9/22/2016

Miss Star (Conto), de Escragnolle Doria


Conto publicado na "Revista Litteraria", em sua edição de 3 de março de 1895. A pesquisa, a transcrição e a adaptação ortográfica é de Iba Mendes

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Aspectos biográficos:

Luiz Gastão de Escragnolle Dória nasceu no Rio de Janeiro, no dia 31 de janeiro de 1869, filho do Dr. Luiz Manuel das Chagas Dória e de dona Adelaide de Escragnolle Dória. Faleceu em 4 de janeiro de 1948, na mesma cidade.

"Amando profundamente os assuntos da cultura e da meditação, a eles se dedicou por toda a vida por toda a vida. Exerceu-se, desde a mocidade, em vários gêneros: cultivou a poesia rigorosa e metrificada, a harmoniosa poesia parnasiana; cultivou o poema em prosa, gênero dificílimo, prestigiado na França pelo maravilhoso Baudelaire e, no Brasil, pelo ardente e doloroso Raul Pompeia; cultivou a crônica, o conto, o ensaio, a conferência. Findou, porém, sua atividade literária como estudioso dos  temas de história, brasileira e mundial. Era essa, na sua última fase  a Revista da Semana, que já se vinha prolongando desde tantos e tantos anos  a especialização a que se consagrara. Possuindo um arquivo enorme, dispunha de recursos preciosos para os estudos que empreendia. E não eram somente recursos escritos; eram, também, recursos iconográficos, documentos, não raro, de maior valor. Sua colaboração desse caráter poderia formar livros e livros, se ele os tivesse querido, se ele tivesse possuído os recursos necessários para a realização de tal obra" (Jornal do Brasil, 15 de janeiro de 1948)

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Miss Star, de Escragnolle Doria

Conheci-a num teatro. E representava-se não sei quê; uma farsa qualquer. Alguém me apresentou-a sem cerimônia. Banidas as regras da etiqueta ficamos logo amigos. Conversamos como se fôramos íntimos. Agradou-me tanta singeleza de modos casada a tanta ingenuidade modesta.

Era a inglesinha mais gentil que até hoje produziu Albion. O seu retrato? Uma carinha boa, meiga, leal; olhos azuis como turquesas, cabelos lavados em ouro; uma boquinha de rosa desabrochada em manhãs de orvalho; uma cútis fina, feita de luar, acanhamentos adoráveis, gestos lânguidos, sorrisos ternos. Parecia saída do "Midsummer's Night".

Nascera em Londres, num feio quarteirão enegrecido pelos bulcões de fumo golfados das chaminés das grandes fábricas. Passara a infância vendo o Tamisa rolar as águas pretas pela capital do carvão. Educada em severo lar anglicano pouco conhecia o mundo. Habituara-se ao piedoso recolhimento dominical, às leituras da Bíblia nos penates. Não conhecia quase nada dos squares, dos passeios, dos arrabaldes da monstruosa London. De vez em quando ia a Druy Laue assistir algum espetáculo com umas tias velhas, cheias de shockings e bandós. Uma só vez fora campos em fora; mirara o céu, as árvores, a corrente múrmura dos regatos; ouvira a orquestra gazil dos passarinhos; libertara-se do tumulto de Regeut Street, esquecera os cabe, os horse-guards, os grooms, todas as figuras indispensáveis do caleidoscópio londrino.

Contou-me tudo isso simplesmente, sem exageros, Miss Arabele Star. Enquanto falava, eu, embevecido, a julgava deveras bonita, com o seu vestido cor de rosa seco, elegante, correto, obra prima de hábil modista. Simpatizou também comigo: amável, recompensou-me com um obrigado na saída do teatro quando lhe pus sobre os ombros esbeltos a capinha preta para protegê-la do sereno. De pé, no vestíbulo, vi-a, com tristeza, entrar no carro.

Trotavam os árdegos cavalos, o veículo sumiu-se na treva, deixei-me ficar ali até que desaparecesse.

Poucos dias depois encontrei miss Star num sarau. Reatamos o fio das confidências. Confessou-me ter ficado deslumbrada chegando ao Brasil. Extasiava-se diante das matas, dos rios, das paisagens, da natureza inteira. As cartas para as amigas de Londres iam repletas de minúcias sobre o belo país em que estava. Aos parentes mandava caixas com mimos exóticos: — folhas leves de avenca; folhas rendadas da verde samambaia; borboletas, umas de grandes asas azuis, outras pretas, veludosas, mosqueadas de pintas vermelhas; besouros esmeraldinos e áureos.

À irmãzinha Bettina, pensionista num longínquo colégio irlandês, enviara um coleiro empalhado.

Gostava de nossa língua em cujos vocábulos achava encantos especiais. Mesmo em inglês substituía sempre remember por saudade.

Expandiu-se comigo na franqueza de ligeiro flirt. Gabei-lhe a beleza do apelido. Miss Star! Não brilhava ela como os astros, como as castas estrelas de Otelo, your chaste stars? Mostrou-se satisfeita, lisonjeada com o madrigal.

Paliamos de Shakespeare a propósito de Julieta. Oh! poesia dos amores da filha do Capuleto! E os beijos na sombra, o bamboar da escada de seda no balcão opalescido pelo luar de Verona, os trilos da cotovia, a aurora listrando de ouro o horizonte, o frio noivado do sepulcro!

Eu preferia Desdemona, a tempestade de Chipre, a câmara onde flutuava a canção do salgueiro triste.

