Camões: o homem da Renascença
Ensaio escrito em 1924, pelo escritor Amadeu Amaral. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes (2016)
Camões, tanto moral como literariamente, foi bem um homem do seu tempo. Algumas das características gerais e particulares do século XVI reúnem-se e fundem-se na personalidade do nosso poeta, desde as suas raízes, como que lhe imprimindo auguralmente um cunho épico.
Ensaio escrito em 1924, pelo escritor Amadeu Amaral. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes (2016)
Camões, tanto moral como literariamente, foi bem um homem do seu tempo. Algumas das características gerais e particulares do século XVI reúnem-se e fundem-se na personalidade do nosso poeta, desde as suas raízes, como que lhe imprimindo auguralmente um cunho épico.
"Desde
as suas raízes", porque é na verdade difícil distinguir nela, de todo, o
que é expressão do temperamento do que é reflexo das imponderáveis influencias
do ambiente. Esse próprio humor cambiante e vivaz, essa inquietação, essa vida
aventurosa e acidentada, essa multiplicidade de aptidões, essa ânsia de
desdobramento, parecendo coisas tão propriamente suas, se encontram em muitas
outras figuras notáveis da época, um Buonarrotti, um Leonardo, um Erasmo, um
Cervantes, um Tasso, e, sem sair de Portugal, um Antônio de Gouveia, um Fernão
Mendes ou um Damião de Góes.
Como
filho da Renascença, Camões teve a paixão da literatura, que então reviçava ao
contacto das artes no culto fervente das belas formas, e ao mesmo tempo a paixão
do humanismo, bem visível na abundância de conhecimentos que se reflete nas
suas obras, denotando de morado e guloso comércio com os livros.
No
tempo em que ele estudava em Coimbra, o uso do latim era obrigatório na
universidade. Em Portugal, como nos outros países da Europa, toda a gente que
soubesse alguma coisa devia saber, antes de tudo, latim. Os próprios principiantes,
no verdor da primeira juventude, principiavam a desasnar-se com o mestre de língua
latina. Camões, porém, não se limitou a estudar o latim pelo latim, como toda a
gente: seu espírito visava a mais alto objetivo e tinha necessidades
desconhecidas da maioria. Dessa cultura latina estreita e mecânica, que
produziu tantos pedantes, ele aproveitou-se para enriquecer e polir sua linguagem
e estilo, conservando-lhe Contudo um genuíno e perfeito sabor de naturalidade portuguesa.
Demais, não se limitou à língua: estudou com desusado afã a literatura latina,
a história e à mitologia clássicas.
O
seu sábio tradutor e biógrafo alemão, o Dr. Stprck, mostra-se assombrado da soma
de conhecimentos que, ele revela nessas matérias — "conhecimentos até de
pormenores mínimos, que ele explica, como propriedade intrínseca sua, mesmo nas
regiões onde não podia ter à mão livros de consulta" Essa paixão da antiguidade
greco-romana foi até ao exagero: não há um herói, um homem ilustre, dentre os
muitos aos quais se refere, não há quase um acontecimento, um aspecto de
natureza que não lhe acorde imediatamente, por espontânea associação, uma
analogia tirada da antiguidade.
Da
mitologia fez o larguíssimo em prego que se sabe, — emprego sem dúvida
excessivo, e por vezes extravagante, que havia de despertar a censura de Voltaire,
mas, como quer que seja, espantoso pela propriedade e certeza com que as evocações
pagãs lhe afluíam sob a pena, e de resto explicável pelo gosto do tempo em toda
a Europa.
Assim
como conhecia as literaturas antigas, também mostrava ter-se enfronhado
largamente nas modernas, especialmente a italiana e a espanhola, não só na
poesia culta, como ainda na popular. Reunia, no mesmo culto entusiástico, aos
grandes poetas clássicos os modernos Dante e Petrarca, e também os Sannazaro,
os Ariosto, os Garcilaso e os Boscan; entusiasmo tão forte que o levou a
imitá-los em numerosos passos de suas obras, — conformando-se nisso, aliás, às doutrinas
literárias do tempo, que não só autorizavam, como recomendavam a imitação dos
mestres consagrados.
