5/31/2017

A Questão Coimbrã




A Questão Coimbrã

A Questão Coimbrã foi a primeira manifestação de repúdio ao provincianismo melancólico que norteava a literatura portuguesa da época. Foi liderada por um grupo de estudantes da Universidade de Coimbra, que mantinham fortes laços culturais com a Europa, especialmente Paris. A controvérsia tinha como foco central a velha e a nova geração. Era nítida a oposição entre a chamada musa constitucional (os velhos padrões) e os novos valores, que teve nas Odes (de Antero de Quental) o suporte necessário para sua concretização. A síntese desse movimento era basicamente a proscrição do falso, do piegas, do oco, do lacrimoso, enfim, do convencional, em que estava arraigada a sociedade portuguesa. Como afirmou Eça: “A arte moderna é toda de análise, de experiência, de comparação. A antiga inspiração que em quinze noites de febre criava um romance é hoje um meio de trabalho obsoleto e falso. Infelizmente já não há musas que insuflem num beijo o segredo da natureza! A nova musa é a ciência experimental dos fenômenos - e a antiga, que tinha uma estrela na testa e vestes alvas, devemos dizê-lo com lágrimas, lá está armazenada a um canto, sob o pó dos anos, entre as couraças dos cavaleiros andantes ”.

As novas ideias literárias não eram apenas um processo de forma. Muito mais que isso, tinha um alicerce filosófico que se expandia para várias direções. Era a arte do presente, e de alguma forma, também a arte do futuro. Nas palavras de Eça de Queiroz: “é a crítica do homem, é a arte que nos pinta a nossos próprios olhos para nos conhecermos, a ver se somos verdadeiros ou falsos, para condenar o que a sociedade tem de mau. O seu processo é a análise, o seu fito a verdade absoluta”.

O conceito do ideal, em Antero, por exemplo, via de regra era estimulado por sonhos e visões. De acordo com Massaud Moisés: “tudo nele se configurava como a ânsia de perfeições utópicas ou sobrenaturais. Do idealismo decorre seu desejo de evasão e de sonho..., que lhe sugeria uma postura mística, feita da busca de Deus ou de algo que lhe equivalesse... Já que sentia que a quimera não se realizava jamais, e que a indagação acerca de Deus ficava sem resposta, ecoando no vazio cósmico, o poeta terminava mergulhando num angustiante pessimismo à Schopenhauer”. Essas características, realçadas por Massaud, são sobremodo evidenciadas no poema Ideal, do próprio Antero.

Segundo Vianna Mogg, em Eça esse conceito apresentava as seguintes características: “primeiro devia tomar o assunto na vida contemporânea, para ser perfeitamente do seu tempo; depois, proceder pela experiência, pela fisiologia, pela ciência dos temperamentos e dos caracteres; e, enfim, ter o ideal moderno que rege as sociedades, isto é, justiça e verdade... A arte deve corrigir e ensinar e não ser só destinada a causar impressões passageiras, a dar-se unicamente ao prazer dos sentidos. Deve visar um fim moral. Se a arte tem moral, perde a sociedade. Deve-se tentar a regeneração dos costumes pela arte. Quando a ciência nos disser: a ideia é verdadeira; a consciência nos segredar: a ideia é justiça; e a arte nos bradar: a ideia é bela - teremos tudo”.

De um modo geral, os escritores realistas não acreditavam num ideal como algo subjetivamente elaborado, que fugia da realidade do dia-a-dia, sendo dessa forma, imprestável para o aquele momento. A burguesia não se ocupa de tradições. A nova classe social é eminentemente “realista” nas suas posições econômicas e sociais; e uma classe separada dos antigos padrões “aristocráticos”. A fase heroica da tomada do poder pela burguesia já não existia. Agora impera o absolutismo hereditário e de direito divino que impede, por sua própria natureza, a mobilidade das classes, a permeabilidade das elites dominantes aos elementos “vindo de baixo”, impedindo dessa forma o princípio burguês da livre iniciativa econômica. Agora deve predominar o racional, aquilo que “pode ser provado em laboratório”, o que inclui a realidade do cotidiano em suas multiformes facetas, coexistindo nela todas as classes e de todos os grupos sociais. É o que apresenta Eça de Queiroz, em O Primo Basílio, a luta de classes servindo de pano de fundo para o desmedido intento desse escritor em revelar a sociedade do modo como existia, porém, fez essa ressalva: “...eu não ataco a família - ataco a família lisboeta, produto do namoro, reunião desagradável de egoísmos que se contradizem, e mais tarde ou mais cedo centro de bambochata” (Carta a Teófilo Braga). Enquanto o idealismo convencional falsifica, o realismo “real”, ao contrário, verifica, prova, experimenta. Em O Crime do Padre Amaro, essa realidade desce às camadas sociais, revela-se a corrupção e a hipocrisia de grupos secularmente estabelecidos, as mazelas da vida social portuguesa é posta à tona sem penitência. Em Os Mais o escritor faz transparecer as inquietações do sentimento, as apreensões da consciência e os desequilíbrios da sensualidade.

Em suma, o idealismo dentro do realismo era algo até óbvio, todavia, não era um ideal clássico, baseado em tradições ou naquilo que se tinha como modelo ou mesmo como ideal para o momento; não era também um idealismo romântico em que o subjetivismo, a exacerbação de sentimos alcançava o nível do irreal, do não palpável, e por assim afirmar, da inocência. O ideal realista calca-se em conceitos (pleonasticamente) do cotidiano real, ou seja, o que interessa são as circunstâncias nas quais está inserida a sociedade, especificamente, a sociedade portuguesa daquele momento. Como afirmou Joel Serrão: “...Que choca com as experiências mais fundas e mais duradouras, que conduz o poeta a um conflito íntimo, à insatisfação e ao tédio, à anotação minuciosa desse real voluntário e às fugas, - inconscientes, muitas vezes -, para as suas preferências espontâneas. Conflito que, opondo as suas solicitações naturais aos objetivos conscientemente concebidos e queridos, suscita uma tomada de consciência que lhe abre os olhos para uma realidade cotidiana que só ele, por força de tais circunstâncias, se tornou apto a exprimir”.

É isso!


Iba Mendes

São Paulo, 2004.

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