Zebedeu nasceu com dentes — uma
dentadura completa, perfeita e igual. As “comadres” disseram que havia de ser
muitíssimo feliz; e uma delas, que passava por feiticeira, profetizou o seu
casamento com a princesa, filha do imperador do país, quando completasse quinze
anos.
O monarca, passando casualmente
pela vila, ouviu a conversa e os comentários. Ignorante e supersticioso,
acreditou no vaticínio da velha e quis empregar todos os esforços para que
aquilo se não realizasse.
Viajava incógnito, e assim pode
apresentar-se, sem ser conhecido na choupana dos pobres camponeses. Dizendo-se
negociante, propôs aos pais do recém-nascido tomar conta da criancinha e
levá-la consigo. Prometeu adotá-la, pois não tinha filhos, legando-lhe toda a
sua fortuna, quando morresse, e encarreirando-o logo que chegasse à idade
precisa.
Soube usar de tal linguagem,
conversa tão insinuante e habilmente, que os crédulos aldeões se deixaram
influenciar, cederam, e confiaram-lhe o filhinho. O imperador despediu-se,
levando o pequerrucho.
Chegando fora da vila, meteu-o numa
caixa e atirou-o n’água, com tenção de o afogar, para que o prognóstico da
bruxa se não realizasse.
Em vez de ir ao fundo, a caixa
flutuou, até parar de encontro ao açude de um moinho.
O moleiro, vendo o fardo,
apanhou-o, na esperança de encontrar algum tesouro. Admirou-se, quando viu aquele
meninozinho tão bonito e esperto e, como não tinha filhos, adotou-o com grande
satisfação de sua mulher.
Zebedeu cresceu, muito bem tratado,
por entre os desvelos e carinhos dos seus pais adotivos.
***
Meses depois de haver ele
completado quinze anos, o imperador, fugindo à chuva, abrigou-se no moinho.
Enquanto esperava que a tempestade acalmasse, começou a conversar e perguntou
se o mocinho era filho deles.
A mulher contou a história do
enjeitado.
O soberano, vendo que havia falhado
a sua primeira empresa, para fazê-lo desaparecer, lembrou-se de executar outro
plano. Escreveu uma carta à imperatriz, ordenando-lhe que mandasse decapitar
imediatamente o portador. Em seguida pediu ao moleiro que deixasse o rapaz
levar a carta.
Zebedeu partiu, mas, não sabendo
bem o caminho, perdeu-se no mato, indo parar a uma casinha habitada por uma
velha.
Essa mulher, de muito bom coração,
ouviu-o contar que se perdera. Avisou-o de que a casa onde se achava era um
covil de ladrões, e que o matariam com certeza se o encontrassem.
Ele, porém, era destemido e, como
se achasse em extremo fatigado, não fez caso e deitou-se.
Pelo meio da noite entraram os
salteadores, e a velha contou-lhes quem era o portador da carta para a imperatriz.
O chefe dos bandidos teve
curiosidade de saber o que continha a correspondência, e abriu-a. Indignado ao
ver que o monarca mandava cortar a cabeça do pobre moço, lembrou-se de fazer
uma partida ao malvado.
Imitou a letra de Sua Majestade, e
escreveu outra carta, ordenando à imperatriz que casasse a princesa com o
portador.
Zebedeu partiu pela madrugada sem
desconfiar de coisa alguma, e chegou ao palácio.
A soberana admirou-se da missiva,
mas cumpriu a ordem, acostumada como estava a obedecer sem discussão. A
princesa Cecília casou-se com o enjeitado, na capela imperial.
Quando o imperador chegou, ficou
aflitíssimo, mas viu que a culpa não era nem do moço nem da imperatriz.
Entretanto, como se não podia resolver a aceitar por genro um valdevinos, sem
eira nem beira, disse-lhe:
— Para eu consentir que continues a
viver com minha filha, é preciso ires ao inferno e trazeres três fios de cabelo
do diabo. Se nos trouxeres, serás príncipe.
O rapaz não teve medo e partiu.
* * *
Na manhã seguinte, começou a
jornada. Depois de andar muitos dias, chegou a uma grande cidade.
À porta principal perguntou-lhe uma
sentinela que ofício tinha ele e o que sabia fazer
— Tudo... respondeu o moço.
— Então faça o favor de explicar
por que é que a fonte do nosso mercado, que antigamente jorrava leite, agora
nem sequer deita água...