Mas
ainda não bastava tão vasta seara literária a saciar-lhe a insaciável
curiosidade do espírito. "Saber muito, diz Storck, era o característico
daquela época; a instrução enciclopédica, sonho dourado dos humanistas"
Camões alimentou esse sonho dourado.
"Os
seus conhecimentos filosóficos, escreve o mesmo autor, derivam quanto a
pormenores, na aparência, da leitura de Diógenes de Laerte, Plutarco, Cícero,
Valério Máximo, Aulo Gélio, Plínio Sênior, e das Antologias. As suas poesias
dão testemunho claro de como conhecia ditos e feitos de uma longa série de escritores
ilustres: Homero, Aeliano, Xenofonte, Virgílio, Lucano, Ovídio, Horacio,
Plauto, Lívio, Eutrópio, Justino, Ptolomeu e outros" A história universal,
a geografia e a astronomia eram-lhe familiares.
Quanto
à última, é verdade que andou um pouco atrasado: atinha-se ainda ao sistema de
Ptolomeu, largamente exposto no canto X, quando o seu contemporâneo Copérnico
já havia desde 1543 desmantelado as concepções do astrônomo alexandrino. Contudo,
não admira esse atraso, talvez propositado, numa época em que, afinando com Lutero,
que indignadamente bradava contra a "invenção" do astrônomo polaco, o
clero católico igualmente reagia, pela doutrina, pelo ensino e pela repressão
inquisitorial, contra os "erros" da nova astronomia.
Nessa
matéria, como em outras, o literato, o estudioso, o homem do saber livresco e
das ideias aprendidas andava em luta com o pensador independente, com o espírito
original e indagador Essa luta constante, em que ora triunfava o humanista, ora
o investigador e pensador livre, em que as mais das vezes se compenetravam numa
íntima e curiosa fusão, é toda a história do espírito de Camões, que assim
resumia em si, admiravelmente, as duas grandes feições intelectuais do seu
século, tão notável pela curiosidade do antigo como pela curiosidade do novo,
pela paixão da literatura, da arte e do saber clássico e pelo
surto
maravilhoso de inéditas visadas filosóficas, artísticas, literárias, críticas e
científicas.
A
flora dos "Lusíadas", como tão claramente demonstrou o conde de Ficalho,
contém, ao lado de uma multidão de reminiscências clássicas, grande cópia de
indicações precisas acerca das plantas tropicais, atestando um raro escrúpulo
tanto na caracterização como na localização de cada espécie. A mesma aliança de
cultura antiga e de curiosidade experimental se manifesta de maneira flagrante
na ode que fez o nosso poeta ao conde de Redondo, em Goa, impetrando o favor do
vice-rei para o "Colóquio dos simples", do seu amigo Garcia de Orta,
um dos primeiros naturalistas modernos, fundador de um jardim de plantas em
Bombaim.
Passam
pelas poucas estrofes dessa composição o "templo da Fama", o
"grão filho de Tétis", os troianos, Febo, Heitor, Télefo, Aquiles. É
invocando o exemplo deste herói, amigo da medicina, que o poeta pede a proteção
do conde para o novo livro, o qual, "impresso à luz saindo — Dará da
Medicina um vivo lume, — E descobrir-nos-á segredos certos, — A todos os
antigos encobertos" A obra de Orta foi um marco deposto no caminho novo da
ciência positiva, fundada na observação direta da natureza. Mereceu a atenção
dos sábios, sendo traduzida para diversas línguas. Vê-se que Camões não se
interessara por pequena coisa.
Em
outra ordem de assuntos, mas sempre mostrando a universalidade do seu espírito,
vemos o poeta interessar-se também, mais tarde, pela publicação da obra de
Gandavo, "História da Província de Santa Cruz".
Nas
apreciações e comentários do poeta, através de todos os seus escritos, ainda
melhor se desvenda essa fusão do respeito à autoridade antiga com o espírito de
indagação e iniciativa. Tem a erudição em grande conta, mesmo em conta exagerada,
como um Ronsard ou um Tasso, mas reconhece a necessidade! da experiência, e não
se cansa de a indicar aos contemporâneos, ainda demasia do submissos ao
prestigio do saber medieval, indiferente à natureza. Aponta-a mais de uma vez
ao rei:
Tomai conselho só de
exprimentados,
Que viram largos anos, largos
meses;
Que, posto que em cientes muito
cabe,
Mais em particular o experto
sabe.
