“E Arão lançará sortes sobre os dois bodes;
uma pelo Senhor, e a outra pelo bode emissário. Então Arão fará chegar o bode,
sobre o qual cair a sorte pelo Senhor, e o oferecerá para expiação do pecado.
Mas o bode, sobre que cair a sorte para ser bode emissário, apresentar-se-á
vivo perante o Senhor, para fazer expiação com ele, a fim de enviá-lo ao
deserto como bode emissário” (Lv. 16:8-10).
Não sei exatamente o que diz a psiquiatria sobre o
sentimento de culpa nas relações entre as pessoas. Também não quero saber, ou
melhor, não preciso saber, ou mais exatamente, é melhor não saber. Portanto,
não irei a Freud. A mim me basta Agnon e seu “Ferenheim”.
É fato inconteste que todos nós estamos envolvidos
direta ou indiretamente em alguma situação relacionada a sensação psíquica de
culpa. Em havendo uma pessoa que nunca foi acusada de algum ato repreensível
praticado contra a moral ou a lei, mesma esta, ainda que inconscientemente,
mete-se dentro deste “invólucro”. Acusando ou acusado, sempre se há de conviver
com a culpa. Agnon, em “Ferenheim”, parece escancarar esta realidade.
Obviamente não sei se foi esta sua intenção, mui provavelmente não tenha sido.
Mas, vá lá, importa que encontrei alguns indícios os quais, se não comprovam
esta duvidosa conjectura, podem, a custo de algum esforço, trazer alguma luz à
questão. Ademais, sou eu quem superficialmente faz a “crônica” do texto. E,
como se sabe, no EU reina o subjetivismo, impera a tendência de reduzir a
existência à existência do sujeito. Não devo, portanto, ser culpado por este
suposto erro. Culpemos o Ferenheim! Certamente alguém, um outro EU qualquer, há
de encontrar neste conto uma abordagem sobre o amor? Ou sobre a morte? Ou sobre
a felicidade? Ou sobre a guerra? Ou sobre a traição? Ou sobre os dissabores da
vida? Ou sobre a inutilidade da luta humana? Ou sobre... Deixa pra lá... Nem
todos creem que Capitu traiu Bentinho! E Kafka? Uns viam nele um pensador
metafísico; outros, um profeta do absurdo; Sartre e Camus o concebia como a
síntese da incongruência do existir; psicólogos acreditaram que sua obra era
reflexo de sua relação com um pai autoritário e na sua própria condição de
celibatário; marxistas entendiam seus escritos como a suma do caos burguês; os
surrealistas o incorporou na esfera do fantástico etc. Quem está com a razão???
Tratemos, pois, da culpa de Ferenheim...
O senhor Werner Ferenheim, que não era uma pessoa tão
distinta quanto o senhor Hans Steiner, e que não tinha “negócios tão sérios”
quanto este outro, não foi, por este motivo, isentado dos deveres militares.
Mas, que culpa tinha se sua nação embrenhou-se numa guerra? Que culpa deveria
assumir por ter deixado sua esposa e seu filho, para ir lutar contra a própria
vontade por seu povo o qual sequer sabia de sua existência? Quiçá nenhuma,
contudo, não fora por isso eximido dela. A culpa – intrometidamente – o
acompanhou para o estrangeiro. E mesmo depois de tudo, quando retornou à sua
terra natal, ela ainda o seguia de perto. Então seria ele culpado pela morte do
único filho? A zeladora acreditava que sim: “Pobre pequenino, foi emagrecendo, emagrecendo até a morte”. Seria a
culpa a responsável pela sua ida ao cemitério, ao túmulo de seu filho? Talvez
mero intento da convenção humana. E por que sua mulher o trocou por outro?
Porventura seria também culpado disso? Steiner pensava afirmativamente: “O mundo que você deixou para trás, quando
foi para a guerra, transformou-se; e o objeto principal do nosso assunto também
mudou”.
Se ele não tivesse ido para guerra, se se recusasse a
lutar pela pátria, provavelmente deveria estar nestes dias ao lado da mulher, e
talvez não com um, mas com vários filhos e vivendo uma vida de grande
felicidade! A mulher não poderia ser considerada culpada, afinal ouvira dizer
que ele fora capturado e feito prisioneiro de guerra; além disso, todos,
principalmente o senhor e a senhora Steiner acreditavam que ele não mais
voltaria: “nós confiamos em que você não
iria continuar opondo obstáculos”. Se ao menos o senhor Ferenheim tivesse
enviado notícias, dizendo que voltaria, neste caso sua mulher certamente
haveria de aguardá-lo com ansiedade, como naquelas aventuras românticas em que
o herói, depois de muito padecer distante do lar, volta rejubilosamente para os
braços da amada; como um Ulisses que, depois de inúmeras agruras, retorna
triunfante para sua Penélope. Mas ele nada avisou. Simplesmente apareceu do
nada, e o pior, sem nada. Literalmente, sem nada. Nem ao menos um presentinho
para sua mulher ele trouxe! Além disso, ela, que ainda era jovem, não poderia
se submeter a um martírio, tendo de passar a vida inteira esperando alguém que
ao certo não se sabia que estava vivo. Sabia ou não sabia?
O senhor Karl Neiss também não pode ser considerado
culpado. Absolutamente. Ele encontrou a porta escancarada, apenas entrou como
qualquer outro o faria. É certo que alguém, que “obviamente” não sou eu,
poderia acusar o senhor Neiss de uma certa dose de interesse. Esta pessoa
justificaria sua desconfiança pelo fato de ser Inge, como afirmou o senhor
Steiner: “filha de uma abastada família”. Diria ainda, para confirmar sua tese,
que ela, ainda no momento, deveria ser dona de uma bela fortuna. Daí todo o
interesse de Karl Neiss. Pura ignorância! Tudo aconteceu naturalmente, sem a
mínima influência dos Steineres! O senhor Werner Ferenheim não poderia ser
isentado da culpa, não deveria ser livre dela. Sim, como um judeu errante, ele
deveria ser condenado a errar pelo mundo, com a lembrança de um país natal
distante que já não existe mais, de dias felizes que se foram como o caloroso
verão, de momentos prazerosos ao lado da amada. Porque, quando deixou o seu
lar, ele fechou – simbolicamente - a porta para a felicidade. E quando voltou
encontrou-a literalmente trancada. E o mesmo aconteceu após o longo diálogo que
teve com Inge: “Ele ainda permaneceu um
pouco no aposento que Inge havia deixado. Depois voltou-se na direção da saída.
Deu ainda uma olhada ao redor do quarto. E partiu, fechando a porta”. Mas,
para onde será que partiu?...
Deve ter partido como Azazel, o bode emissário do Levítico, para expiar pelos desertos da
vida suas eternas culpas...
É isso!
Iba Mendes
São Paulo, 2002.
São Paulo, 2002.
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