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1/08/2020

A Voz do Sino, de Vicente de Carvalho



I
Tarde triste e silenciosa
De vila de beira-mar:
Uma tarde cor-de-rosa
Que vai morrendo em luar...

Ao longe, a várzea cintila
De uns restos de sol poente:
Mas, por sobre toda a vila
— Do morro a que fica rente
Desce uma sombra tranquila —
E anoitece lentamente.

Não aparece viv’alma.

Nem rumor da natureza,
Nem eco de voz humana
Perturba a infinita calma,
A solitária tristeza
Da pobre vila praiana.

Nem se ouve o mar, longe, e manso.

A tudo, em redor, invade
Um ar de mole descanso...

Silêncio... Imobilidade...

Como que, interrompida,
A correnteza da vida
Fez neste ponto um remanso.

De súbito, rumoreja
Violentamente o ar:
Na torrezinha da igreja
Rompe o sino a badalar.

Ponho-me atento, a escutá-lo:
Que diz, alto e repentino,
Esse bater de um badalo
Num sino?

Badalo que assim badalas
No sino que assim ressoa,
Aves, já nenhuma voa:
Dormem: e vais acordá-las
À toa...

Vais espantar quanta moça
Aí pelos arredores
Depois de um dia de roça,
De enxada e de soalheira,
Dedica a tarde ligeira
A tarefas bem melhores;

Pelas discretas beiradas
De alguma fonte; fiadas
Na proteção pitoresca
De ramagens, folhas, flores;
Que fazem elas? Coitadas,
Bebem, nas mãos, água fresca...
Lavam as caras tostadas...
Ou cuidam dos seus amores...

Badalo que assim badalas
No sino que assim ressoa,
Olha que vais espantá-las
À toa...

Badalas... E eu que te falo
Não sei e nem imagino
Que pretendes tu, badalo,
A bater, bater no sino.

Talvez convoques à ceia
Pescadores que, lidando,
Nem viram que entardeceu;
Algum se estendeu na areia
A descansar; senão quando,
De cansado adormeceu...

Badala-me assim, badala:
Esperta este dorminhoco;
Que ou ele, acordando, abala,
Ou fica dormindo — e em troco
Da sua madraçaria,
Chegando à casa atrasado
Acha no fogo apagado
A caldeirada já fria.

Badalo que assim badalas
No sino que assim atroa,
Porque é que tão alto falas
À toa?

A andar com menos demora
Talvez tua voz compila
Certo rei dos mandriões
Encarregado em má hora
De, nas três ruas da vila,
Acender os lampiões...

Chamas, talvez, ao seu posto...
Quem? algum camaroeiro
Retardado e mal disposto
A seguir para o pesqueiro?

Badala-lhe que é sol posto,
Que a luz cheia está fora,
Que, com pequena demora,
Vai a maré a vazar:
Para chegar à costeira
Tem ele uma légua inteira
De caminho a caminhar,
Vencendo-a de combro em combro,
De atoleiro em atoleiro,
Com o remo e o puçá no ombro
E, na mão, o candeeiro...

Ruidoso sino da vila!
E é por coisas tão vulgares
Que atroas assim os ares
De uma tarde tão tranquila?

 II
Badalo que assim badalas...
Que voz de repente soa
Acompanhando-te as falas
À toa?

É voz de gente que canta...
De gente... E parece tanta.

Da humilde igreja irradia
E para o céu se alevanta
A reza da Ave, Maria.

As vozes e as badaladas
Confundem-se... Misturadas
No fervor da mesma prece,
Sobem juntas para o ar
Onde a lua resplandece
E a noite, imensa, parece
Feita do alvor do luar...

Sobre a soleira da porta
Da casa pegada à minha,
Vejo sentada a vizinha:
Moça, e bonita... Que importa?

Tem nos braços o filhinho;
Fala-lhe, toda carinho;
Ele ouve; sorri, depois,
Responde-lhe, balbucia...
E, de mãos postas, os dois
Murmuram a Ave, Maria.

Ante meus olhos perpassa
Uma visão: imagino
Maria, cheia de graça,
Jesus, loiro e pequenino.

Uma tarde cor-de-rosa...
Uma vila assim modesta,
Assim tristonha como esta...
De pescadores, também...
Sobre a planície arenosa
Por onde o Jordão deriva
Pousa a sombra evocativa
Das montanhas de Siquém...