De Formião, filósofo elegante,
Vereis como Aníbal escarnecia,
Quando das artes bélicas diante
Dele com larga voz tratava e
lia.
A disciplina militar prestante
Não se aprende, senhor, na
fantasia.
Sonhando, imaginado, ou
estudando,
Senão rendo, tratando e
pelejando.
(Lus.,
X, 152-153.)
Lembrais-vos
da vigorosa descrição da tromba marítima, feita no canto V dos
"Lusíadas" Começando-a, nota o poeta existirem na natureza coisas que
os ignorantes só conhecem por experiência e são entretanto verdadeiras, apesar
de julgarem o contrário aqueles "Que só por puro engenho e por ciência —
Vêem do mundo os segredos escondidos" Terminando a, exclama Camões
ironicamente, como a espicaçar de leve a imensa pretensão dos que julgam só por
"puro engenho e por ciência", isto é, agarrados à razão lógica e
livresca: "Vejam agora os sábios na escritura — Que segredos são estes da
natura": — consultem os seus cartapácios, e vejam se lá encontram a explicação
destas coisas "incríveis", mas "verificadas".
Por
essa feliz aliança das duas tendências é que o homem não foi aniquila do pelo
erudito; que, imitando, soube ser original; que, reunindo laboriosamente mil
respigas literárias e enciclopédicas, soube lançar tudo isso na fornalha do seu
temperamento ardente, imaginoso e idealista, de envolta com mil impressões e mil
estímulos de uma vida intensamente vivida.
Como
bom filho da Renascença, Camões cultivou a moral da ação e da glória, que então
se erguia contra a moral da abstenção e do cilício, baseada nas promessas do
céu. Mas aqui, como sob outros aspectos, é interessante notar como ele temperou
instintivamente mais essa inclinação com outras diretrizes. Todo o seu poema é
um férvido hino à ação heróica, estimulada pelo legítimo desejo de glória. Mas,
em vez de querer a plena expansão da individualidade, solta de todas as peias,
impunha-lhe o dever moral como uma couraça de ferro. O seu ideal do herói é
romano pela fidelidade absoluta ao dever patriótico, cavalheiresco pelo
desprezo do dinheiro, dos gozos e das honrarias, pela audácia e gentileza:
Por meio destes hórridos
perigos,
Destes trabalhos graves e
temores,
Alcançam os que são de fama
amigos
As honras imortais e graus
maiores:
Não encostados sempre nos
antigos
Troncos nobres de seus
antecessores;
Não nos leitos dourados, entre
os finos
Animais de Moscovia zebellinos;
Não co'os manjares novos e
esquisitos,
Não co'os passeios moles e
ociosos,
Não co'os vários deleites e
infinitos,
Que afeminam os peitos
generosos;
Não co'os nunca vencidos
apetitos,
Que a fortuna tem sempre tão
mimosos,
Que não sofre a nenhum, que o
passo mude
Para alguma obra heróica de
virtude;
Mas com buscar co'o seu forçoso
braço
As honras, que ele chame
próprias suas,
Vigiando, e vestindo o forjado
aço,
Sofrendo tempestades e ondas
cruas,
Vencendo os torpes frios no regaço
Do Sul, e regiões de abrigo
nuas,
Engolindo o corrupto mantimento
Temperado c'um árduo
sofrimento;
E com forçar o rosto, que se
enfia,
A parecer seguro, ledo,
inteiro,
Para o pelouro ardente, que
assovia,
E leva a perna ou braço ao
companheiro.
Destarte o peito um calo
honroso cria,
Desprezador das honras e
dinheiro,
Das honras e dinheiro, que a
ventura
Forjou, e não virtude justa e
dura.
Destarte se esclarece o
entendimento,
Que experiências fazem
repousado;
E fica vendo, como de alto
assento,
O baixo trato humano
embaraçado:
Este, onde tiver força o
regimento
Direito, e não de afetos
ocupado,
Subirá (como deve) a ilustre
mando,
Contra vontade sua, e não
rogando.
(Lus.,
VI, 95-99.)
