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9/08/2019

Sud Mennucci e a Educação Brasileira (Artigo)


Sud Mennucci e a Educação Brasileira

O livro “A Crise brasileira da Educação”, de Sud Mennucci, é o  mais claro, o mais lógico, o mais  prático. É também o mais original  no medo de encarar o problema e  na solução que propõe. Principia  o autor tratando da crise universal da educação. A ciência transformou as condições da vida ocidental. Todos os valores de tempo e distância passaram a ter outra significação. A escola antiga ficou fora de fase, atrasou-se tanto mais quanto já não encontra o apoio que sempre lhe deram a família de tipo romano e a oficina. O trabalho moderno é outro; outras são as condições da família em que o pátrio poder já não tem a extensão de outrora, em que a mulher vive e trabalha fora do lar. O surto da "escola nova" corresponde a tais circunstâncias. A escola nova quer ser de preferência internato, quer instalar-se em zona de campo, valendo-se do ar puro, do sol e da paisagem. Ela faz do treino sensorial o expediente máximo da sua pedagogia e se organiza com a preocupação do estudo psicológico e fisiológico do educando, do seu gênio, das suas aptidões, das suas preferências, dos seus interesses imediatos. Ela procura reunir tudo quanto cabia família e à oficina, complemento histórico dos antigos centros de educação. Condicionado  o sistema educativo de cada época  pela organização do trabalho então  dominante, tivemos, no Brasil, o que o autor chama "saldo negativo" proporcionado pelo trabalho escravo. No segundo capítulo do seu livro o autor demonstra que a mentalidade nacional foi influenciada pelo preconceito do trabalho manual. Veio a república e com ela a obra de reconstrução educativa. Mas foram copiados os modelos clássicos, inspirados no que se via nos países industriais da Europa. O país ansiava por uma legislação educativa essencialmente rural; deram-lhe escolas urbanistas. E quando pensaram em fundar escolas rurais foi bem pior. Fizeram-se escolas de cidade localizadas no campo. Alberto Torres por isso mesmo escreveu que a nossa instrução pública era um sistema de canais de êxodo da mocidade do campo para as cidades e da produção para o parasitismo. Em vez de promover o progresso do campo, a escola oficial despovoa as lavouras. Delas o filho do lavrador não sai aperfeiçoado lavrador que o pai deseja... Passa depois o autor a definir o que lhe parece deva ser a escola brasileira, sempre de acordo com o ambiente regional. Só com a segmentação dos latifúndios, sustenta ele, será possível o nosso verdadeiro surto educativo. O êxodo dos campos desaparecerá. A posse da terra seria capaz de anular os resíduos psíquicos da velha prevenção contra os trabalhos de amanho da lavoura.

Como retalhar os latifúndios, uma vez que a solução russa, violenta e imprópria, ou a romaica, baseada no consenso dos possuidores, ou a francesa, baseada na herança — não podem ser propostas?  A solução de Sud Mennucci é a campanha pelas oportunidades de repartir a terra. Juntem-se a União, os Estados, os Municípios, às associações particulares nesse objetivo. "Conheço clubes comercias, escreve o autor, para inúmeros fins, que entregam aos seus prestamistas as coisas mais disparatadas que eles possam desejar. Nunca ouvi falar de nenhum que sorteasse glebas de terras para o estabelecimento de uma família... Sei de homens pois que deixam avultadas quantias para aumentar patrimônios de todos os gêneros. Nunca me constou... que alguém houvesse doado às casas de caridade grandes lavouras, sob a condição de apurar o espólio mediante a venda a longos prazos desses terrenos a numerosas famílias de caboclos...”

Depois o autor considera o lema do professor: "O professor não gosta do campo, porque o campo é atrasado... mas o campo não progride porque o professor não lhe dá o seu entusiasmo”. Se ele foi feito para a cidade...

O sistema de Sud Mennucci para divulgar o ensino primário Brasil é, destarte, um todo harmônico, antes social que pedagógico, cheio de originalidade e clareza. A posse da terra, a conquista do meio às comodidades humanas, a formação do professor são as faces mais salientes do seu edifício. "No terreno da prática, escreve Sud Mennucci, a primeira dádiva a conceder ao meio rural seria destruir-lhe o isolamento. Um simples aparelho de rádio obtido das administrações públicas ou mediante subscrição popular, colocado no ponto central do bairro, dar-lhe-á o informante minucioso e quotidiano das coisas acontecimentos da terra, ao mesmo tempo o recreio costumeiro dos habitantes... O rádio substitui o jornal com vantagem, — alcança a população analfabeta, chega na mesma hora aos pontos onde os jornais levam dias a chegar; junto com o rádio, a energia elétrica.

