O anel da múmia, de Conan Doyle
Publicado originalmente na revista "Eu Não Sei", edição de 31 de maio de 1919. A Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica é de Iba Mendes (2016)
O professor John Vansittart Smith, membro da Real Socidade Britânica, já era notável por seus estudos no domínio da zoologia, da botânica e da química quando se dedicou mais especialmente às ciências orientais, chamando logo a atenção dos especialistas em uma Memória sobre as inscrições hieroglíficas de El Rab.
Publicado originalmente na revista "Eu Não Sei", edição de 31 de maio de 1919. A Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica é de Iba Mendes (2016)
O professor John Vansittart Smith, membro da Real Socidade Britânica, já era notável por seus estudos no domínio da zoologia, da botânica e da química quando se dedicou mais especialmente às ciências orientais, chamando logo a atenção dos especialistas em uma Memória sobre as inscrições hieroglíficas de El Rab.
E
apaixonou-se a tal ponto por esses assuntos que desposou uma jovem egiptóloga,
autora de vários volumes sobre a quarta dinastia, e começou a reunir dados para
um livro em que pretendia resumir os descobrimentos de Leipsius e o gênio de
Champolion.
Esse
trabalho obrigou-o a ir várias vezes a Paris, visitar o museu do Louvre, onde
passava horas inteiras curvado sobre a vitrine dos papiros. Ora o ilustre John
Vansittart Smith não era um tipo de beleza e bem o sabia; mas apesar disso
teve uma impressão desagradável ouvindo atrás de si uma voz exclamar em inglês:
— Que tipo
esquisito!
O sábio
mordeu os lábios e curvou-se ainda mais.
— É verdade
— disse outra voz. — Tem uma cabeça disforme.
— E tem um
não sei quê de egípcio — continuou a primeira voz. — Dir-se-ia que de tanto
contemplar múmias está se mumificando.
Exasperado,
o sábio voltou-se e com grande surpresa viu que os conversadores eram dois
ingleses que, de costas para ele, observavam um dos guardas da sala, que a
certa distância limpava uma barra de metal.
Instintivamente
o sábio observou também o guarda e teve um sobressalto. Na verdade aquele homem
tinha uma face que impressionava, de uma semelhança espantosa com as múmias
imponentes dos antigos Faraós. Era uma reprodução exata das estátuas que
enchiam a sala; até pela largura dos ombros e estreiteza dos quadris aquele
homem tinha os caracteres de um egípcio.
O professor
Smith aproximou-se com a intenção de lhe dirigir a palavra, mas observando mais
de perto o estranho homem sentiu-se sem coragem para interpelá-lo. Tamanha
semelhança chegava a ser sobrenatural. A pele da fronte e das faces do guarda
era lisa como um pergaminho, parecia não ter poros.
— Onde está
a coleção de Mênfis? — disse afinal o sábio, para não ficar em silêncio diante
dele.
— Ali —
respondeu o guarda, sem erguer a cabeça.
— O senhor é
egípcio, não é verdade? — perguntou ainda o professor Smith.
O homem
ergueu a cabeça e fitou seu interlocutor com estranhos olhos negros,
envidraçados, mas que brilhavam com singular intensidade. E o mais
impressionante é que havia nesses olhos uma expressão de cólera e aversão.
— Não,
senhor: sou francês.
E continuou
em seu trabalho. O sábio tentou voltar a suas pesquisas, mas seu espírito
estava absorvido por aquela espantosa visão. E, fosse pela fadiga acumulada de
dias anteriores, fosse por uma espécie de fascinação inconsciente, curvou pouco
a pouco a cabeça sobre o peito e adormeceu tão profundamente que não ouviu a
campainha que anunciava o fechamento do Museu, e ali permaneceu.
***
Os ruídos
noturnos foram cessando pouco a pouco. O sino da igreja de Notre Dame bateu
meia noite e o sábio continuava dormindo. Somente à uma hora da madrugada
recobrou a consciência e sua primeira impressão foi a de que se achava em seu
quarto. Mas em pouco a luz da lua entrando pela claraboia mostrou-lhe as
fileiras de múmias e sarcófagos, que o rodeavam. Que horror! Os guardas não o
tinham visto oculto naquele local recôndito por trás de uma espessa coluna, e
agora tinha que passar a noite ali, sujeito a explicações desagradáveis no dia
seguinte.
O sr. Smith
não era medroso, mas isso lhe causou uma impressão desagradável. Em todo o
caso, como não havia outro remédio, o que de melhor tinha a fazer era
acomodar-se do melhor modo e continuar a dormir.
Infelizmente
nem isso lhe era possível, pois pouco depois viu a luz amarelada, de uma
lanterna que se aproximava. Ficou imóvel à esperar e uma nova observação veio
aumentar seu espanto. Apesar do silêncio absoluto da sala, ele não ouvia os
passos da pessoa que trazia a lanterna.
