ALÉM DA TAPROBANA
“As armas e os Barões assinalados
Que da Ocidental praia Lusitana
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram...”
CAMÕES (Os Lusíadas).
Estava
eu lendo Camões quando o telefone tocou. Era uma voz feminina. Falava baixinho
e dizia que tinha algo muito importante para dizer e me implorava para que
apenas a escutasse. Acrescentou ainda rindo, que não queria conselhos nem
dinheiro emprestado, nem qualquer outra coisa.
—
Apenas me escute — repetia agora com audível apreensão, como se estivesse
acabado de encontrar o gigante Adamastor.
Neste
momento estava eu além da Taprobana, seguindo por mares nunca dantes navegados
e já chegando ao Cabo das Tormentas. Um tanto confuso e surpreso, indaguei do
seu nome, ao que ela disse que eu saberia mais adiante pelo próprio teor da
conversa, e instava que contava muito com minha compreensão, suplicando para
que não desligasse o telefone, pois se tratava de algo do meu interesse, e me
pedia antecipadas desculpas pelo incômodo, repetindo que assim procedia apenas
por se tratar de um assunto de excepcional relevância.
Tentei
acalmá-la, dizendo que por mim estava tudo bem, e fiz-me envolver pela
misteriosa voz desta musa secreta, prontificando-me a ser todo ouvidos. Ela me
agradeceu a paciência, insistindo mais uma vez para que não fosse interrompida.
Dito
isso, principiou a falar...
Há
vinte anos que nos conhecemos, quando ainda éramos estudantes na Faculdade de
Letras. Isso já faz mais de vinte anos. Lembro-me de você como se fosse hoje.
Era magro, tinha um nariz fino, os cabelos lisos e longos e um par de olhos
penetrantes como punhais. Ah, quanto tempo!
Lembra-se
daquele dia em que nós dois, ambos eufóricos, declamávamos Os Lusíadas em voz alta lá na Praça? Você lia uma estrofe e eu
outra, até nos cansarmos de tanto ler. Depois íamos para a lanchonete e nos
esquecíamos das aulas. Ah, doces lembranças!
Você
me chamava de Terpsícore, pois gostava de me ver dançar, e dançávamos juntos, e
ríamos juntos e nos transbordávamos de louca paixão. Então você me beijava
deliciosamente, e me abraçava cheio de ternura, e me recitava poemas, e me
prometia eterno amor. Queria tanto que se lembrasse desses nossos momentos!...
Por
fim, trago à memória o nosso último encontro. Lembra? Você estava ansioso e
confuso, pois era seu último dia na faculdade. Notei ainda que se encontrava um
tanto melancólico, embora nada dissesse sobre a razão daquela tristeza. De
minha parte, estava transbordando de felicidade por sua causa. Ah, quanta
expectativa nutria dentro de mim!...
Chorei
muito quando me disse que iria visitar seus pais. Não obstante me afiançasse
que voltaria com brevidade, ainda assim chorei... Sim, chorei, chorei muito...
Alguma coisa dentro de mim parecia dizer que era o fim de tudo, que depois
daquele dia não nos veríamos mais. E foi com esse pressentimento ruim que nos
despedimos. Você lá se foi para nunca mais voltar, nem sequer me deu notícias.
Nunca mais. Por quê? Isso eu jamais soube.
Há
dois meses encontrei por acaso uma de nossas antigas amigas, que deu notícias
suas e me concedeu o seu telefone. Queria que soubesse que, passados vinte
longos anos, ainda o amo profundamente, e talvez até mais do que antes. Se isso
é loucura, vá lá, que seja! O fato é que o amo. Sim, o amo como se o tempo não
tivesse passado... Mas, qual a relevância dessa minha absurda confissão? Bem,
estou desenganada pela Medicina. Tenho ainda alguns meses de vida, talvez uns
dois ou três, foi o que me disseram. Quisera muito vê-lo antes de partir. Esse
é meu anseio supremo. Sei que deve ter suas ocupações, mas...
Interrompi
a conversa prometendo vê-la imediatamente ainda no dia seguinte. Ela me
agradeceu chorando...
E
no dia seguinte lá fui navegando na minha triste nau a ver minha antiga
Terpsícore... Será que dançava ainda? Será que ainda lia o grande bardo de
Portugal?
Estava
tomado de estranhos sentimentos. O remorso corroia profundamente minha alma, e
cheguei a sentir vergonha de mim mesmo. Nada podia justificar tão prolongado silêncio.
Sentia-me como se estivesse navegando em rota oposta aos dos lusíadas, indo de
Melinde à Mombaça. O Velho do Restelo parecia me interpelar, tentando
convencer-me a não prosseguir viagem, e me acusava de vil infâmia. Por um breve
instante pensei em desistir daquele louco intento, em abster-me de vê-la... No
entanto, após ferrenha luta comigo mesmo, triunfei sobre o vil tentador e
seguir avante com o socorro das musas.
Ela
me esperava à porta. Estava linda, apesar dos seus quarenta e poucos anos de idade.
Trajava um vestido longo e todo azul. Não se mostrava triste. Ao contrário,
estava radiante e parecia espargir luz pelos olhos, e sorria como uma noiva que
ansiosa aguarda o amado no altar.
Entrei.
Havia flores por toda a casa, flores de vários tipos e matizes. Súbito passei a
escutar uma deliciosa melodia. Era o Danúbio
Azul. Então de repente ela veio até mim dançando freneticamente, e girava
de um a outro lado, e erguia as mãos para o alto, e suspirava, e murmurava
expressões de amor... Sem dizer nada, sem lembrar o passado, sem pedir
desculpas, tomei-a pela cintura, beijai-a escandalosamente, e dançamos como
dois jovens bailarinos, e nos amamos pela noite adentro...
Pela manhã acordei como se estivesse na Ilha dos Amores. Ela, porém, já não estava mais ali: tinha ido ao Concílio dos Deuses...
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