O Eremita, de Oscar Wilde
Tradução publicada na revista "Fon-Fon",
em sua edição de 4 de abril de 1936. Pesquisa, transcrição e adaptação
ortográfica: Iba Mendes.
Fora, desde a infância, como que um ser dotado do perfeito conhecimento de Deus, e, sendo ainda adolescente, muitos santos, assim como certa mulher pura que habitava na cidade livre onde nascera, foram tocados de grande admiração pela grave sabedoria de suas respostas.
E quando
os pais o investiram da túnica e do anel da virilidade, ele os beijou e
atirou-se pelo mundo, para falar de Deus ao mundo. Pois muitos havia então no
mundo que dele só tinham conhecimento incompleto, ou idolatravam falsos deuses
que habitavam em florestas e não cuidavam de seus fiéis.
E ele
expôs o cabeça ao sol e fez jornada caminhando descalço, como caminham os
santos, e levando presa ao cinturão uma sacola de couro e uma bilha de argila
cozida.
E,
seguindo pela estrada, sentia-se cheio de alegria que vem do perfeito
conhecimento de Deus, e, sem descanso, erguia preces a Deus; e passado algum
tempo, atingiu uma estranha terra, na qual havia muitas cidades.
E passou
por onze cidades. E algumas delas eram em vales, e outras nas margens de
grandes rios, e outras sobre colinas. E em cada cidade encontrava um discípulo
que o amava e que o seguia, e de cada cidade grande multidão de gente também o
acompanhava, e o conhecimento de Deus se espalhou pela nação, e muitos dos
governadores se converteram, e os sacerdotes dos templos, nos quais havia
ídolos, verificaram que metade de seus benefícios se perdera, e que, quando
tocavam os tambores ao meio do dia, ninguém, ou muito poucos, vinha com pavões
e oblatos de carne, como era costume da terra antes do chegada do outro.
Todavia,
quanto mais o povo o seguia, quanto maior se fazia o número de seus discípulos,
maior se tornava a sua tristeza. E ignorava por que era tão grande a sua
tristeza. Pois que ele sempre falava de Deus, e da plenitude daquele perfeito
conhecimento de Deus, que o próprio Deus lhe concedera.
E, certa
tarde, ele passou pela undécima cidade, que era a cidade de Armênia, e seus
discípulos e uma grande multidão de gente o acompanhavam. E ele subiu a uma
montanha, e seus discípulos se puseram ao seu redor, e a multidão se ajoelhou
pelo vale.
E ele
apoiou a cabeça nas mãos e chorou, e disse a sua alma: "Por que será que
me sinto tão cheio de tristeza e de temor, e que cada discípulo meu é corno um
inimigo que ande à luz do dia?"
E sua
alma assim lhe respondeu: "Deus dotou-te com o perfeito conhecimento dele,
e tu desperdiçaste esse conhecimento com outros. A pérola de preço tu a
dividiste, a túnica inconsútil tu a fendeste. Aquele que dissipa sabedoria
rouba a si mesmo. É como quem entrega o seu tesouro a um ladrão. Não será Deus
mais sábio do que tu? Quem és tu para alienar o segredo que Deus te confiou.
Fui opulenta, outrora, e tornaste-me pobre. Tive outrora a visão de Deus, e
agora tu a escondeste de mim."
E de novo
ele chorou, porque sabia ser verdade o que sua alma lhe dizia, e que tinha dado
a outros o perfeito conhecimento de Deus, e que estava como alguém que se
agarrasse às vestes de Deus, e que sua fé já o deixava em razão do número dos
que nele acreditavam.
E disse,
então, a si mesmo: "Não mais falarei de Deus. Aquele que dissipa sabedoria
rouba a si próprio."
E,
passadas algumas horas, os discípulos vieram a ele e prosternaram-se e
disseram: "Mestre, fala-nos de Deus, pois que tens o perfeito conhecimento
dele, e só tu tens esse conhecimento”.
E ele
assim respondeu: "Eu vos falarei de todas as outras coisas que no céu e na
terra existem, mas de Deus não vos falarei. Nem agora, nem em tempo algum vos
falarei de Deus."
E todos
se encolerizaram contra ele e disseram-lhe: "Trouxeste-nos ao deserto para
que te ouvíssemos. Mandar-nos-ias embora com fome bem como à grande multidão
que fizeste seguir-te?"
E ele
assim respondeu: "Eu não vos falarei de Deus". E a multidão murmurou
contra ele e disse-lhe: "Trouxeste-nos ao deserto, e não nos deste de que
comer. Fala-nos de Deus e isso nos bastará."
Mas nenhuma palavra ele respondeu. Pois sabia que, se lhes falasse de Deus, alienaria
seu tesouro.
E os
discípulos se foram tristemente, e a multidão de gente tornou a seus lares. E
muitos pereceram no caminho.
E quando
ele ficou só, levantou-se e contemplou a lua, e por sete luas fez jornada, a
ninguém falando e a ninguém respondendo. E quando a sétima lua se extinguiu,
ele alcançou o deserto chamado de Grande Rio. E tendo achado uma caverna onde
habitara outrora um Centauro, tomou-a para morar, e fez para si uma cama de
caniços para se deitar; e fez-se Ermitão.