À porta de humilde choça,
Uma mulher... Quem é ela?
É pobre... é jovem... é bela...
E é Mãe: comovida, a espaços
O seu sorriso se adoça,
O seu olhar se ilumina
Para a figura divina
Do filho que tem nos braços.

Mostra-lhe, à noite que estrela
O céu e que a terra ensombra,
Como a terra é toda sombra
Como o céu é todo luz...
E o filho, enlevado nela,
Em êxtase balbucia...
A primeira Ave, Maria
Quem a rezou foi Jesus.

Sigo o meu sonho... imagino
Que, por todas essas roças
Aonde chega a voz do sino,

A sombra triste das choças
Frouxamente se alumia
Da vela de cera acesa
Ante uma Virgem Maria
Tendo nos braços Jesus.

É a hora augusta da reza...

Mães, pobres mães andrajosas
De filhinhos seminus,
No chão de terra ajoelhadas,
Dizem coisas misteriosas,
Palavras entrecortadas
De mágoa que se lastima,
De súplica, e de esperança

A essa outra Mãe que, lá em cima,
Na glória do céu, descansa
Do que passou neste mundo.

Ela que, com o mesmo eterno
Requinte do amor materno,
Sorriu a Jesus criança,
Chorou Jesus moribundo,

Lá, do alto céu infinito,
Olha com olhos de Santa
E de Mãe que já sofreu
Tanto coração aflito
Que se volta para o seu.

Na roça a miséria é tanta...

Quanta pobre gente, quanta,
Expia o ser mal nascida
Cumprindo a pena da vida
Como pregada a uma cruz;
E, na angústia que a quebranta,
Somente espera e antegoza
A proteção milagrosa
Da virgem Mãe de Jesus!...

Na roça a miséria é tanta...

E cada choça sombria
Para o claro céu levanta
A reza da Ave, Maria.

Não, tu não falas à toa;
Errei, confesso-o... Perdoa,
Ó sino humilde da vila,
Que assim badalas, badalas,
Na paz da tarde tranquila;
Ó sino, que também rezas,
Ó sino, que tanto falas
À terra, toda asperezas,
Como ao céu, todo luar,
Chamando, com o mesmo zelo,
Cada infeliz — a rezar,
Nossa Senhora — a atendê-lo.

Consolador de tristezas!
Semeador de esperanças!

Aqui nestas redondezas
Não há vida tão bonanças
Nem casebre tão remoto
Onde quanto o sino diz
Não abençoe um devoto,
Não console um infeliz...

Por essas várzeas tão ermas
Onde, perdidas e sós,
Há tantas almas enfermas
De desesperos sem voz,

Onde tanto desdenhado
De Deus, que decerto o olvida,
Vive, até morrer, vergado
Ao pêso da própria vida,

Vais chamar, em altos gritos
— Como se fosse a um dever —
Desamparados e aflitos
— Para o consolo de crer.

E de casebre em casebre
Onde gente, a vida inteira,
Vive de trabalho e febre,
Morre de fome e canseira,

Afirmas à angústia surda
Do mísero tabaréu
Que o brejo em que ele chafurda
— É um caminho para o céu.

A cada pobre praiano
Que, na sua dura lida
De afrontar o largo oceano,
Vive de arriscar a vida.

Tu, consoladoramente,
Falas para lhe lembrar
Que há quem reze por a gente
— E há céu por cima do mar...

Da mesma igreja alvadia
Evolam-se as badaladas
E a reza da Ave, Maria.

Evolam-se...Misturadas,
Sobem juntas para o ar
Onde, pálida e sozinha
Tão alva, que resplandece,
Tão só, que vai a sonhar,
Caminha a lua, caminha,
E o céu, imenso, parece
Feito de sonho e luar...

Humilde sino da vila,
Que assim badalas, badalas,
Na paz da tarde tranquila;

Não, tu não falas à toa

Não, tu não falas à toa:

Percebo o que a quem falas,

Perdoa!