Mas pouco
depois viu um rosto; um rosto que, alcançado pelo pequeno resplendor da
lanterna, parecia suspenso no ar; um rosto de palidez cadavérica e pele com
tons metálicos, o rosto do estranho guarda, que tanto lhe chamara atenção à
tarde.
O primeiro
movimento de Smith foi adiantar-se e relatar-lhe o ocorrido, mas um instinto secreto
deteve-o imóvel no recinto que o ocultava.
O homem
chegou junto de uma das grandes vitrines e, tirando do bolso uma chave,
abriu-a. Tirou dela uma múmia, que deitou no piso com grandes cuidados, colocou
ao lado a lanterna e, sentando-se no chão, com as pernas cruzadas à moda
oriental, começou a desenrolar as longas tiras de linho que envolviam a múmia.
Um forte odor de aromáticos exalou-se pela sala e, de súbito, o professor Smith
teve um gesto de imensa surpresa.
Libertada
das ataduras funerárias, uma basta cabeleira negra desprendia-se e caía entre
as mãos do guarda. A segunda atadura retirada descobriu um rosto moreno mas
enrubescido e tranquilo, com olhos lampejantes e boca de desenho perfeito e
soberbo.
Somente uma
mancha escura na fronte perturbava a beleza daquela mulher, morta há seis mil
anos.
O guarda
fitava-a com enlevo; depois, enlaçando a múmia nos braços, murmurou com voz
trêmula de emoção:
— Amada... minha amada!
Mas nesse
momento seu olhar encontrou o rosto do professor Wade, que, não podendo conter
a curiosidade, adiantara-se um pouco.
Ergueu-se
com ímpeto furioso e aproximou-se.
—
Desculpe-me — balbuciou o professor. — Eu adormeci à tarde estudando aqui e
fiquei...
O guarda
tirou do cinto um afiado punhal e perguntou:
— Então o
senhor viu o que eu estava fazendo?
— Sim...
— Se eu o tivesse notado há dez minutos
tê-lo-ia matado como um cão; mas agora prefiro que veja tudo até o fim. Mas não
se mova, não intervenha... Haja o que houver. Mas diga-me: quem é o senhor?
— Eu... eu sou o professor John Vansittart
Smith.
— Ah... Foi
o senhor quem publicou recentemente um livro sobre El Rab?... Imbecil!... E
pensou encontrar o segredo de nossa civilização nas inscrições dos
monumentos?... Louco!... Esse segredo está em nossa filosofia hermética e em
nossa ciência mística.
— Mas...
mas... — balbuciou o professor atônito — o senhor disse "nossa
civilização".
Mas já o
guarda não lhe dava atenção. Volvendo os olhos para a múmia tivera um gemido
profundo. O sábio voltou-se também e quedou-se gelado de espanto.
Exposto à
ação do ar, o rosto da múmia desfigurara-se rapidamente. A pele secara, os
olhos tinham-se afundado nas órbitas e os lábios encolhendo-se descobriram os
dentes amarelados. Não fosse a mancha escura na fronte e o sr. Smith não
acreditaria que era aquele o mesmo rosto que ele vira pouco antes, com uma tão
soberana beleza.
O guarda
gemeu ainda, com expressão de mágoa infinita, mas fez um esforço e disse com
exaltação:
— Não faz
mal. Agora pouco importa seu corpo inerte, pois que posso afinal ir reunir-me a
seu espírito.
E, como o
professor o fitasse, convencido de que estava diante de um louco, ele
acrescentou:
— Chegou o
momento que eu tanto esperei. Afinal... afinal!.. Mas antes preciso que eu o
faça sair daqui. Venha... venha!
Apanhou a
lanterna e seguiu à frente do sábio através das extensas salas do museu.
Desceram uma escada e chegaram a uma porta que dava para a rua. Mas em vez de
guiá-lo por ali o guarda empurrou-o para uma porta baixa, que se abria de um
lado do corredor.
O ilustre
egiptólogo hesitou, mas a curiosidade foi mais forte do que o medo e ele seguiu
o estranho homem.
Ali era uma
espécie de portaria com uma mesa, uma cadeira e uma cama de ferro. O guarda
indicou a cadeira ao sábio, sentou-se à beira da cama e começou:
— Estava
escrito que não voltaria ao descanso eterno sem fazer a um mortal a narração de
meus sofrimentos, como um aviso aos temerários que tentam opor-se às leis da
Natureza. Sou egípcio e nasci, sob o reinado de Tutmés, no ano 1600, antes daquele
que chamam Cristo. Chamo-me Senra. Meu pai era chefe dos sacerdotes de Cairis,
no templo magnífico de Aváris. Antes de completar 17 anos já eu possuía os
conhecimentos das artes místicas de que fala a Bíblia dos homens de hoje.
