9/22/2016

O homem das multidões (Conto), de Edgar Allan Poe


O homem das multidões, de Edgar Allan Poe

Tradução publicada na Revista da Semana, em sua edição de 7 de novembro de 1942. Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2016)

 "O homem das multidões" (Conto), de Edgar Allan Poe

Houve quem dissesse judiciosamente de certo livro alemão: “Es lässt sich nicht lesen” (não se deixa ler). Do mesmo modo há segredos que não se deixam revelar.
Quantos homens morrem nos seus leitos torcendo convulsivamente as mãos dos espetcros que os confessam e cravando neles olhos lastimáveis! Quantos morrem com o desespero na alma, convulsionados pelo horror dos mistérios que não querem ser revelados! Algumas vezes, ai! a consciência humana geme sob o peso de um horror tão fundo que só o túmulo pode aliviá-la desse fardo. Assim, a essência do crime não pode jamais ser explicada.
Ainda não há muito tempo, ao cair de uma tarde de outono, estava eu sentado A janela do hotel D... em Londres. Convalescia então de uma doença de alguns meses, e à medida que ia recuperando as forças, sentia-me numa destas disposições felizes que são precisamente o contrário do aborrecimento; disposições em que a apetência moral está vivamente estimulada pela desaparição das cataratas que cobriam a visão espiritual; em que o espírito eletrizado ultrapassa tão prodigiosamente as suas faculdades ordinárias, que a ingênua e sedutora divisa de Leibnitz vence a retórica louca e fraca de Górgias. A simples ação de respirar era um gozo para mim; e mesmo de coisas muito plausíveis para desgosto a minha sensibilidade tirava um prazer positivo.  Tudo me interesse a curiosidade. Durante a maior parte da tarde, com um cigarro na boca e um jornal sobre os joelhos, diverti-me ora a ver os anúncios, ora a observar a sociedade mista do salão, ora a olhar para a rua através dos vidros embaciados pelo fumo.
 A rua do hotel D..., uma das principais artérias da cidade, estivera todo o dia cheia de gente. Com o cair da noite, a multidão aumentara ainda, de sorte que, ao acender dos revérberos, duas correntes de povo, espessas e contínuas, desfilavam por defronte da porta. Aquele oceano tumultuoso de cabeças humanas penetrava-me de uma emoção deliciosa e perfeitamente nova. Nunca me sentira numa situação semelhante àquela em que me achava nesse momento particular da noite. Por fim, deixei de prestar atenção ao que se passava no hotel; absorto na contemplação da cena exterior.
As minhas primeiras observações foram abstratas e gerais, olhando os transeuntes em massa e não os considerando senão na sua harmonia coletava. Depois, desci aos pormenores, e examinei, com um interesse minucioso, as inumeráveis variedades de figuras, de modas, de aspectos, de modos de andar, de rostos e de expressões fisionômicas...
A maior parte dos que passavam tinha o ar decidido de quem vai em serviço e parecia não pensar senão em abrir caminho através da chusma. O seu aspecto era carrancudo e os olhos moviam-se nas órbitas com extraordinária vivacidade; os que eram empurrados por algum transeunte vizinho concertavam o traje e seguiam para diante, sem mostrar o menor sintoma de impaciência.
Outros (uma classe ainda mais numerosa), vermelhos, inquietos nos seus movimentos, falavam consigo mesmos e gesticulavam, como que sentindo-se sós, pelo próprio fato da multidão inumerável que os cercava. Esses, quando alguém lhes impedia o caminho, deixavam logo de resmungar, mas redobravam a gesticulação e, com um sorriso exagerado, esperavam a passagem da pessoa que lhes servia de obstáculo. Se os empurravam, cumprimentavam profusamente os empuxadores e pareciam confusos. Nestas classes de homens, além das circunstâncias que acabo de notar, não havia nada de característico. O seu vestuário pertencia a esta ordem que está exatamente definida pela palavra: decente. Eram, sem dúvida nenhuma, passeantes, procuradores, negociantes, fornecedores, agiotas, enfim o ordinário banal da sociedade; homens ociosos e homens ativamente ocupados de negócios pessoais, conduzindo-os sob a sua própria responsabilidade. Esta gente pouco mereceu da minha atenção.
