5/28/2017

A respeito de "Flores e Frutos" de Bruno Seabra


"Flores e Frutos" — Bruno Seabra

Escrito por Macedo Soares e publicado no ano de 1862. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica  de Iba Mendes (2017)

Nesta calamitosa quadra de prosaísmo porque vão passando os letras, o livro do Sr. Bruno Seabra é um sorriso consolador da deusa da poesia. Será passageiro? Dará o autor em renegado como esses apóstatas que tem feito da literatura escabelo para treparem às galerias do circo da política? Não é de crer. Da seiva que deu estas flores e estes frutos muito. Há que esperar ainda. Não há de o estigma da apostasia marcar esta fronte talhada para as coroas olímpicas. Ânimo, poeta! que importa a tristeza dos tempos? As ruínas do Parthenon com serem ruínas não deixaram ainda de ser a consagração da suprema beleza artística. Partidas embora, as estátuas adormidas no chão da Ática, são contudo as divinas inspirações dos Fídias e dos Praxiteles.
Na messe das Flores e Frutos muito há que respigar. São produções de uma bela primavera, que por ser primavera faz também brotar cardos e joio no solo das rosas e do trigo. Já um poeta disse:
“O sol, o claro sol também tem manchas.” O que lucra, pois, a crítica na afirmação dos defeitos de uma obra? Mais admiração seria não tê-los; e mais digno ó curvar a cabeça diante da beleza do que cuspir na feieza. O verdadeiro método de ensino na educação da faculdade estética e o positivo, consiste na demonstração das perfeições, e não na enumeração dos defeitos. Exclui-se deste modo o direito da advertência? O conselho é uma das - mais profícuas atribuições da crítica, a censura é um dever de consciência. Mas entendamo-nos: Censurar bagatelas é extrair de uma mina fecunda em ouro pedaços de cascalho para enfaticamente provar a tese: Perfeito só Deus! É a crítica mesquinha, definível nestas duas palavras de Horácio: nugoe canaroe.
Isto posto, deixemos de lado as questões de versos frouxos e examinemos a obra do poeta.
O Sr. Bruno Seabra tem uma grande qualidade, raríssima nos principiantes: estilo seu. Sabe-se a fonte: é a natureza, é o povo, cuja maneira de exprimir-se o poeta observou, estudou e guardou para seu uso. É a fonte onde foram beber os três maiores vultos desta idade poética, que fez da Revolução a sua hégira: Goethe, Beranger e Garret. Lede os Lieder, as Canções e as Folhas Caídas. Lede Goetz de Berlichingen e Fr. Luiz de Souza. É o estilo popular fluente, melodioso, desgarrado, claro, claro sobretudo, deixando ver a ideia através da neblina das palavras. Clareza, propriedade e melodia, tais são os atributos mais salientes das Flores e Frutos.
A versificação parece-me excelente. Os versos caem no ouvido e gravam-se na alma. São úteis sobretudo, servem para alguma coisa, para exprimir o pensamento. Dome estimável na razão direta da raridade, por todo este romantismo vaporoso da moda, que tem calcado a poesia no estreito molde do palavreado sonoro. Demos aos versos o peso que eles merecem; mas não nos esqueça jamais que a poesia está na ideia, e não no som que a representa.
A forma, que, na doutrina hegeliana, é a poesia da ideia, se o mais das vezes é clara e frisante, outras é vaga e indecisa, e algumas incorreta, imprópria e de mau gosto. A imagem de páramos da saudade, que termina a peça a Eles, desperta um sentimento, alguma coisa confusa e flutuante de que a inteligência quer apossar-se; porém debalde, porque a palavra não exprime uma ideia.
Esta frase:
“Réu de amores, nas cadeias
De teus olhos me prendi. “

afigura-se extraída de uma copia da Fênix renascida. Parece-me estar ouvindo Botelho de Oliveira, a Música do Parnaso na mão, recitando radiante de contentamento:
Foi no mar de um cuidado
Meu coração pescado;
Anzóis os olhos belos,
São linhas teus cabelos;
Com solta gentileza
Cupido pescador isca a beleza.