Sud Mennucci no seu livro, indica, pois, de maneira realmente superior, todas as condições sociais em que se define o problema considerado. E indica, com clareza, simplicidade, entusiasmo, de maneira prática, soluções modernas e possíveis.”

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Revista Fon-Fon, 19 de agosto de 1933.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

Acerca de "A Crise Brasileira de Educação" (Resenha)



Acerca de "A Crise Brasileira de Educação", de Sud Mennucci

O livro de Sud Mennucci é o mais claro, o mais lógico, o mais prático. É também o mais original no modo de encarar o problema e na solução que propõe. Principia o autor tratando da crise universal da educação. A ciência transformou as condições da vida ocidental. Todos os valores de tempo e distância passaram a ter outra significação. A escola antiga ficou fora de fase, atrasou-se tanto mais quanto já não encontra o apoio que sempre lhe deram a família de tipo romano e a oficina. O trabalho moderno é outro; outras são as condições da família em que o pátrio poder já não tem a extensão de outrora, em que a mulher vive e trabalha fora do lar. O surto da “escola nova” corresponde a tais circunstâncias. A escola nova quer ser de preferência internato, quer instalar-se em zona de campo, valendo-se do ar puro, do sol e do cenário. Ela faz do treino sensorial o expediente máximo da sua pedagogia e se organiza com a preocupação do estudo psicológico e fisiológico do educando, do seu gênio, das suas aptidões, das suas preferências, dos seus interesses imediatos. Ela procura reunir tudo quanto cabia à família e à oficina, complemento histórico dos antigos centros de educação. Condicionado o sistema educativo de cada época pela organização do trabalho então dominante, tivemos no Brasil, o que o autor chama “saldo negativo” proporcionado pelo trabalho escravo. No segundo capítulo do seu livro o autor demonstra que a mentalidade nacional foi influenciada pelo preconceito do trabalho manual. Veio a república e com ela a obra de reconstrução educativa. Mas foram copiados os modelos clássicos, inspirados no que se via nos países industriais da Europa. O país ansiava por uma legislação educativa essencialmente rural; deram-lhe escolas urbanistas. E quando pensaram em fundar escolas rurais foi pior. Fizeram-se escolas de cidade localizadas no campo. Alberto Torres por isso mesmo escreveu que a nossa instrução pública era um sistema de canais de êxodo da mocidade do campo para as cidades e da produção para o parasitismo. Em vez de promover o progresso do campo, a escola oficial despovoa as lavouras. Delas o filho do lavrador não sai aperfeiçoado lavrador que o pai deseja...  Passa depois o autor a definir o que lhe parece deva ser a escola brasileira, sempre de acordo com o ambiente regional. Só com a segmentação dos latifúndios, sustenta ele, será possível o nosso verdadeiro surto educativo. O êxodo dos campos desaparecerá. A posse da terra seria capaz de anular os resíduos psíquicos da velha prevenção contra os trabalhos de amanho da lavoura.

Como retalhar os latifúndios, uma vez que a solução russa, violenta e imprópria, ou a rumáica, baseada no consenso dos possuidores, ou a francesa, baseada na herança — não podem ser propostas? A solução de Sud Mennucci é a campanha pelas oportunidades de repartir a terra. Juntem-se a União, os Estados, os Municípios, às Associações particulares nesse objetivo. “Conheço clubes comerciais, escreve o autor, para inúmeros fins, que entregam aos seus prestamistas as coisas mais disparatadas que eles possam desejar. Nunca ouvi falar de nenhum que sorteasse glebas de terras para o estabelecimento de uma família...  Sei de homens pios que deixam avultadas quantias para aumentar patrimônios de todos os gêneros...  Nunca me constou...  que alguém houvesse doado a casas de caridade grandes lavouras, sob a condição de apurar o espólio mediante a venda a longos prazos desses terrenos a numerosas famílias de caboclos...