A raça dos caixeiros saltava aos olhos; aí distingui duas divisões notáveis. Havia os caixeiros das lojas de modas, moços empolados dentro dos seus fraques, com botas brilhantes, cabelo perfumado e ar petulante. Pondo de parte certo não sei quê de rococó nas maneiras, que cheirava a metro e a paninho a léguas de distância, o gênero destes indivíduos pareceu-me a exata reprodução do que fora a perfeição do bom tom doze ou dezoito meses atrás. Quero dizer que apresentavam o rebotalho das graças da "pequena nobreza", e isto, na minha opinião, é a melhor definição desta classe.
Quanto aos primeiros caixeiros das casas sólidas, ou "steady old fellows", era impossível confundi-los.  Conheciam-se pelos seus trajes pretos ou escuros, de uma aparência confortável, pelas suas gravatas e coletes brancos, pelos sapatos largos e sólidos com meias grossas ou polainas. Tinham todos a cabeça um pouco calva e a orelha direita singularmente derrubada pelo hábito de trazer a pena. Observei também que tiravam e tornavam a pôr o chapéu com ambas as mãos e que traziam os relógios presos por cadeias de ouro, de um feitio sólido e antigo. A sua afetação era a respeitabilidade (não pode haver afetação mais honrosa).
Havia ainda bom número de indivíduos de aparência brilhante, que reconheci logo por pertencerem à raça dos gatunos de alta esfera, de que todas as cidades grandes estão infestadas. Estudei curiosamente esta espécie de "nobre" e pareceu-me incrível como chegam a passar por verdadeiros "cavalheiros", mesmo entre os próprios cavalheiros. A exageração dos punhos e o seu ar de franqueza excessiva deviam traí-los à primeira vista.
Os jogadores de profissão (descobri uma quantidade deles) reconheciam-se ainda melhor. As suas "toilettes" eram variadíssimas, desde a do perfeito proxeneta trapaceiro, de colete de veludo, gravata vistosa, corrente de chumbo dourado e botões de filigrana, até à "toilette" clerical escrupulosamente simples, incapaz de despertar a menor suspeita. Todos porém se distinguiam por uma cor baça e doentia, por não sei quê obscuridade vaporosa do olhar, pela compressão e palidez dos lábios. Havia, ainda, outros dois sinais que me faziam logo adivinhá-los: um tom baixo e reservado na conversação, e uma disposição mais que ordinária a estender o dedo polegar, até formar um ângulo reto com os outros dedos.
Muitas vezes, na companhia destes larápios, vinham outros um pouco diferentes. Contudo, via-se que eram aves da mesma pena. Podemos defini-los assim: "cavalheiros" que vivem do seu espírito. Esta raça, para explorar o público, divide-se em dois batalhões: gênero dândi e gênero militar. Na primeira classe, os caracteres principais são: longos cabelos e sorrisos; na segunda, longos casacos e franzimentos de sobrolho.
Descendo a escala do que se chama "pequena nobreza", achei assuntos de meditação mais negro e mais profundos. Vi bufarinheiros judeus, com os olhos brilhantes de falcão, em fisionomias cujo rosto não era senão abjeta humildade. Mendigos de profissão, empurrando pobres de melhor espécie, a quem só o desespero lançara nas sombras da noite para implorar a caridade.
Inválidos fraquíssimos, semelhantes a espetros, sobre os quais a morte havia já pousado mão segura, que coxeavam ou vacilavam através da chusma, erguendo para todos olhos suplicantes, como que em busca de alguma consolação fortuita, de alguma esperança perdida! Raparigas honestas, regressando de um labor prolongado a um lar sombrio, e tremendo, mais tristes que indignadas, diante das olhadelas dos atrevidos, cujo contato direto não podiam evitar. Prostitutas de todas as espécies e de todas as idades; a beleza incontestável no primor da sua feminilidade, fazendo lembrar a estátua de Luciano, cuja superfície era mármore de Paros e o interior cheio de imundície; a leprosa em andrajos, repelente e absolutamente decaída; a bruxa velha, rugosa, pintada, estucada, carregada de joias, fazendo uma última tentativa para a mocidade; a criança pura, apenas formada, mas já experiente, por uma longa camaradagem  nas monstruosas provocações do seu comércio e ardendo em desejos de ser classificada ao nível das suas primogenituras no vício. Bêbados inumeráveis e indescritíveis:  estes esfarrapados, cambaleantes, desarticulados, com o rosto pisado e os olhos turvos; aqueles com os trajes inteiros ainda, porém sujos, uma arrogância irresoluta no olhar, lábios grossos e sensuais, rostos rubicundos e sinceros; outros, vestidos de pano, que  noutro tempo havia sido bom e ainda agora escrupulosamente escovado: alguns caminhando com passo firme e mais largo que o natural, mas cujas fisionomias eram terrivelmente pálidas, os olhos atrozmente espantados e vermelhos e que, no seu andar extravagante através da multidão, agarravam com dedos trêmulos todos os objetos que se achavam ao seu alcance. Depois vinham os pasteleiros, os mensageiros, os carvoeiros, os limpa-chaminés com os tocadores de órgão, os saltimbancos, os trovadores ambulantes. Enfim os artistas maltrapilhos e os operários de todas as espécies, esgotados pelo trabalho. E toda aquela turba ia com uma atividade ruidosa e desordenada cujas discordâncias mortificavam o ouvido e produziam nos olhos uma sensação dolorosa.
