Escrito por A. C. Couto de Barros e publicado em
1927. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes (2017)
São Paulo, 22 de março de 1927.
Alcântara:
Li seu livro
com imenso prazer. De uma só vez. Um homem está num plano inclinado e, num dado
momento, quer deter-se. Não pode. E escorrega até o fim. Seu livro é igual ao
plano inclinado.
Domingo, em
casa de Paulo Prado, eu dizia para os da roda que só quem conhece São Paulo
podia compreender integralmente Brás.
Bexiga e Barra Funda. Nesse sentido,
era uma obra regionalista. Houve protestos. — Não, disse Mario de Andrade. —
Não, disse Paulo Prado. Chegou-se mesmo afirmar que era preciso acabar com essa
"história de regionalismo". Se os ânimos estivessem um pouco mais
exaltados e Mr. Bacharach entrasse na discussão, acabava-se concluindo que o
regionalismo não existe.
Não era
possível demonstrar a minha tese. Por mais bem educados que sejam os
interlocutores, há sempre tanto barulho e tanta coisa alheia em volta de uma
discussão, que ninguém pode distinguir o ponto essencial, que está no meio,
como ninguém vê o poste de parada, quando a multidão se acotovela em volta.
Entretanto, o poste está lá, visível: é só levantar a vista para o céu... Mas,
ali, naquele terraço em que estávamos reunidos, uma formiga no corrimão da
escada; o suicídio de uma nuvem no céu; a cor do licor: o mercúrio do
termômetro; a frase latina na parede; um pouco de estátua e aquela enorme figa
preta, que parece um punho de boxe ameaçador contra o azar, tudo atrapalhava,
tudo desviava, tudo perturbava o pensamento. Mas, agora, a você eu faço
questão.
Um livro
matematicamente falando é um X. Para o autor, X tem um valor definido, digamos
100. Só o autor sabe intimamente o livro. Dentro das suas páginas, tudo tem uma
significação especial, um valor próprio. É um todo. Para o leitor é deferente.
Para o leitor, raramente acontece coincidir o valor que ele dá com o valor 100
pressuposto. Ou não chega a 100, ou ultrapassa. E tanto num, como noutro caso,
o livro perde. Anatole France disse que um dia se surpreendeu descobrindo
profundidades que nunca existiram não sei mais em que autor grego. Estava
"ultrapassando..."
Essa coisa
pode acontecer mesmo nos livros descritivos. Todo o mundo
"compreende" uma descrição do Japão, sem nunca ter ido lá, lendo Loti,
Lafcadio Hearn ou Horácio Scrosoppi. Entretanto, essa descrição tem muito mais
interesse para aquele que viu. Mas, mesmo para "aquele que viu", o livro
já é deferente, em relação à ideia que dele faz o próprio autor. Sim, porque
foi debaixo de certo estado físico, sob certa pressão emocional que o ator
presenciou certas cenas, anotou certos aspectos, fixou certos tipos. E é
impossível transplantar para o espírito do leitor esse ambiente psicológico,
que é por assim dizer uma invenção do autor, propriedade sua e que só ele pode
usufruir. Sob este ponto de vista, todo livro é hermético. O regionalismo é uma
espécie de hermetismo. Hermetismo objetivo.
Você conhece
o caso doméstico da receita de doce. A receita está ali escrita, direitinha,
não falta nada. Mas vá alguém tentar fazer! Doce é mágica. Precisa jeito. Ler,
o mesmo. As palavras estão ali, o sentido gramatical também. Mas que dê o outro
sentido, o sentido que "vale"?
Em arte, a
questão não está tanto em compreender, mas em reconhecer. A função do
reconhecimento é tão importante que, exagerada, deu naquela teoria de protestou
energicamente: “a man puts a model before
him and he paints it so neat as to make it a deception. Now I ask any man of sense is that art?"
Todos gostam
de reconhecer, porque reconhecer é viver de novo, é bisar a vida, é tornar
reversível o tempo linha reta de Bergson.
Eu citei o
exemplo da receita de doce. Vou citar o do mapa. Mapa, criança compreende. Mas
um mapa da cidade de S. Paulo para quem reside aqui tem outra significação.
Além do simples valor utilitário, topográfico, o mapa torna-se uma coisa rica,
cresce por aluvião de ideias e sentimentos. Esparrama-se. Inunda, principalmente
se o paulista está fora no estrangeiro. Tem a Estação da Luz, tem a rua onde
ele mora, tem a casa da namorada.
Eu podia em
vez de mapa falar em retrato, falar em bandeira, falar em tudo que implique
reconhecimento e produza atropelo de representações mentais. Mas você está
farto de saber tudo isso. É ou não é? Estou dizendo todas essas coisas para
mostrar que um livro só é compreendido integralmente quando é
"sentido", e só pode ser sentido quando o leitor começa a refazer as
experiências vitais que constituem a matéria prima do livro, quer essas
experiências sejam objetivas (como na descrição), quer subjetivas (como num
caso de amor, por exemplo).
As análises
de Sthendal ou de Proust só interessam quando a gente diz "é isso
mesmo" ou "tal e qual" Ora, "isso mesmo" ou "tal
e qual" que é senão o próprio "reconhecimento"?
Quanto ao Brás, Bexiga e Parra Funda (como você
gosta dos bês, seu Alcântara, desde o
Pathé-Baby!), eu digo que aquele que
não conhece São Paulo, como nós conhecemos, não pode gostar dele como nós
gostamos. Um estranho estará muito longe daquele valor convencional. Seu livro
exige, pelo menos nos contos mais característicos, como Gaetaninho, Carmela, Liselta,
O Monstro de Rodas etc., uma bagagem de conhecimentos empíricos sobre o
nosso meio, usos e costumes para poder ser apreciado. Quem não tiver essa
bagagem não passa. Fica nos “umbrais" do livro. Poderá apreciar as Notas
biográficas do novo deputado, mas nunca poderá penetrar o valor de um conto
como os acima citados. É que falta a esse leitor a "função do
reconhecimento" Será para sempre um livro seco. Dry. Extra-dry, como você. Depois, há muito diálogo no Brás, Bexiga e Barra Funda, o que agrava
o seu hermetismo.
Si fizessem
um concurso entre os escritores nacionais e prepusessem como tema os enredos
dos seus contos, você ganharia o prêmio. Ganharia longe. Agora, escute.
Lembra-se do jogo do "diavolo"?
É preciso
saber imprimir uma certa velocidade ao carretel, para que ele, atirado ao ar,
volte direitinho ao barbante que o equilibra. Sem essa velocidade, não vai.
Ora, muitos livros não "vão" por falta dessa velocidade espiritual,
por parte do leitor. Falta-lhe a experiência objetiva ou subjetiva e, faltando
isso, falta tudo. Você pode contar a mais bela história de amor a um homem que
nunca sofreu casos amorosos, e ele chamará você de bobo. Com toda a razão.
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