O inferno no imaginário Pentecostal
Quais as motivações primárias que
leva uma pessoa a se refugiar numa denominação religiosa e a se tornar seu
ardoroso defensor, especialmente no âmbito das igrejas pentecostais?
Muitas delas poderiam ser
citadas: amor a Deus, desapego aos bens materiais, carência espiritual, busca
por milagres, necessidade de perdão, insegurança em relação à morte e esta, que
considero a mais preponderante entre todas: o medo de ir para o inferno.
Exclua-se o inferno dos livros, elimine-o dos sermões, e o resultado será
templos quase vazios!
A palavra inferno vem do latim infernus, que significa lugar profundo.
Tal termo tem origem no hebraico sheol,
ao pé da letra: abismo, sepulcro, tumba, designando as profundezas da terra. Na Septuaginta (versão grega do Antigo Testamento) o termo sheol foi traduzido por hades, que quer dizer: invisível, tenebroso (alguns traduzem por terrível,
cruel, violento). Na mitologia grega, Hades
era considerado o rei dos infernos, o qual habitava as regiões situadas nas
profundezas da terra, para onde iam os mortos; é também o nome do próprio
inferno: a “mansão dos mortos” (Tártaro ou Érebo). Outra palavra usada no Novo
Testamento para designar o inferno, é geena.
Tal nome refere-se ao vale de Hinom, localizado ao sul de Jerusalém, local
este, segundo a tradição judaica, onde os jebuseus e os habitantes idólatras de
Jerusalém sacrificavam seus filhos ao deus Moloque, e onde os condenados eram
executados. Jeremias o denominou de “vale da matança”: “Portanto, eis que vêm
dias, diz o Senhor, em que não se chamará mais Tofete (lugar de fogo), nem Vale
do Filho de Hinom, mas o Vale da Matança” (Jr. 7:32). Especificamente, na
Bíblia, o inferno é representado de várias maneiras, tais como: castigo eterno,
fogo eterno, chamas eternas, fornalha acesa, lago de fogo e enxofre, fogo
devorador, lugar de tormento, sorte dos ímpios etc.
Mas o inferno não é um assunto restrito
aos livros sagrados. A Literatura de um modo geral aproveitou-se muito bem
dele, nos legando verdadeiros clássicos, como a “Divina Comédia”, do qual se
insere o famoso “Inferno de Dante”, que é descrito contendo nove círculos de
sofrimento localizados no centro da Terra. No âmbito da Língua Portuguesa podemos
citar a famosa peça “O Auto da Barca do Inferno”, escrita pelo grande
dramaturgo português Gil Vicente, representada em 1517, na qual é mostrada a
chegada ao inferno das almas de um fidalgo, de um frade e de quatro cavaleiros.
Na pintura há também inúmeros exemplos voltados à morada do capeta, em especial
na Idade Média, época em que o pavor pelo inferno atingia o nível da obsessão
patológica.
Embora o inferno não seja
exclusividade da doutrina cristã, nesta ele se finca de forma definitiva, tornando-se
parte dos estatutos doutrinários de todas suas ramificações ao longo dos
séculos. Segundo o Catecismo da Igreja católica: “As almas dos que morrem em estado de pecado mortal descem imediatamente
após a morte aos infernos, onde sofrem as penas do Inferno, o fogo eterno”.