À medida que a noite se aprofundava, aprofundava-se também o meu interesse pela cena; porque não só se ia alterando o caráter geral da chusma (as suas feições mais nobres desvanecendo-se com a retirada gradual da melhor parte da povoação, e realçando-se as mais grosseiras à medida que o adiantamento da hora tirava da toca novas espécies de infâmia), mas os raios dos bicos de gás, fracos primeiro, enquanto lutavam com o crepúsculo da tarde, tinham agora vencido a escuridão e derramavam sobre todos os objetos uma luz brilhante e agitada. Tudo era negro, mas resplandecente, como aquele ébano com o qual comparavam o estilo de Tertuliano.
Os estranhos efeitos da luz obrigaram-me a reparar nas fisionomias dos indivíduos; e posto que a rapidez com que aquela multidão fugia diante da janela não me permitisse lançar sobre cada rosto senão uma vista de olhos, parecia-me, contudo, que, graças à minha singular disposição moral, podia ler, muitas vezes, no breve intervalo de um olhar, a história de longos anos. 
Com a fronte encostada aos vidros, ocupava-me assim em examinar a chusma, quando descobri, de repente, uma fisionomia (a de um velho decrépito, de sessenta e cinco a setenta anos) uma fisionomia que me atraiu e absorveu logo a atenção pela sua absoluta idiossincrasia. Nunca vira na minha vida expressão semelhante àquela. Lembro-me de que o meu primeiro pensamento, ao vê-lo foi que Retzch, se o houvesse contemplado, tê-lo-ia preferido grandemente às figuras que lhe serviram de modelo para pintar o seu demônio.
Como eu procurava, durante o curto instante de um primeiro olhar, fazer uma análise qualquer do sentimento geral que aquela criatura estranha me comunicara, senti elevarem-se-me confusa e paradoxalmente no espírito as ideias da vasta inteligência, da circunspeção, da cupidez, da avareza sórdida, do sangue frio, da perversidade, da sede sanguinária, do triunfo, da alegria, do excessivo terror do desespero intenso e supremo. Senti-me singularmente estimulado, absorto, fascinado. Quão extraordinária deve ser, disse eu comigo mesmo, a história escrita naquele peito! Veio-me então um desejo ardente de não perder o homem de vista sem saber alguma coisa a seu respeito.
Enfiei precipitadamente o meu paletó, peguei no chapéu e na bengala e fui para a rua, metendo-me no meio da chusma, na direção que lhe tinha visto tomar, porque a singular criatura havia já desaparecido. Descobri-o, finalmente, não sem alguma dificuldade; aproximei-me e segui-o de muito perto, com grandes precauções, de forma a que ele não desse por mim.
Podia agora estudá-lo à minha vontade. Era baixo, muito magro e aparentemente fraco. Trazia o traje sujo e rasgado; mas, quando passou em frente de um candelabro, reparei que a sua camisa, posto que suja, era de boa qualidade; e, se os olhos não me enganaram, através de um rasgão do capote, evidentemente comprado em segunda mão, que o envolvia todo, brilhavam um diamante e um punhal. Estas observações excitaram-me a tal ponto a curiosidade que resolvi seguir o desconhecido por toda a parte onde lhe aprouvesse ir.