Depois o autor considera o problema do professor. “O professor não gosta do campo, porque o campo é atrasado...  mas o campo não progride porque o professor não lhe dá o seu entusiasmo”. Se ele foi feito para a cidade...

O sistema de Sud Mennucci para divulgar o ensino primário no Brasil é, destarte, um todo harmônico, antes social que pedagógico, cheio de originalidade e de clareza. A posse da terra, a conquista do meio às comodidades humanas, a formação do professor são as faces mais salientes do seu edifício. “No terreno da prática, escreve Sud Mennucci, a primeira dádiva a conceder ao meio rural seria destruir-lhe o isolamento...  Um simples aparelho de rádio obtido das administrações públicas ou mediante subscrição popular, colocado no ponto central do bairro, dar-lhe-á o informante minucioso e quotidiano das coisas e acontecimentos da terra, ao mesmo tempo o recreio costumeiro dos habitantes —O rádio substitui o jornal com vantagem, — Sud Mennucci é jornalista...  — alcança a população analfabeta, chega na mesma hora aos pontos onde os jornais levam dias a chegar; junto com o rádio, a energia elétrica”.

Sud Mennucci no seu livro, indica, pois, de maneira realmente superior, todas as condições sociais em que se define o problema considerado. E indica, com clareza, simplicidade, entusiasmo, de maneira prática, soluções modernas e possíveis. Deve receber o primeiro prêmio Alves.

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ROQUETE PINTO, relator
MIGUEL COUTO
ALOYSIO DE CASTRO.

