha ele e o que sabia fazer

— Tudo... respondeu o moço.

— Então faça o favor de explicar por que é que a fonte do nosso mercado, que antigamente jorrava leite, agora nem sequer deita água...

— Espere. Quando voltar, di-lo-ei.

Continuou a jornadear, e chegou a outra cidade, onde também encontrou uma sentinela que lhe fez a mesma pergunta.

— Tudo!... respondeu ele, como da primeira vez.

— Então, faça o favor de explicar por que é que a árvore grande dos jardins reais que antigamente dava frutos de ouro, agora nem sequer tem folhas...

— Espere. Quando voltar, di-lo-ei.

Prosseguiu no caminho e chegou a um rio que era preciso atravessar.

O barqueiro, do mesmo modo que as duas sentinelas, inquiriu do seu modo de vida e do que sabia fazer.

O moço respondeu-lhe ainda da mesma forma, e o canoeiro falou-lhe:

— Então, faça o favor de explicar por que é que hei de viver eternamente neste posto, sem nunca ser rendido...

— Espere. Quando voltar di-lo-ei.

***

Tendo atravessado o rio, encontrou finalmente a porta do inferno. O diabo não estava em casa, e viu apenas a governante.

O rapaz contou-lhe toda a sua história. A velhinha, condoendo-se da sua sorte, prometeu servi-lo, arranjando os três fios de cabelo, e fazendo com que Satanás respondesse às três perguntas que desejava saber.

Quando Lúcifer chegou, o mancebo escondeu-se. Pouco depois o diabo dormia profundamente no regaço da velha, que, como de costume, começou a lhe catar a cabeça.

A governante arrancou-lhe um fio de cabelo.

— Ai — gemeu ele. — Que estás a fazer?

— Nada! Tive um sonho mau, e agarrei-o pelos cabelos.

— Que foi que sonhaste?  

— Sonhei que a fonte do mercado de uma cidade, que antigamente jorrava leite, agora secou de todo.

Satanás pôs-se a rir.

— Isso é verdade. Existe um sapo debaixo da pedra. Se o matarem, a fonte correrá outra vez.

A velha continuou a catá-lo, e ele adormeceu. Então arrancou-lhe segundo fio.

— Ai — gritou. — Sonhaste outra vez?  

— Sim. Sonhei que num jardim real há uma árvore, outrora carregada de frutos de ouro, e que agora está sem folhas.

— É porque há um camundongo que lhe rói a raiz. Se o matarem, a árvore reverdecerá; do contrário, acabará por morrer inteiramente.

Pela terceira vez, Lúcifer dormiu. A governante, passado algum tempo, tirou-lhe o outro fio, o último.

O diabo, como das outras vezes, despertou com a dor.

— Com efeito! Queres porventura fazer-me careca... Não acabas com os teus sonhos?!...

— Não sei o que é isso, mas o fato é que sonhei com um barqueiro que se queixava de andar eternamente a passar gente de uma para outra margem do rio, sem ser substituído.

Satanás riu-se gostosamente:

— É por ser tolo. A primeira pessoa que lhe aparecer, pedindo passagem, não tem mais que lhe abandonar os remos, e pôr-se ao fresco. O outro não terá remédio senão ficar no seu lugar.

Zebedeu ouviu tudo quanto queria saber, recebeu os três fios de cabelo, agradecendo muito à velha governante, e voltou para o império do seu sogro.

Caminhou pela mesma estrada percorrida, e ensinou o barqueiro e às duas sentinelas o que desejavam saber. Cada um deles deu-lhe um presente valioso, e o venturoso rapaz chegou rico e satisfeito ao palácio.

O imperador cumpriu a palavra, e fê-lo príncipe, consentindo que ele vivesse com sua filha.

Mas, como era um monarca avarento e ambicioso, quis saber em que sítio o genro havia achado as riquezas que trazia.

— Apanhei-as na margem oposta de um rio que atravessei. É a areia da praia.

— E eu posso ir buscá-la?  

— Quanta quiser, meu sogro. Há de achar um barqueiro; chame-o, e ele passá-lo-á no mesmo instante.

O avaro imperador empreendeu a viagem. Chegando ao ponto que lhe tinha ensinado o moço, chamou o canoeiro que o fez entrar.

Logo que chegaram ao outro lado, o barqueiro abandonou-lhe os remos, e foi-se embora.

O imperador ficou sendo barqueiro, para seu castigo, sendo provável que ainda lá esteja, pois ninguém o foi substituir.



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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.

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