6/21/2019

Crianças (Conto), de Vicente de Carvalho


Crianças

Era o dia de São José, daquele velho, barbudo, calvo São José, com a sua túnica vermelha caindo dos ombros, nas mãos o cajado de amendoeira milagrosamente abotoado em flores, e que, desde longínquos avós, de cuja memória já só ele restava, se mantinha como o santo predileto na devoção da família.
Era o seu dia, segundo a consagração do calendário. E, ao fundo do oratório aberto, destacado, dominando de toda a majestade da sua estatura de dois palmos uma corte de pequenas imagens secundárias, com um ramo fresco de lírios aos pés, o santo resplandecia no clarão da vela benta, piedosamente acesa em sua honra.
Ali estava ele, iluminado e glorioso, o bem-aventurado carpinteiro de Belém, escolhido por Deus, como o mais puro entre todos os homens puros, para depositário e guarda fiel da predestinada, fecunda virgindade de Nossa Senhora.
Segundo uma tradição remota e que vinha, de geração em geração, transmitida de pais a filhos, a velha e encardida imagem recebia pontualmente todos os anos, naquele dia que o calendário lhe destinava, uma singela homenagem de veneração, de confiança, e de amor, sob a forma de um ramo de lírios que se desfaziam em perfume aos seus pés, e de uma vela benta que ardia e se derretia em sua frente.
Os três pequenos, pilhando-se sozinhos, livres de qualquer intervenção adulta, tinham resolvido entre si dar uma busca ao interior do oratório, aberto. Jorge, o mais velho, concebera a ideia e dirigiu a ação. Era já um homenzinho de cinco anos, chefe natural e terrível do grupo. Fecundo em planos de travessuras, ousado na execução, distribuindo com mão forte e pródiga despojos e taponas, Jorge era acatado e seguido.
Puxou vigorosamente para junto da meia cômoda, em que assentava o oratório, uma cadeira; ergueu para esta o Joãozinho, cujos três anos eram ainda incapazes, sem apoio e sem auxílio, de altas cavalarias como essa.
— Agora você! disse com voz de comando, dirigindo-se à irmãzinha; e ajudou-a a subir. Em seguida, cumpridos os deveres de chefe, Jorge subiu por sua vez, colocando-se atrás dos outros dois.
E os três, encantados, puseram-se a examinar a um por um os sagrados moradores do oratório.
Havia um São Pedro, com os olhos cheios de arrependimento de ter negado o Divino Mestre, fitando vagamente o teto. Tinha na mão a chave dourada com que abre às almas dos eleitos as portas da bem-aventurança; e, a seus pés, o galo tradicional, talhada toscamente, abria as asas desiguais, esticava o pescoço, um pescoço exagerado de cegonha, e repousava sobre a túnica azul do santo a sua crista quase quadrada.
Fronteiro a São Pedro, com o cordeirinho branco aos pés, a face rubicunda e moça, as pernas fluas até o joelho, São João apoiava a mão esquerda na longa curva do seu cajado de pastor, e estendia o braço direito num gesto majestoso de bênção ou de prédica.
São Francisco, dentro do seu comprido hábito negro, tinha um ar de suave humildade, com os olhos baixos, o rosto inclinado para o chão e emoldurado por umas enormes, incríveis barbas cor de chumbo.
Completava a coleção das pequenas imagens uma pequenina Senhora das Dores, doce figura de mãe angustiada, com o punhal simbólico cravado no coração até ao cabo, as mãos postas, os olhos aflitos e lacrimosos erguidos para o céu.
A primeira coisa que atraiu o olhar do mais pequeno foi o cordeirinho de S. João:
Um bicho! disse ele apontando com o dedinho esticado.
Não é bicho, corrigiu Jorge, é carneiro.
— Ele morde?
— Não, explicou o mais velho; só dá chifrada.
— Mas ele não tem chifres, interveio Vivi.
Jorge não gostou da objeção que infringia o respeito devido à sua autoridade em assuntos relativos aos animais. E retrucou:
— Tola! Ele dá chifrada com a cabeça.
— Eu tenho medo dele, disse Joãozinho.
— Não é carneiro de verdade, assegurou Jorge. Não se mexe. Quer ver?