12/28/2018

Alma frívola (Conto), de Sud Mennucci



Alma frívola
No dia seguinte o Álvaro se achava na casa do capitão Joaquim da Mota, à espera dos autos que os havia, a ele e mais a comitiva, de conduzir à checara “Celeste”.
A companhia era a mesma do jantar do dia anterior.
D. Laura, à chegada do professor, reclamou-o. Subiu no automóvel com ele e só permitiu a entrada de três petizes, dos quais o mais velho não contava mais de sete anos.
E, enquanto o veículo corria sobre o pedregulho da alameda ensombrada, que conduzia à quinta, ela foi-lhe dizendo um sem número de frases excitantes.
Eles haviam ficado os últimos na fila dos automóveis e, para evitar a poeira da estrada, distanciavam-se muito do último que ia na frente.
— Eu gosto das almas como o senhor, solitárias e recolhidas, que mesmo nos momentos de grande alegria, não se iludem e não deixam nunca de ser o que são.
— Más eu não sou absolutamente hipócrita e a senhora está me emprestando; essa qualidade, exclamou, num riso largo, o mestre-escola.
— Não torça, Álvaro. O senhor entende-me bastante, para querer mangar comigo.
— Mangar com uma tão linda mulher? Mas seria ignóbil da minha parte. Que quer que lhe diga? Deixemos de casos intrincados de almas alheias, especialmente da minha, que escapa à minha própria análise. Falemos mal dos outros. Não acha que seja um bom emprego?
— Por exemplo, riu maliciosamente D. Laura, falemos mal de sua namorada.
— Pois seja dela.
— Dir-me-á quem é?
— Para que, se isso não passa de um namorico insignificante, em que eu sou o provocado?
— É bonita?
— É. A figura que, ontem, o Sebastião usou a respeito dela é exata: é linda como unia boneca de “biscuit”. Ou antes... não, porque as bonecas são, em geral feias. É bonita mas...
— Mas.... indagou a mulher ansiosa, mas com ar distraído, de quem quer afetar indiferença.
— Mas não me agrada.
— Mas não a deixa.
— Minha senhora, eu não posso recusar o namorico a uma menina chique. Iria contra as regras do bom tom.
— Que o senhor aliás não segue. Então para um sentimento que não tem? É ser mau.
— Não é. É mais por indolência, porque afinal o admirado sou eu e a enamorada é ela.
D. Laura riu, chamando-lhe extraordinário.
— Nem tanto quanto julga. Por exemplo, eu sou de uma timidez desastrosa.
— Não se diria.
— Como não? confirmou o rapaz. Então não acha tímido um moço que, desde ontem, tem a tentação de devorar-lhe os lábios de beijos e ainda não o fez? Não foi falta de ocasião nem de vontade.
— Foi, naturalmente, por indolência, volveu D. Laura calmamente.
— Ou melhor por timidez. Mas garanto-lhe que, hoje mesmo, tomarei desforra.
— Quem o autorizou?
— Pois é preciso, acaso, autorização?
Chegaram à chácara.
— É grande a propriedade? indagou o professor.
— Bastante para girar-se uma hora.
— Nesse caso dê-me o seu braço e vamos dar umas voltas por ela.
— Professor, o Sr. está com intenções diabólicas!
— Quem sabe? Acaso sente-se mal em saber que dá o braço a um cavalheiro que está pouco bem disposto a seu respeito?
— Absolutamente. Não sou mulher que me espante por tão pouco.
— Então vamos.
E os dois afastaram-se, a passo lento, por uma das alamedas da quinta.
D. Laura sentia-se feliz de encontrar-se no meio das árvores amigas.
— Infelizmente não há vi ração, disse sério, num ar compungido, o Álvaro.
— Para quê? inquiriu a mulher, admirada.
— Para tornar o nosso passeio digno de uma descrição clássica de Ponson du Terrail ou, quando menos, de uma preleção pedagógica de dia de Festa das Árvores.
— O senhor, por mais que se esforce, não pode esquecer-se de que é ferozmente irônico.
— É a minha mania. Não posso torcer a veia de meu temperamento.
— Podia ter outra e deixar essa; que já é velha. Hoje toda a gente faz ironias. É moda.
— Queria que fizesse madrigais?
— Era talvez melhor.
— Mas, D. Laura, madrigais todo o mundo os fez e os faz. E eu preciso acompanhar a minha época para poder justificar o seu epíteto de extraordinário.
— Lá volta o senhor. Sabe, Álvaro, que não é assim que se agradam mulheres?
— Eu sei. Elas preferem beijos... A senhora, contudo, é muito alta e eu precisaria arranjar, para dar cumprimento ao preceito, uma situação qualquer para fazê-la abaixar-se ou sentar-se. Aqui não há bancos e há apenas dois minutos que descemos do automóvel: não deve estar cansada... Demais, eu não conheço a arte de seduzir. Não entendo da química do amor.
D. Laura riu clamorosamente e indagou:
— Nunca teve conquistas?
— Se as fiz? Não...  Mas já fui conquistado uma vez; ainda não há dois meses.
— E foi o senhor o conquistado?
— Sim, porque eu nem sequer disse a essa mulher que a amava, nem por brincadeira.
— O senhor é um excêntrico.
— Parece que a senhora se diverte a me aplicar adjetivos. Acha-me com feição de substantivo?
Ela riu de novo:
— Está ou não justificando o meu último dito?
— Não sei.
Os dois haviam chegado diante de uma latada de parreiras. Cachos maduros de uva pendiam, excitando o desejo.
Dali avistava-se, lá embaixo, a cidade, faiscando ao sol...
— Quer chupar uvas, D. Laura?
— Quero. Mas o senhor não as alcança. Eu, que sou mais alta, não vou até lá.
— Ali está, porém, retorquiu o professor, o caixão providencial. Espere.
O rapaz apanhou o primeiro cacho. D. Laura avizinhou-se para o receber, mas achegou-se tanto que, quando ia levar o primeiro bago à boca, o mestre escola, num movimento rápido, cingiu-lhe os braços ao pescoço e estampou-lhe nos lábios dois rumorosos beijos.
A mulher correspondeu-lhe, largando o cacho e abraçando-o com toda a força.
Depois, fingindo-se arrependida, abandonou o rapaz e, baixando os olhos, disse:
— E você não entendia de coisas de amor. Foi para isto que arranjou o caixão?
— Não se zangue por tão pouca coisa!
— Foi uma ação indigna! confirmou, batendo o pé.
— Pois então, concertemo-la diante de todo São Luís, que lá embaixo nos olha, alvitrou Álvaro, apontando a cidade.
E o professor e D. Laura abraçaram-se de novo.
 
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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)

A carta do suicida (Conto), de Sud Mennucci


 A carta do suicida

Caríssimo Alfredo,

Hoje, às cinco horas da manhã, suicido-me. Hás de necessariamente querer saber das causas, dos horríveis motivos que me levam a esse ato de desespero e de revolta, ato que vem sofrendo a abominação dos séculos, previsto até pelo Código Penal.