E a cada momento o Ermitão orava a Deus, que lhe tinha permitido ter
algum conhecimento dele e de sua sublime grandeza.
Ora,
certa tarde, achando-se o Eremita sentado diante da caverna que tinha tomado
por habitação, avistou um jovem de feições em que havia maldades e beleza, o
qual passava malvestido e de mãos vazias. Todas as tardes o jovem passava de
mãos vazias para tornar todas as manhãs com as mãos recheadas de púrpura e de
pérolas. Pois que era um Ladrão e roubava as caravanas dos mercadores.
E o
Eremita olhava-o, e ele se compadecia. Mas nenhuma palavra dizia. Porque sabia que
quem fala perde a fé.
E, certa
manhã, como o jovem voltasse com as mãos cheias de púrpura e de pérolas, parou
e o franziu a fronte e bateu com os pés na areia, e disse ao Eremita: "Por
que me olhas de tal modo quando passo por aqui? Que vejo nos teus olhos? Pois
nenhum homem me olhara antes de tal modo. E isso me mortifica e me
perturba."
E o
Eremita assim lhe respondeu: "O que vês nos meus olhos é piedade. Chame-se
piedade isso com que te observam meus olhos".
E o jovem
riu com desdém, e exclamou: "Eu tenho púrpura e pérolas em minhas mãos, e
tu só tens uma cama de caniços para te deitares. Que piedade terás de mim? E
por que razão essa piedade?”
“Tenho
piedade de ti", disse o Eremita, "porque não tens o conhecimento de
Deus."
"Será
esse conhecimento de Deus algo precioso?" — perguntou o jovem.
E
chegou-se mais perto da boca da caverna.
“Mais
precioso do que toda a púrpura e todos as pérolas do mundo", — respondeu o
Eremita.
“E tu o
alcançaste" — indagou o ladrão.
E aproximou-se
mais ainda.
“Outrora,
na verdade", retrucou o Eremita, cheguei a possuir o perfeito conhecimento
de Deus. Mas, na minha leviandade, desfiz-me dele, e dividi-o com os homens.
Todavia, mesmo hoje, esse conhecimento, tal como ainda me resta, é mais precioso
para mim que púrpura e que pérolas.
E,
ouvindo isso, o jovem ladrão deitou fora a púrpura e as pérolas que trazia nas
mãos, e, sacando uma espada de aço recurvado, disse ao Eremita: "Dá-me,
sem demora, esse conhecimento de Deus que tu possuis, ou te matarei. Por que
não hei de matar quem tiver um tesouro maior que meu tesouro?"
E o
Eremita abriu os braços, e disse: "Não seria melhor para os mais altos domínios
de Deus a Ele orar, que viver no mundo e não ter conhecimento dele? Mata-me,
se for do teu desejo. Mas não darei a ninguém meu conhecimento de Deus!"
E o jovem
ladrão ajoelhou-se e implorou-lhe, mas o Eremita não lhe quis falar de Deus,
nem dar-lhe o seu Tesouro. E o jovem ladrão levantou-se e disse-lhe: "Seja
como quiseres. Quanto a mim, irei à Cidade dos Sete Pecados, que só se encontra
três dias daqui, e em troca da minha púrpura eles me darão prazer, e pelas
minhas pérolas eles me darão alegria”.
E o
Eremita chamou-o, e seguiu-o e implorou-lhe. Durante três dias ele seguiu o jovem
ladrão pela estrada e rogou-lhe que voltasse, e que não entrasse no Cidade dos
Sete Pecados.
E, de
quando em quando, o jovem ladrão voltava-se para o Eremita, chamava-o e
dizia-lhe: "Queres dar-me esse conhecimento de Deus, mais precioso que púrpura
e pérolas? Se me deres, não entrarei na cidade."
E o
Eremita respondia sempre: "Tudo que eu tiver te darei, menos isso, porque
isso não é justo que eu dê."
E no
crepúsculo do terceiro dia chegaram perto das portas vermelhas da Cidade dos
Sete Pecados. E vinha da cidade o som de muitos risos.
E o jovem
ladrão riu por seu turno, e procurou bater na porta. E, ao fazê-lo, o Eremita
se arremessou e agarrou-o pelas abas do vestuário, e disse-lhe:
"Estende
as mãos, coloca os braços em volta do meu pescoço, e o ouvido junto aos meus
lábios, e eu te darei o que me resta do conhecimento de Deus." E o jovem
ladrão parou.
E quando
o Eremita se desfez do seu conhecimento de Deus, caiu no chão e chorou, e
profunda escuridão o escondeu da cidade e do jovem ladrão, de modo que ele não
mais os viu.
E como
ficasse ali prostrado e chorando, apercebeu-se de que alguém lhe estava ao lado;
e Aquele que lhe estava ao lado tinha os pés de bronze e os cabelos como lã. E
Ele ergueu o Eremita, e disse-lhe: "Tiveste até agora o perfeito
conhecimento de Deus. Agora terás o perfeito amor de Deus. Por que
choras?" e beijou-o.
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