Agarrou pelo pescoço o cordeirinho de São João, e puxou-o. A frágil massa partiu-se; e ficou solta na mão de Jorge a cabeça do animalzinho degolado.
— E agora? perguntou Vivi assustada. Eu não disse?
Vivi, note-se, nada tinha dito, àquele respeito.
Jorge, porém, era corajoso e resoluto; meteu rapidamente no bolso a parte arrancada do cordeiro, dizendo:
Não faz mal, eu escondo. Ninguém conte, hein?
Pouco preocupado com aquele incidente, tão simples e tão vulgar, o despedaçamento de um objeto, Joãozinho olhava já atentamente para o galo posto aos pés de São Pedro.
— O que é aquilo? perguntou, desconhecendo a figura mal feita.
— É uma galinha, explicou Jorge.
— Eu quero a galinha! declarou Joãozinho.
— Não, acudiu Vivi. Aquilo é do santo.
— Mas eu quero!
Jorge era generoso: arrancou e deu ao irmão o galo de S. Pedro, com as pernas partidas, e sem a crista, que ficaram pregada à túnica azul do santo.
Vivi reparou na imagem da Senhora das Dores, por cuja face desbotada pela mágoa corriam lágrimas de sangue; e, comovida, perguntou:
— Por que será que ela está chorando?
Jorge explicou prontamente:
— Você não vê que ela está com a faca enterrada no peito?
— Coitada! murmurou Vivi. É melhor tirar a faca.
Jorge tirou a faca.
— Quem seria o mau que deu a facada? perguntou
Vivi.
— Foi o barbudo! opinou Joãozinho apontando para São Francisco.
Devia ter sido mesmo: São Francisco com a sua longa túnica negra, as suas enormes, incríveis barbas cor de chumbo, era a figura mais feia da coleção.
— Com certeza foi ele! concordou Vivi.
— Foi! decidiu Jorge. Pois vai de castigo.
E agarrando S. Francisco, meteu-o, preso, no vão escuro entre o oratório e a parede.
Chegara a vez de São José, que jazia, no lugar de honra, ao fundo do oratório.
Jorge, com uma erudição pitoresca, apanhada nas conversas em que a família, de quando em quando comentava o padroeiro, começou a instruir os irmãozinhos:
— Aquele é o marido de Nossa Senhora, é o pai do Menino-Deus. Mas o Menino-Deus não é filho dele, é filho do Espírito Santo, que é uma pombinha.
— É uma pombinha que anda nas folias, em cima da bandeira, interrompeu Vivi.
— Eu já vi! disse com importância e orgulho o Joãozinho.
— Chama-se São José, continuou Jorge. Dantes era carpinteiro; agora é santo. Quando o Menino-Deus nasceu, apareceu uma estréia. Os pastores todos foram rezar. Foram também três reis. Um era preto...
— Um rei preto? estranhou Vivi.
— Preto sim. Na terra dos negros o rei é preto. Mas é rei.
— E as princesas?
— As princesas, não; que boba! As princesas são umas moças muito bonitas, com cabelos de ouro, e uma estréia na testa... O outro rei mandou matar o Menino Deus...
— Por quê? perguntou Vivi.
Jorge hesitou. Na realidade, ele estava pouco a par das razões políticas de Herodes; mas não quis dar parte de fraco, e, depois de refletir um momento, respondeu a Vivi:
— Ora, porque... Porque era um rei muito malvado.
— E mataram o Menino-Deus?
— Não puderam, capaz! S. Jorge pôs Nossa Senhora, com o Menino-Deus no colo, em cima de um burrinho finito manso, um burrinho ensinado; e todos três fugiram para outra terra...
Joãozinho, apertando na mão o galo arrancado a São Pedro, dobrara sobre a cômoda o braço, encostara a este a cabecinha loura, e cochilava, no aborrecimento daquela exposição de História Sagrada que Jorge ia cosendo de farrapos. Mas a alusão de um burrinho muito manso, um burrinho ensinado, espertou e teve um aparte:
— O santo está sujo.
Efetivamente. O tempo e a fumaça da vela benta, acendida sempre, durante anos e anos, no dia consagrado a São José, haviam encardido a imagem, desbotando-lhe as cores, envolvendo-a como numa poeira baça e gordurosa.
— É mesmo, disse Vivi reparando. Está muito sujo. Coitado, é preciso limpar ele.
Jorge decidiu-se logo a limpar o santo. Fez descer da cadeira os irmãos. Afastou as pequenas imagens, e o ramo de lírios. Agarrou com a mão esquerda a peanha, e com a direita o pescoço de São Jorge. E, num gesto decidido e forte, tirou-o do oratório.