Na doutrina protestante tradicional as interpretações do inferno são variadas,
abrangendo desde o fogo eterno ao aniquilamento total dos condenados, como é o
caso da Igreja Adventista do Sétimo Dia e das Testemunhas de Jeová. Para a
doutrina espírita, o inferno é apenas um estado de consciência vivenciado por pessoas
cujos comportamentos e sentimentos ruins sobressaem em suas personalidades, e
as quais poderão através de sucessivas experiências encarnatórias alcançar
também a perfeição. Já em relação aos evangélicos pentecostais, em geral acreditam
que as almas do que morrerem perdidos irão automaticamente para o inferno, onde
aguardarão o julgamento final, sendo o sofrimento ali eterno. Entre todos os
grupos da linhagem evangélica, são estes os mais intransigentes e inflexíveis
quanto à condenação dos que não “aceitarem Jesus”. Em seus cultos, é de hábito
enfatizar-se aquelas passagens bíblicas que discorrem sobre o fogo eterno, alertando
sobre a necessidade de se manter “vigilante” para não ficar sujeito às
labaredas eternas, as quais não tem começo nem fim. Também é comum testemunhos ou
depoimentos de pessoas que tiveram experiências espirituais de verdadeiras viagens
ao inferno, algo semelhante ao que Dante Alighieri narrou em sua obra “A Divina
Comédia”. Kenneth E. Hagin, fundador da Teologia da Prosperidade, foi
um dos que, assim como Virgílio, adentrou aos portões infernais. Em seu livro
“Fui ao Inferno” relata: “Desci até a
escuridão envolver-me, e as luzes se extinguirem. Quanto mais eu descia, mais
quente e escuro ficava. Até que cheguei ao fundo do abismo e vi a entrada para
o inferno, ou os portões, como chamo. Tive consciência de que aquela criatura
havia-me encontrado.” Outro livro do mesmo viés e que faz enorme sucesso
entre o público evangélico tem o título de “A Divina Revelação do Inferno”, de Mary
K. Baxter, que conta em detalhes sua passagem pelas regiões das trevas. Escreve
ela: “Ao longo do caminho, passamos por
muitas, muitas almas queimando no inferno. Por toda a estrada estendendo para
Jesus. Onde a carne devia estar, só havia ossos, - uma massa cinzenta com carne
queimando e em decomposição. Dentro de cada forma esquelética tinha uma névoa
de alma suja cinzenta, vivendo para sempre dentro de um esqueleto seco. Eu
podia ver pelos seus gritos, que eles sentiam o fogo, os vermes, a dor e a
desesperança. Seus gritos enchiam a minha alma de uma dor tão grande, que nem
posso descrever. Se eles pelo menos tivessem escutado, pensei, eles não
estariam ali.” E, por fim, faço menção do testemunho de uma garota chamada
Jennifer Perez, "que morreu de overdose aos 15 anos", após abandonar à igreja. Em
transcrição traduzida de seu depoimento em vídeo, há o seguinte e tenebroso
relato: “O anjo Gabriel me agarrou por um
dos braços e me levou em direção daquela porta horrível, que eu não queria nem
olhar. Tentei parar, mas eu estava em espírito, e o anjo me levou a força.
Entramos. Do outro lado daquela porta, era uma escuridão total. Eu não conseguia
nem enxergar a mim mesma. Então, começamos a descer, numa velocidade muito rápida,
como numa montanha-russa. À medida que descíamos, o calor ia ficando cada vez
mais forte. Fechei meus olhos, pois eu não queria ver onde estávamos. Quando
paramos, o anjo disse para eu abrir os olhos e que aquele era o meu novo lugar.
Vi que eu estava numa grande estrada, mas eu não sabia onde ela iria dar. A
primeira coisa que senti quando cheguei àquele lugar foi sede. Muita sede. Eu
não parava de dizer para o anjo: Estou com sede! Estou com sede!” Mas era como
se ele não estivesse me ouvindo. Comecei a chorar. Assim que as lágrimas caíam,
elas evaporavam por completo. Havia um cheiro de enxofre, como se estivessem
queimando pneus. Tentei tapar o nariz, mas o cheiro se tornava pior quando eu
fazia isso. Os pelos dos meus braços desapareceram. Todos os meus cinco sentidos
estavam muito mais apurados. Eu sentia muito calor, aquele lugar era muito
quente. Comecei a olhar ao meu redor e vi pessoas sendo atormentadas por
demônios. Havia uma mulher sofrendo, em tormentos. Um demônio cortou a cabeça
dela e cravava uma comprida lança em todo o corpo daquela mulher. Ele não tinha
piedade. Ele cravava a lança nos olhos, nos pés, nas mãos, em todas as partes
do corpo. Depois, ele punha a cabeça de volta no corpo dela e começava a
cravar-lhe a lança de novo, sem parar. Os gritos dela eram de agonia e dor. Eu
tapava os ouvidos, mas não adiantava. Percebi que não saía sangue quando aquele
demônio cortava a cabeça daquela mulher, porque ela estava em espírito, e o
espírito é eterno”.