E Gongora a gritar para os discípulos como o Imperador romano no palco: Nune plaudile! e todos batendo palmas na celebração da sublime pintura do contemporâneo do Padre Vieira.
São pequeninas manchas, são; mas estas insignificâncias devem ter algum peso quando o poeta mostra-se tão afeiçoado a elas que neste gosto escreve inteira uma longa poesia, a Lagoa dos Amores. Apadrinhe embora o autor com bons poetas alemães a sua alegoria; não lhe posso dar razão. Tivesse, que não tem, esta peça todos os requisitos da alegoria (a semelhança bastava), falta-lhe para mim o essencial, o encanto da ideia brilhando através dos termos da comparação. Os termos principais são poéticos; os acessórios, porém, materializam tanto certas ideias absolutas e sentimentos tão íntimos, tão espirituais, se a palavra nos ajuda, que falha todo o efeito da peça. “A barca da Mocidade; regida pelo piloto Esperança, navegando na lagoa dos Amores, foi encalhar na costa do Porvir, náufrago nas praias das Desilusões de Amor”: tudo isto tenho para mim por muito sensabor; são ingenuidades de que a crítica não pode deixar de sorrir.
Mas estes senões são largamente comprados pelas belezas sem número que avultam nas Flores e Frutos.
O livro é dividido em Ires partes: Aninhas, Lucrécias o Dispersas. O que são aquelas Aninhas diz-nos o poeta numa espirituosa nota: mas estas Lucrécias não têm nada de romanas; e a religião da pudicícia, se teve na mulher de Collatino uma crente sincera, deve se lamentar profundamente o espírito forte da filha do mestre Anselmo.
Faltou-se contra o livro do Sr. Bruno Seabra, que era imoral. Esta acusação de imoralidade é muito séria para ser assim atirada às faces de um escritor, de mais a mais poeta. E digamos já: é banal, e resulta de uma confusão entre a poesia e a moral. O Sr. Bruno Seabra não quis fazer das Flores e Frutos um sermão de quaresma. São belas as flores? a crítica não deve nem pode exigir mais.
A poesia degrada-se todas as vezes que intenta desbotar o lustre das flores d'alma das virgens, destas almas privilegiadas, que, no dizer de Fr. Francisco de São Luiz, se conservam no meio do mundo como os meninos hebreus na fornalha de Babilônia. Castidade, pudícia, virgindade, pureza! não é tudo isto a suma teológica da poesia? não vale este enlevo mil vezes a brutalidade dos sentidos? Como os poetas dizem do estro, podem as virgens dizer do pudor: — Est Deus in nobis. Vós tendes razão: apóstolos da beleza, respeitemos o seu perfume. A mulher é semiescrava na sociedade. Não conspurquemos esse véu de virgindade, não embacemos o lustre dessa coroa que a faz soberana na terra.
Mas por isso exigiremos do poeta que se torne em pregador? Que suba ao púlpito? que recite textos latinos ao povo embasbacado? A poesia é a vida em sua flor; deve de ser, e é, desinquieta e buliçosa como ela. Não quereis assim? Fazei um auto de fé, e atirai - lhe na fogueira as poesias de Goethe, as Canções de Béranger, todos os livros de Byron, e Musset, e Ruckert, e George Sand, e Balzac, e de tudo o que pensa e tem pensado do século dezoito para cá.
As Lucrécias do Sr. Bruno Seabra são umas brasileiras garridas, coquettes, bem falantes, graciosas em suma. Excetuemos Teresa, mulher sem pejo, que sai dos braços de um dos amantes para entrar no quarto nupcial. Excetuemos ainda essa Ingênua que engordece, tipo grosseiro, sem a faceirice ao menos daqueles outros blue-devils; mas bem castigada pelos maus versos em que o poeta a meteu.
A Eles é uma poesia cheia de movimento e graça, conquistando aplausos no viço da mocidade. O poeta convida os segadores a aproveitarem os belos tempos da messe na sazão dos anos É uma peça opulenta de vida, poesia humana, se o epíteto diz o que penso. Pois os românticos vaporosos têm explorado uma espécie de poesia extra-humana, pairando nas nuvens, e por isso intraduzível para nós outros, pobres mortais que rastejamos cá por baixo. E aquela é uma das boas qualidades deste livro, que o fazem agradado e querido por quantos gostam de sentir o homem nas obras do homem. É o segredo dos cantos intitulados Na Aldeia, Aninha, Tristeza, Valsando, Rosa Branca, e tantos outros primores que aformoseiam o livro do Sr. Bruno Seabra.
As Lucrécias são no gênero do lied de Ruckert. O amor é o seu fundo, a sua seiva, idée foncière, na expressão de Pelletan, coisa que existe onde quer que se exale o sopro do vento, onde freme o murmúrio das vagas, e onde nem os ventos nem as vagas se fazem ouvir, como diz algures o autor dos Jungendlieder. São umas raparigas travessas estas romanas de hoje, fazem andar à roda a cabeça dos rapazes; mas, em fundo, umas inocentinhas de quem não há de vir mal ao mundo.
Em suma. O livro do Sr. Bruno Seabra ainda não é paga de dívida, é obrigação contraída. Grave responsabilidade pesa já sobre quem oferece numa obra de tanto merecimento as primícias do seu talento poético. Fazem meia-prova estas Flores e Frutos; ao autor cumpre fazê-la plena com coisa mais acabada. Precisamos muito de um Messias que venha regenerar esta literatura de palavras consoantes.
Araruama, 1º de Novembro de 1862.

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