Era já noite cerrada, e o nevoeiro espesso, que pairara sobre a cidade, ia-se convertendo em chuva grossa e contínua. Aquela mudança de temperatura produziu um efeito estranho sobre a chusma, que se agitou com um movimento novo, escondendo-se sob um mundo de guarda-chuvas.
A ondulação, os encontrões e o zunzum das vozes tornaram-se dez vezes mais fortes. Pela minha parte não fiz grande caso da chuva (ardia-me ainda no sangue um resto de febre antiga, de sorte que a umidade para mim, embora perigosa, era uma voluptuosidade). Atei um lenço à roda do pescoço e deixei-me ir. Durante mais de meia hora o velho lutou com dificuldades para abrir caminho através da grande artéria, e eu então quase tinha de andar sobre ele para não o perder de vista; mas como nunca se voltara para trás, não podia dar por mim. Daí a pouco meteu-se por uma travessa, a qual, posto que cheia de gente, não estava tão atulhada como a rua principal que acabávamos de deixar. Quando chegou ali começou a andar lentamente, com certa hesitação. Atravessou e tornou a atravessar a turba diferentes vezes sem fim algum aparente; e a chusma era tão espessa que cada movimento novo me obrigava a segui-lo mais de perto. A rua era estreita e comprida. O homem passeou-a perto de uma hora e nesse meio tempo a multidão dos transeuntes reduziu-se, pouco a pouco; comparada à quantidade de gente que se vê de ordinário em Broadway, próximo do parque, tão grande é a diferença entre a concorrência de Londres e a da cidade americana mais populosa.
Segunda mudança de itinerário levou-me a uma praça brilhantemente iluminada, exuberante de vida. Então as maneiras do homem voltaram à primeira forma; deixou prender a barba sobre o peito, ergueu os olhos debaixo das sobrancelhas carregadas, olhou para todos os lados e apressou o passo regularmente, sem interrupção. Causou-me surpresa vê-lo tornar para trás depois de ter dado a volta à praça; e fiquei ainda mais admirado quando o vi recomeçar aquele passeio outras tantas vezes; de uma vez, ao voltar-se subitamente, ia-me descobrindo. Este exercício levou-lhe ainda uma hora, durante a qual a quantidade dos transeuntes havia diminuído consideravelmente. A chuva caía grossa, o ar resfriava, cada um tratara de se recolher.
Com um movimento de impaciência o homem errante passou para uma rua obscura, relativamente deserta. Depois desatou a correr por ela fora, (um quarto de milha pouco mais ou menos) com uma agilidade que eu não teria nunca suspeitado num indivíduo tão idoso; uma agilidade tal que me custava a segui-lo.  Em alguns minutos desembocamos num bazar vasto e tumultuoso. O desconhecido, que apresentava sempre um ar apropriado às localidades, retomou o seu andar primitivo, furando por aqui e por ali, através dos compradores e dos vendedores.
Durante uma hora ou hora e meia, que divagamos naquele lugar, precisei de usar de toda a prudência para não o perder de vista, sem ao mesmo tempo lhe atrair a atenção. Felizmente, as minhas galochas de borracha não faziam no solo o menor ruído; por isso, o nosso homem nunca chegou a perceber que era seguido. Ele entrava sucessivamente em todas as lojas, não comprava nada, não dizia uma palavra e mirava tudo com um olhar vago e espantado. A sua conduta maravilhava-me cada vez mais, estimulando-me a não o largar enquanto não tivesse satisfeito a minha curiosidade.
Ao soar das onze horas, toda a gente se deu pressa em sair do bazar. Tendo sido empurrado por um lojista, que fechava apressadamente os mostradores, o homem estremeceu violenta e convulsivamente, saiu para a rua, olhou um instante com ansiedade incrível, através de muitas travessas tortuosas e desertas, até chegarmos outra vez à grande rua do hotel D..., donde havíamos partido. Contudo, o aspecto da rua tinha mudado. O gás dos revérberos brilhava sempre; mas a chuva caía copiosamente, e apenas de vez em quando se viam alguns viandantes. O desconhecido empalideceu. Deu alguns passos, com um ar triste, na avenida, havia pouco, populosa, depois suspirou profundamente, tomou a direção do rio, e, internando-se num labirinto de travessas e becos afastados, chegou enfim defronte de um dos teatros principais, que estava prestes a fechar e cujo público se precipitava na rua por todas as portas. O homem abriu a boca, como para respirar, e meteu-se no meio da chusma. Ao mesmo tempo pareceu-me ver diminuir a tristeza profunda da sua fisionomia. Deixou pender outra vez a cabeça sobre o peito e retomou a forma sob a qual me aparecera pela primeira vez. Observei que se dirigia sempre para onde o apertão era maior; mas não pude compreender absolutamente nada do seu comportamento estranho.