Não baterás a cabeça à procura do enigma. Basta-te ler o que vem abaixo:

Hoje, mais ou menos às três horas da madrugada, saía eu do High-life, depois de haver jogado e perdido toda a minha primeira mesada, o que implicava a perda de uma linda marselhesa, a quem vinha fazendo a corte há uma boa porção de dias.

Como gosto extraordinariamente do mar, em especial desse “sonho inatingível de poeta” que é a baía de Guanabara, e como houvesse lua, fui andando pela praia do Flamengo em direção à minha casa. Apoiando-me por acaso à amurada do cais para ver melhor uma incidência de raios lunares sobre a água viva e irrequieta do mar, que produzia uma estranha e deliciosa refulgência, não sei por que, assaltou-me de improviso a ideia de dar hoje mesmo cabo da vida. Achei, a princípio, o pensamento curioso e faceto, por não lhe achar ligação nenhuma com o espetáculo magnífico da baía. E enquanto me punha a andar, já esquecido do mar, comecei a meditar sobre essa grande “covardia”.

Por uma natural associação de ideias, lembrei-me do suicídio de Henrique, aquele nosso saudoso e bizarro amigo, tão amigo do paradoxo e do sofisma que, num dia de dúvida sobre a existência de Deus, pôs termo à vida quase heroicamente. Lembras-te do escândalo levantado em torno daquele caso doloroso? Pois o espalhafato da imprensa pareceu-me digno remate de um espírito saturado de esnobismo qual o meu e que bem me poderia elevar à altura do acontecimento máximo da semana. Considera, meu amigo:

Sou um rapaz elegante, demasiado conhecido pela alta sociedade do Rio, relacionado com todas as boas e ilustres famílias que marcam o tom, nesta luminosa Sebastianópolis. Serei assim “o amigo inesquecível que abre, com o seu prematuro passamento, uma lacuna impreenchível em nosso meio culto”. É que o comentário compungido dos jornais sobre os moços suicidas, com as suas frases repassadas de um profundo sentimento de piedade e de simpatia, exerceram sempre sobre mim um irresistível encanto.

Ajunta a isso a probabilidade ou artes a certeza de que a formosa francesa do High-life declarará tristemente que minha morte lhe pesa sobre a consciência, porque foi da sua repulsa aos meus desejos que brotou a ideia do meu suicídio, pensa nas lágrimas que derramará e no confrangimento de sua alma como responsável moral de meu desaparecimento e terás mais um motivo bem forte de minha rematada loucura. Dirás que é um gozo póstumo. Não é, é apenas uma volúpia prelibada.

Há mais ainda, há a consoladora certeza de que a elegante mignonne da rua São Cristóvão me contará como mais um sacrificado ao altar de sua fulgurante beleza. Tu conhecê-la bem melhor que eu para garantir a justeza de meu acerto. É verdade que ainda anteontem, no cinema Avenida, o nosso flirt chamara a atenção dos bons burgueses que vão às casas cinematográficas na mais santa e mais pura intenção de ver as fitas. Mas que lhe custará, hoje à tarde, apresentar-se à sua mais íntima amiga e com as faces afogueadas de carmim, os cabelos desgrenhados num estudado negligé, declarar que a sua alma não encontra paz, ameaçar também suicidar-se, porque dirá — ela também me amava e si me repelia era apenas porque não tinha a plena convicção do meu amor. Quisera humilhar-me e saíra-lhe cara a experiência.

Ora, bem sabes, meu velho Alfredo, que da íntima amiga ao grande público leitor de novidades só há uma questão de... minutos.

Depois minha família far-me-á funerais esplêndidos, riquíssimos. Deixo as minhas disposições para que haja luxo, muito luxo e com muitos atos religiosos, os que ferem a imaginarão sensível das mulheres e prolongam a duração de minha lembrança.

Depois virão as missas pomposas e solenes, com catafalco e luzes, no sétimo, no trigésimo dia e eu todos os aniversários de meu passamento. Depois o mausoléu custoso, encomendado especialmente na Europa e enfim de vez em quando, a recordação grata e necrológica de algum amigo. Conto para isso contigo...