Quando menina, miss Star lera muito Walter Scott. Povoara a cabeça de sonhos, julgara-se Ivanhoe e Flora Mac Ivos, fechada na biblioteca de uma das tais tias cheias de shockings e bandós.

Descobrira por acaso, atrás de velha prateleira, coberto de pó, um tanto estragado, um volume de Byron. E Scheherazade viera contar-lhe histórias ao ouvido... Vivia com Zuleica, e, no ardor do entusiasmo, chegara a gravar, no tronco de uma palmeira o seu nome por baixo do da noiva de Abidos. Muitas vezes era já noite quando saía da biblioteca. Que de artifícios para esconder o fruto proibido! Que dor quando o surpreendendo procederam a rápido auto de fé!

Falou-se de teatros. Miss Star vira a excêntrica e nervosa Sarah. Uma neurótica de primeira ordem, observei pilheriando. Aborreceu-se um pouco com o remoque. Mostrou-se as mãozinhas que tinham aplaudido a grande atriz a ponto de inchar. Nunca se esquecera da inimitável Fedra, incestuosa, lânguida, apaixonada, da lirial Margarida Gautier, de todas as criações da famosa artista. Citei-lhe a Duse. Não a conhecia. Ouvira no Pedro II o Coquelin, único na graça, na veia cômica, no modo de acentuar o mínimo dito de espírito.

Descreveu-me a sua vida. Tinha poucas relações. Vivia com os pais num dos arrabaldes mais pitorescos do Rio de Janeiro. Dava-se apenas com uma brasileira, sua vizinha. Estimava-a bastante, o que provocou algum ciúme entre as outras amigas patrícias. Como, pois, aquela morena, olhos de jabuticaba, lábios sanguíneos, tranças  negras quais noites de escuro vencia as loiras donas dos lumes cor do céu, das róseas bocas, das comas de ouro fino? Conspiravam três contra a morena Dolores: miss Eugenia Laker, inglesa muito patriota e muito sardenta; miss Marta Laker, soberbo tipo de formosura, masculinizada, emérita jogadora de lawnienis; miss Lucy Biug, amante de corridas, a comprar poules, a descrever Epsom, a discorrer sobre stud-book os forfaits.

Miss Star gostava, porém, deveras de Dolores. Agradavam-lhe a animação e a vivacidade da brasileira.

Tanto fez miss Star que obrigou o pai a convidar-me para uma reunião íntima, honra difícil de conceder a estranhos por filhos da Inglaterra. Fui. Achei miss Star com o mesmo vestido do teatro. A coincidência, visivelmente afetuosa, penhorou-me.

Uma loirinha acanhada tocou ao piano o God Save The Queen. O auditório, contrito e sisudo ouviu atento o hino da pátria distante a pedir pela soberana ausente. Miss Star cantou uma suave melodia, "A última Rosa." Rouxinoleava de manso, calma. Tocante em verdade a fresca harmonia dessa voz de cristal ferido a soluçar — last rose of summer.

Lá estavam as amigas do peito, sorridentes, expansivas. Miss Star veio apresentar-me Dolores. A morena sorriu de maliciosa, o olhar brilhando preguiçoso de volúpia. Na fronte de miss Star pousou-se uma rugazinha de contrariedade. Para disfarçar o amuo trouxe a seleção de aquarelas que lhe haviam consumido longas horas de trabalho. Eram magníficas pela firmeza de tons, pela suavidade dos matizes. Copiara uma porção de cabeças infantis, preferindo as de Reynolds às de Greuze.

Separamo-nos. Precisei afastar-me do Rio e nunca mais a vi. Um dia encontrei na rua, a morena Dolores, já casada. Pedi-lhe notícias da amiga; partira para a terra natal, falara sempre em mim, não esquecera as breves horas de nossa intimidade.

"Não sei porque se me afigura pôr nisso tudo os olhos pela ultima vez", murmurara Miss Star na ocasião da despedida em tom de convicta melancolia.

De vez em quando, ao avistar Dolores, não deixava de interrogá-la a respeito de Miss Star. Escrevia ela a Dolores de contínuo, cartas longas, cheias de saudades, não olvidando jamais um post-scriptum afetivo e reservado para mim. Nem suspeitava Miss Star que eu lia tais missivas. Numa delas contava à amiga que os pais tinham resolvido casá-la com um patrício rico, mas a quem não amava. Dormia sua alma virgem, no ninho do coração não lhe cantara a ave do amor.

Imaginei-a logo burguesamente instalada num cottage engrinaldado de hera, a vigiar as travessuras dos filhinhos sobre os grandes gramados enquanto o circunspeto marido saboreava o Times na cadeira de balanço.

Na última de suas epístolas a Dolores, comunicava que partia para a Escócia, a convalescer de grave moléstia pulmonar. O clima do Brasil a restabeleceria logo, mas os médicos não lhe permitiam a viagem. E, em frases ungidas de tristeza, dava a perceber que não se lhe desvanecera no espírito a ideia da morte.

Não escreveu mais até que uma carta tarjada anunciou a Dolores e a mim que a inglesinha não pertencia ao número dos vivos. Nada fazia prever tão fatal desfecho, ainda nas vésperas de morrer gorjeara com sua a vozinha de cristal ferido. Finara-se na Escócia, junto aos lagos azuis, no declínio da primavera. Last rose of sumer.

De noite quantas vezes dela não me lembro! Contemplando o céu bordado de astros a cintilarem doces, tristes, julgo neles ver os olhos tristes, doces, da inglesinha. Na outra vida deve ser o mundo das estrelas a pátria de Miss Star.

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