Depois continuei a estudar os segredos da Natureza e alcancei na ciência
pináculos que nenhum outro homem logrou conhecer. Porém o que mais me atraía
era o estudo do princípio vital, buscando um meio de imunizar as criaturas
contra todas as enfermidades e talvez contra a morte. Acabei por descobrir uma
substância, que, injetada no sangue, dava ao corpo energia para resistir ao
tempo, às enfermidades e aos acidentes; uma substância que podia manter suas
prodigiosas faculdades senão eternamente pelo menos durante milhares de anos. Note
que não se tratava de coisa sobrenatural ou misteriosa; não. Tratava-se de uma
simples operação de química. Com louca alegria inoculei em minhas veias esse
líquido. Depois busquei um companheiro para minha existência eterna e escolhi
um jovem sacerdote de Thot, chamado Parmés, que havia conquistado minha
simpatia por seu elevado caráter e sua inteligência. Fiz-lhe também a preciosa
injeção e desde aquele dia abandonei os estudos para viver percorrendo os
campos e cidades, para contemplar com orgulho homens e monumentos destinados à
morte enquanto eu continuar a viver indefinidamente.
Um dia,
passeando assim em companhia de Parmês, encontrei a filha de um oficial do rei,
uma moça chamada Athma, famosa por sua beleza, e o amor feriu meu coração como
um raio. Jurei por Toth que aqueIa mulher seria minha e no mesmo instante vi
Parmés afastar-se de mim com um olhar de ódio. Soube depois que ele já havia
declarado seu amor a Athma, porém ela me preferiu e aceitou-me como seu noivo.
Foi nessa
época que uma horrível epidemia de peste branca fez terríveis estragos entre a
população. Então, aterrorizado, relatei a Athma o segredo que havia descoberto
e quis fazer-lhe a inoculação do líquido de vida eterna; porém ela recusou,
entendendo que era uma ofensa aos deuses perturbar as regras da morte. Insisti,
contudo, ela pediu-me uma noite para refletir.
No dia
seguinte, apenas terminei minhas orações no templo, corri a sua casa.
Encontrei-a já gravemente enferma e tendo na fronte a mancha vermelha que era o
sinal da peste. E apenas pousou os olhos em mim expirou.
Quanto
sofri! Tudo quanto era possível tentei para morrer. Mas era em vão. O líquido
precioso tornara-me imortal.
Um dia,
quando eu chorava mergulhado em profundo desespero. Parmés, sorrindo com uma
expressão de ódio infernal, disse-me:
— Nem um
oceano de lágrimas será capaz de vencer o sortilégio que tu mesmo criaste. Hão
de passar muitos séculos antes que te possas reunir a ela. E eu...
— Tu estás,
como eu, condenado a viver.
— Enganas-te
— exclamou ele, com uma expressão de alegria feroz. — Eu descobri um princípio
tão forte que anula o poder do líquido que inoculaste em minhas veias. Dentro
de uma hora estarei morto.
E
retirou-se. No dia seguinte foi encontrado já frio diante do atar.
Mediante um
inquérito perseverante e minucioso, consegui descobrir que Parmés ocultara o
formidável veneno de sua invenção no anel do ídolo de Thot. Eu conhecia essa
joia. Era um grosso anel de platina com uma pedra de cristal oco. Mas o anel
desaparecera do dedo do ídolo.
Onde
encontrá-lo? Em vão eu o procurei no templo e seus arredores. Depois houve a
grande guerra com os Hicsos. Os capitães do nosso rei foram derrotados, nossa
cidade caiu em poder do inimigo e eu, como muitos outros, fui levado como
escravo. Anos e anos passei guardando rebanhos no vale do Eufrates. Depois vivi
em todos os países, conheci todos os povos, falei todos os idiomas, durante
séculos e séculos.
Há cerca de um ano, eu estava em São Francisco
da Califórnia quando li a notícia de que haviam pela primeira vez descoberto em
um túmulo egípcio uma joia de platina. E era exatamente um anel com uma pedra
de cristal.
Só podia ser
o anel de Thot. Na mesma noite parti. A joia fora encontrada por um sábio
francês: portanto devia vir para o Louvre. A peso de ouro falsifiquei papeis de
identidade e consegui um lugar de guarda neste museu. Mas o anel só hoje foi
exposto aqui e eu vou afinal reunir-me a minha amada.
O sábio
ouvira-o sem um gesto, sem uma palavra, mudo de assombro.
Quando a
narração terminou ele se manteve no mesmo lugar, perguntando a si mesmo se não
estaria sonhando. Mas o estranho homenzinho empurrava-o com impaciência.
— Vá. Saia.
Esta porta dá para a rua Rivoli.
No dia
seguinte, chegando a Londres, o professor Smith leu no Times o seguinte telegrama:
UM ACIDENTE
SINGULAR NO LOUVRE. Paris, 12 — Hoje pela manhã foi encontrado morto na sala
egípcia do Louvre um dos guardas desse museu. O infeliz apertava ainda entre os
braços uma múmia, com tal força que foi difícil separá-lo dela. De uma das
vitrines da mesma sala desapareceu um anel de grande valor. Ao que parece, o
guarda morreu de uma ruptura de aneurisma. Não se conhecem parentes do morto.
Seus costumes eram um tanto excêntricos e não foi possível averiguar com
segurança sua idade.
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