Também
no que se refere à religião, o nosso poeta não esteve isento das influências
encontradas que então percorriam o ambiente europeu. Teófilo Braga descobre nele
traços das ideias de Erasmo, precursor da Reforma, que se espalharam por todos
os países e chegaram a fazer numerosos prosélitos na península ibérica, mesmo
entre teólogos e padres. A verdade é que o que se encontra em Camões não são ideias
determina das e assentes sobre questões de crença, mas, como em muitos
espíritos ilustres do seu tempo, uma certa inquietação, oriunda, por um lado, do
enfraquecimento da antiga fé, por outro, das perplexidades da razão ainda vacilante
nas suas investidas.
Há
tal ou qual analogia entre alguns de seus pensamentos e a atitude, por exemplo,
de Rabelais e de Montaigne, para os quais a fé vinha a ser como um recurso de
comodidade, bom para se cortar cerce pelas preocupações metafísicas. Mas, como
o autor dos "Essais" também desconfiava da razão; e é curioso aproximar
esta frase do pensador francês: "O
que c'est un doux e mol chevet et sain que l'ignorance et l'incuriosité à
reposer une teste bien faite!" dos seguintes versos entressachados à nos
"Desconcertos do mundo":
Quem tão baixa tivesse a
fantasia,
Que nunca em mores cousas a
metesse,
Que em só levar seu gado à fonte
fria
E mungir-lhe do leite que
bebesse!...
Em Deus creria simples e
quieto,
Sem mais especular algum
secreto.
A
mesma situação de espírito se de senha num dos sonetos:
Efeitos mil revolve o
pensamento
E não sabe a que causa se
reporte:
Mas sabe que o que é mais que
vida e morte
Não se alcança de humano
entendimento.
E
o soneto termina com a salvadora saída, o recurso extremo: "Mas o melhor
de tudo é crer em Cristo."
Nos
"Lusíadas", Camões comporta-se em matéria de religião como um perfeito
crente. O mundo antigo fascina-o; tem constantemente o pensamento cheio dos
seus herois, dos seus filósofos, dos seus poetas. Admira-lhe a liberdade, a beleza,
a sabedoria, a plenitude. Os seus mitos encantam-no. A razão e a imaginação do
poeta vivem numa atmosfera pagã. Ele ama a vida, a ação, os feitos luminosos,
os gestos ardentes, o florescimento da individualidade à grande luz da
natureza. Mas, enfim, com porta-se como um perfeito crente. O seu partido está
tomado: é preciso crer. A religião forte e o Estado forte são necessários à sua
compreensão da vida social e das conveniências morais. Como um romano antigo,
ama a disciplina e a ordem, dentro das quais o indivíduo se nobilita e se
afina, as instituições vicejam, as artes prosperam e a pátria se robustece e
perdura.
Por
isso, condena com energia a rebelião protestante, que rejeita o "jugo
soberano" e divide a cristandade, quando turcos e mouros estão vexando a
Europa; profliga com a mesma veemência as dissensões e os impulsos egoísticos
dos príncipes católicos; incita os europeus a unirem-se, para debelar a arrogância
otomana, e apresenta-lhes, cheio de patriótica ufania, o exemplo maravilhoso da
audácia portuguesa:
Aquelas invenções feras e novas
De instrumentos mortais de
artilharia,
Já devem de fazer as duras
provas
Nos muros de Bizâncio e de
Turquia.
Fazei que torne lá às silvestres
covas
Dos Cáspios montes e da cítia
fria
A Turca geração, que multiplica
Na polícia da vossa Europa
rica.
Gregos, Traces, Armênios e
Georgianos
Bradando-vos estão que o povo bruto
Lhe obriga os caros filhos aos
profanos
Preceptos do Alcorão: duro
tributo!
Em castigar os feitos inumanos
Vos gloriai de peito forte e
astuto,
E não queirais louvores
arrogantes
De serdes contra os vossos mui
possantes.
Mas em tanto que cegos e
sedentos
Andais de vosso sangue, ó gente
insana,
Não faltarão cristãos
atrevimentos
Nesta pequena casa Lusitana;
De África tem marítimos
assentos;
É na Ásia mais que todas
soberana:
Na quarta parte nova os campos
ara,
E se mais mundo houvera, lá
chegara.
(Lus.,
VII, 12-14.)
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