Entretanto, o público ia-se dispersando, e, na mesma proporção, voltaram ao velho a sua tristeza e as suas hesitações. Seguiu de perto, durante muito tempo, um grupo dez ou doze estroinas; mas pouco a pouco, um a um, o número diminui, reduzindo-se a três indivíduos, que ficaram todos numa rua estreita, obscura e pouco frequentada. Então o desconhecido fez uma pausa e pareceu ficar, durante um momento, imerso em profundas reflexões. Súbito, com uma agitação evidente, enfiou a toda pressa por um caminho que nos conduziu ao extremo da cidade, a regiões muito diferentes das que havíamos atravessado até ali.
Estávamos agora no bairro mais insalubre de Londres, onde todos os objetos têm o estigma horrível da pobreza misérrima e do vício incurável. À luz acidental de um revérbero sombrio, apercebiam-se as casas de madeira, altas, antigas, carunchosas, ameaçando ruína e em direções tão várias e tão numerosas, que mal se podia adivinhar, no meio delas, a aparência de uma passagem. As pedras da calçada, expulsas dos seus alvéolos pela relva triunfante, andavam espalhadas ao acaso; as valas das ruas estavam obstruídas pelas imundícies estagnadas. Toda a atmosfera regurgitava de desolação. Contudo, à medida que avançávamos, sentimos reavivarem-se gradualmente os ruídos da vida humana. Por fim apareceram, oscilantes, aqui e ali, grandes bandos de homens dos mais infames que compõem a povoação de Londres. O espírito do velho tornou a palpitar, como a luz de um candeeiro prestes a extinguir-se. Avançou outra vez com um pasmo elástico. De repente, ao voltar de uma esquina, apareceu-nos a luz flamejante de um desses templos enormes suburbanos da intemperança um palácio do demônio Gin.
Era quase madrugada; mas a chusma dos bêbados miseráveis apertava-se ainda em torno da faustosa porta. Ante aquele espetáculo tumultuoso, o velho deu quase um grito de alegria; retomou logo a fisionomia primitiva e começou a passar e repassar em todos os sentidos, pelo meio da multidão, sem fim algum aparente. Contudo, não havia ainda muito tempo que ele se entregava àquele exercício, quando um movimento anormal na direção das portas anunciou que o taberneiro ia fechar. O que observei então na fisionomia do indivíduo singular que me inspirava tanto interesse, foi alguma coisa mais intensa que o desespero. Todavia, sem um momento de hesitação e com uma energia louca, voltou imediatamente atrás, ao centro da poderosa Londres. Correu ligeiramente durante muito tempo (e eu sempre atrás dele, com um espanto crescente, que me incitava cada vez mais a não abandonar uma investigação, na qual o meu espírito se absorvia inteiramente).
Enquanto prosseguíamos na nossa carreira, levantou-se o sol. Quando chegamos outra vez ao ponto de reunião comercial da populosa cidade, a rua do hotel D... apresentava um aspecto de atividade e de movimento humano quase igual ao que havíamos presenciado na noite precedente. E ainda ali, no meio da confusão sempre crescente, obstinei-me longo tempo a seguir o desconhecido.
Como de ordinário ele passeava de um para o outro lado, e em todo o dia não saiu do turbilhão daquela rua. Aproximavam-se já as sombras da segunda noite.... Eu estava extenuado! Então, estacando em frente do homem errante, olhei-o intrepidamente. Mas sem prestar a menor atenção, continuou o seu passeio solene; enquanto que eu, tendo renunciado a persegui-lo mais tempo, ficava absorto e pasmado na sua contemplação!
Este velho, disse eu finalmente comigo mesmo, é o tipo e o gênio do crime profundo; o homem que não pode estar só: o homem das multidões. Segui-lo-ia em vão: nunca a saber coisa alguma, nem dele nem das suas ações!
Um coração perverso é um livro mais repelente que o “Hostulus animae”; e é talvez uma das grandes misericórdias de Deus "que não se deixe ler".

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