É importante salientar que os
relatos de ida ao inferno não são um fenômeno recente, restrito à vertente
Pentecostal. Em sua obra “O imaginário medieval”, o historiador Le Jacques Goff
afirma que eram comum, na Idade Média, essas viagens ao além. Durante o vasto período
medieval europeu, a atmosfera estava repleta de demônios; entre as pessoas andavam
grandes legiões de espíritos diabólicos, cuja missão era atrair os indefesos para
as mais terríveis perdições.
Interessante observar que o medo
do diabo tem se alterado ao longo dos anos conforme se modificam as
representações sociais em suas respectivas localidades. Em sua tese de mestrado
“As Representações do diabo no Imaginário dos Fiéis da Igreja Universal do
Reino de Deus”, Pedro Antonio Chagas Cáceres destaca que as representações
sociais do século XI, na Europa, não foram as mesmas dos séculos seguintes, e
não podemos dizer que as representações e os medos do diabo na atualidade sejam
os mesmos do século XIX. Tais representações se alteram na medida em que fazem parte
de outros grupos sociais, pertencentes ao mesmo contexto histórico. Certamente
os medos e as representações dos romanos invasores eram totalmente diferentes
das representações e medos dos judeus subjugados. O que hoje não ameaça, amanhã
pode corromper; o que ontem curou, amanhã pode matar; o que salva, pode
condenar. Dessa forma, a humanidade caminha representando sempre um novo mundo,
se livrando de antigos medos e constituindo outros. Mencionando o livro “O
pecado e o medo: a culpabilização no ocidente”, do historiador Jean Delumeau,
afirma que, conforme se agravam as crises, o diabo se tornava mais horrível e
cruel. As representações artísticas, literárias, teatrais ganharam ares
sombrios e tenebrosos nos séculos XIV e XV. A Guerra dos Cem Anos (1337-1453)
entre França e Inglaterra, a Peste Negra, entre 1346 e 1353, epidemia causada
por bactérias (Peste Bubônica), originárias do Oriente, dizimou mais de um
terço da população européia, estimada, na época, em oitenta milhões. Tais
tempestades sombrias somaram-se aos conflitos sociais e à fome que mataram
outros milhares. Esses abalos contribuíram para a transformação negativa das
representações do homem europeu. O medo se alastrou pelas cidades e campos e o
Diabo se tornou muito mais feio e terrivelmente forte; o fim estava próximo.
Embora o medo exacerbado do
inferno e do diabo seja uma característica intrínseca a todas as religiões
ocidentais, especialmente aquelas de origem cristã, no pentecostalismo ele
assume proporções ainda maiores e com cores bem mais avivadas. A maneira
afetada, por vezes solene ou empolada, de descreverem cada escaninho do
inferno, transformou-se numa poderosa ferramenta para a conversão do maior
número possível de pecadores. Imprecações, alertas e vociferações veementes
fazem parte da rotina diárias dos cultos, das pregações, das mensagens
radiofônicas e televisivas, dos folhetos, dos periódicos, dos livros e das muitas
páginas da Internet. Buscam assim, através do temor, manter o maior número
possível de almas cativas às suas doutrinas. Essa constante sensação de ameaça,
do receio do inferno e da imprevisibilidade da morte, costuma culminar em atitudes
extremistas e na intolerância, além de ser a causa de sérios transtornos de
natureza psicológica. O fundamentalismo, em sua essência, é resultado do excesso
de medo e do desejo do pensamento único. Em vez do amor voluntário e
descompromissado a Deus, o processo de conversão fica assim norteado pelo
interesse, seja para evitar o inferno, seja para alcançar os céus. É o grande
paradoxo da fé cristã, que deveria se guiar exclusivamente pelo amor,
deliberadamente pelo amor.
É isso!
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