Conheces-me há muito tempo, Alfredo, para saber que isso que aí fica é a mais pura expressão da verdade.

Suicido-me porque acho chic e de muito bom tom esse ato que todos, numa instintiva solidariedade de rebanho, classificam de loucura ou de covardia.

Desespero de minha parte não o há, não o pode haver. O perder a mesada era para mim um fato vulgaríssimo. Meu pai que é rico e largo de mãos, mandava-me às vezes quatro e cinco mesadas. Vês daí que a perda da francesinha era uma simples questão de dias...

O amor também não é a causa. Nunca me liguei a mulher nenhuma, porque não achava nessas conjunções nada que as nobilitasse. Achava-as sujas.

Pelas moças de hoje, também não poderia apaixonar-me. Há uma falta tamanha de aristocracia e de linha que, para mim, uma paixão por qualquer das moças que conheci seria a amostra de amolecimento de meu cérebro e a prova da decadência completa de minha faculdade de análise. As minhas, galanterias à mignonne da rua São Cristóvão nunca foram além da amabilidade que me impunha o código de rapaz da moda. Porque o amor é, para mim, ainda neste momento, a ausência dessa instintiva superioridade da razão sobre a carne, que deve distinguir um homem de um bruto, superioridade que sempre quis ter e pude manter em todos os atos da vida.

Seria então, desespero pelo desmoronar de alguma linda esperança?

Pelo que disse acima, nunca as tive, desde que o homem põe a volúpia e mesmo a razão de ser da vida no amor.

Desespero da vida? Tampouco. Nunca fiz ideia nenhuma otimista ou pessimista e sempre procurei viver sem saber como nem porquê. Divertia-me, achava-lhe sabor, graça e encanto, vivi. Agora acho graça em morrer. Vou com os demais.

Nunca tive religião nenhuma porque nunca um sentimento mau brotou em minha alma, como nela não brotaria nunca um sentimento bom. E isto pelo simples fato de que nunca pude fazer a abstração necessária e perceber qual a diferença que havia entre uns e outros. Para mim vinham da mesma argila.

Não há covardia também em meu ato. Covarde por quê? Um covarde não ri diante da morte, não analisa com esta minha calma que é quase cínica. Demais o covarde despreza e maldiz a vida. Eu não. Agradeço-lhe os momentos de ventura e de delícia — e foram tantos! — que me proporcionou.

 E se o meu suicídio fosse para a redenção de um grande pecado ou para a redenção póstuma de toda a minha vida — que coisas engraçadas sabe inventar a dialética humana! — não seria com este meu ar jovial que me encaminharia para a grande treva. Os sacrifícios refletidos fazem-se de cenho carregado!

Suicido-me com uma pistola Browning, tipo moderno, com o cabo de prata todo cinzelado. Numa das faces há uma alegoria contraditória: representa Hebe distribuindo o vinho aos deuses no Olimpo...

Escolhi, a pistola por achá-la a mais digna arma com que eu me podia eliminar do mundo sem que a minha fisionomia sofra alteração. Quero que me encontrem barbeado, penteado, empoado, os lineamentos calmos e firmes, deitado direito e placidamente no meu divã, sorridente como quem dorme um sono longo povoado de sonhos belos.

Não quero que haja uma contração, uma só, a quebrar a linha de fidalga distinção que me elevou tanto na vida.

No meio de tanta alegria, só levo uma pequena mágoa: é a de não poder ler os artigos dos jornais sobre o meu “estranho suicídio”, as notícias sobre o luxo do enterro, sobre a concorrência das missas e os discursos fúnebres; não poder ver os faniquitos da mignonne nem as lágrimas copiosas da encantadora francesa ... Seria meu último gozo.

Até pelo reino dos mortos.

Do teu
 Sílvio

***
Quando Alfredo, meia hora mais tarde, chegou à casa do suicida, encontrou-o deitado, rígido e direito, e, como ele mesmo dissera, barbeado, penteado, empoado, os lineamentos calmos e firmes, e um fio de sangue vincando-lhe o rosto alvo, levemente azulado pela barba. Nos lábios, levemente entreabertos, parecia bailar, móbil e inquieto, um sorriso indizível de satisfação, um sorriso diabólico de triunfo e sarcasmo...
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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)