— Espere. Quando voltar, di-lo-ei.
Continuou a jornadear, e chegou a
outra cidade, onde também encontrou uma sentinela que lhe fez a mesma pergunta.
— Tudo!... respondeu ele, como da
primeira vez.
— Então, faça o favor de explicar
por que é que a árvore grande dos jardins reais que antigamente dava frutos de
ouro, agora nem sequer tem folhas...
— Espere. Quando voltar, di-lo-ei.
Prosseguiu no caminho e chegou a um
rio que era preciso atravessar.
O barqueiro, do mesmo modo que as
duas sentinelas, inquiriu do seu modo de vida e do que sabia fazer.
O moço respondeu-lhe ainda da mesma
forma, e o canoeiro falou-lhe:
— Então, faça o favor de explicar
por que é que hei de viver eternamente neste posto, sem nunca ser rendido...
— Espere. Quando voltar di-lo-ei.
***
Tendo atravessado o rio, encontrou
finalmente a porta do inferno. O diabo não estava em casa, e viu apenas a
governante.
O rapaz contou-lhe toda a sua
história. A velhinha, condoendo-se da sua sorte, prometeu servi-lo, arranjando os
três fios de cabelo, e fazendo com que Satanás respondesse às três perguntas
que desejava saber.
Quando Lúcifer chegou, o mancebo
escondeu-se. Pouco depois o diabo dormia profundamente no regaço da velha, que,
como de costume, começou a lhe catar a cabeça.
A governante arrancou-lhe um fio de
cabelo.
— Ai — gemeu ele. — Que estás a
fazer?
— Nada! Tive um sonho mau, e
agarrei-o pelos cabelos.
— Que foi que sonhaste?
— Sonhei que a fonte do mercado de
uma cidade, que antigamente jorrava leite, agora secou de todo.
Satanás pôs-se a rir.
— Isso é verdade. Existe um sapo
debaixo da pedra. Se o matarem, a fonte correrá outra vez.
A velha continuou a catá-lo, e ele
adormeceu. Então arrancou-lhe segundo fio.
— Ai — gritou. — Sonhaste outra vez?
— Sim. Sonhei que num jardim real
há uma árvore, outrora carregada de frutos de ouro, e que agora está sem folhas.
— É porque há um camundongo que lhe
rói a raiz. Se o matarem, a árvore reverdecerá; do contrário, acabará por
morrer inteiramente.
Pela terceira vez, Lúcifer dormiu.
A governante, passado algum tempo, tirou-lhe o outro fio, o último.
O diabo, como das outras vezes,
despertou com a dor.
— Com efeito! Queres porventura
fazer-me careca... Não acabas com os teus sonhos?!...
— Não sei o que é isso, mas o fato
é que sonhei com um barqueiro que se queixava de andar eternamente a passar
gente de uma para outra margem do rio, sem ser substituído.
Satanás riu-se gostosamente:
— É por ser tolo. A primeira pessoa
que lhe aparecer, pedindo passagem, não tem mais que lhe abandonar os remos, e
pôr-se ao fresco. O outro não terá remédio senão ficar no seu lugar.
Zebedeu ouviu tudo quanto queria
saber, recebeu os três fios de cabelo, agradecendo muito à velha governante, e
voltou para o império do seu sogro.
Caminhou pela mesma estrada
percorrida, e ensinou o barqueiro e às duas sentinelas o que desejavam saber.
Cada um deles deu-lhe um presente valioso, e o venturoso rapaz chegou rico e
satisfeito ao palácio.
O imperador cumpriu a palavra, e
fê-lo príncipe, consentindo que ele vivesse com sua filha.
Mas, como era um monarca avarento e
ambicioso, quis saber em que sítio o genro havia achado as riquezas que trazia.
— Apanhei-as na margem oposta de um
rio que atravessei. É a areia da praia.
— E eu posso ir buscá-la?
— Quanta quiser, meu sogro. Há de
achar um barqueiro; chame-o, e ele passá-lo-á no mesmo instante.
O avaro imperador empreendeu a
viagem. Chegando ao ponto que lhe tinha ensinado o moço, chamou o canoeiro que
o fez entrar.
Logo que chegaram ao outro lado, o
barqueiro abandonou-lhe os remos, e foi-se embora.
O imperador ficou sendo barqueiro,
para seu castigo, sendo provável que ainda lá esteja, pois ninguém o foi
substituir.
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
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