Daí a instante, São José estava no chão, sozinho, no meio do quarto, anulado e pequenino. Jorge trouxe uma bacia de rosto, larga e funda; e, enquanto vazava nela a água do jarro, ordenou a Vivi que trouxesse o sabão.
Sentaram-se os três. Joãozinho quis logo meter na bacia o galo. Mas Jorge suspendeu-lhe o braço, asseverando que não se põe as galinhas n’água, porque se afogam. E, segurando com todo o cuidado o barbudo, calvo, venerável São José, deu-lhe um- mergulho.
Agora, você! disse ele, dirigindo-se a Vivi; Mulher é que lava.
Vivi não se fez rogar. E, carinhosamente, pôs-se a ensaboar o santo.
Daí a momentos, na confusão das tintas que se desmanchavam, São José tinha a barba azulada, o rosto coberto de manchas, a sua calva, aquela austera calva tão lisa e tão lustrosa, aparecia salpicada de rubores que lembravam uma impingem...
Jorge reparou nisso; e ordenou a Vivi que lavasse melhor, com mais forças. Vivi esfregou com energia. A massa molhada começou a esfarelar-se.
— E agora? perguntou Vivi assustada.
Jorge não respondeu. Tinha ouvido passos na escada. Era a mãe, que subia, a ver de certo que é que faziam os três traquinas, tão sossegados havia tanto tempo... Jorge, muito ligeiro, nas pontas dos pés, escapou-se. Vivi seguiu-o logo, enxugando no vestidinho branco as mãos molhadas das tintas diluídas da imagem de São José.
Joãozinho, então, sem reparar em nada de todos esses incidentes, percebendo apenas que ficara único senhor do campo, apoderou-se do santo, e pôs-se, muito entretido, a lambuzá-lo de sabão.
Encontrou-o a mãe nessa tarefa, a que se entregava conscienciosamente; e avançou para ele no momento preciso em que Joãozinho acabava de esfarelar com todo o cuidado uma orelha de São José.
— Maroto! exclamou ela.
E ia fazer cair sobre Joãozinho o castigo merecido pelo horrendo crime, cujos vestígios e destroços via no soalho e no oratório devastado, quando lhe acudiu a reflexão de que tudo aquilo não podia ser obra só do pequerrucho, de que houvera forçosamente no caso intervenção de mãos mais hábeis, de braço mais forte, de figura mais taludinha...
— Foi aquele pestinha! murmurou indignada, pensando em Jorge.
Arrancou das mãos de Joãozinho aturdido a imagem escalavrada de São José; beijou-lhe os pés com palavras compungidas em que pedia perdão pelo sacrilégio dos filhos; e repôs o santo no seu oratório forrado de azul com estrelinhas de ouro, cercou-o da sua corte de pequenas imagens, todas mais ou menos mutiladas, só faltando São Francisco, que continuava oculto, de castigo, no vão escuro...
Cumpridos esses atos de piedade, voltou-se para Joãozinho, que apanhara do soalho o galo de São Pedro, e conservava-o na mão:
— Você fez uma coisa muito feia, e vai apanhar, e vai para o quarto escuro...
Joãozinho, aterrado, só respondeu:
— Não, não mamãe!... Não mamãe!...
Ela porém, muito enérgica:
— Escolha: ou apanha, ou vai para o quarto escuro!
— Joãozinho fitou-a. Percebeu no rosto severo da mãe — que não escapava mesmo. Ora ele nunca tinha apanhado — e conhecia já o quarto escuro. Escolheu, choramingando:
— O quarto escuro, não...
— Vá então buscar o chinelo, para apanhar.
Joãozinho foi, vagaroso, de cabeça baixa, como um criminoso que era. Quando voltou, trazia sempre, na mão esquerda, o galo de São Pedro; e empunhava na direita um pé dos chinelinhos... de Vivi.
— Com este, sim? implorou.
E ia entregar o quase inofensivo instrumento do suplício — quando se arrependeu, retraiu o braço, susteve-se... E com o rosto aflito, os olhos suplicantes, numa vozinha entrecortada, de susto e de choro:
— Eu mesmo me dou, sim, Mamãe? Eu me dou com força. Eu prometo que me dou com toda a força!

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Pesquisa, digitalização e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)