5/24/2017

Vida e caráter de Camões



Vida e caráter de Camões

Ensaio escrito em 1924 pelo escritor Amadeu Amaral. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes (2016)


A biografia de Camões está cheia de pontos obscuros e de falhas irremediáveis. Uma multidão de pesquisadores tem procurado esclarecer esses pontos e suprir essas falhas, já escavando todos os documentos que possam projetar algum fio de luz sobre essa vida quase inteiramente soterrada, já buscando o resíduo de verdade que exista nas tradições e nas lendas referentes ao poeta, já, enfim, analisando e conferindo com outros elementos os traços respigados na própria obra de Camões. Não há, porém, como nos iludirmos sobre o caráter conjectural das reconstituições tentadas com esses materiais. São tão frágeis, que às vezes nos dão a impressão de castelos de cartas habilidosamente arranjados.

Se, entretanto, assim é com os fatos de que se teceu a biografia do poeta, já o mesmo não se dá com a sua personalidade. Não há talvez elementos bastantes para se fazer dela um retrato acabado, mas os elementos que há são suficientes para um largo esboço, em que apareçam os traços essenciais. E sente-se que, por mais que se amplie, se retifique e se aperfeiçoe a biografia, nada poderá resultar que altere seriamente esses traços.

Camões, segundo notícias geralmente aceitas, foi, na mocidade, indivíduo desempenado e gentil. Estatura meã, louro, olhos chispantes, nariz "de cavalete", era jovial e folgazão de seu natural.

Tudo quanto sabemos e tudo quanto podemos depreender dos sucessos de sua vida, como de seus atos e escritos, impõe-nos a visão de um temperamento rico e vibrátil e de um caráter complexo e contraditório, — "má cabeça, bom coração" Era homem de sentimentos vivos e acentuados, sem essas esfumaturas de sensibilidade ou esses meios tons indefiníveis e fugitivos das almas domesticadas e alisadas em épocas de pacífica sociabilidade e longa polícia: sentimentos que iam de pressa dos ímpetos de clara alegria aos soluços de amargura veemente, da grossa jovialidade burlesca às donosas gentilezas palacianas, do arranco sensual ao rapto de misticismo.

Frequentou breve tempo os paços da Ribeira, onde se fez valer pela sua cultura e pela graça dos seus repentes e onde o encanto dos seus versos lhe mereceu os cognomes de "Sereia do Paço" e "Cisne do Tejo".  Cá fora, porém, era o rapaz insofrido e brincalhão, o "Trinca-fortes", com laivos talvez do ânimo esperto e prepotente da mocidade dourada do tempo e, ainda que altivo, não de todo isento daquela estouvanice boêmia, com que já então alguns poetas faziam roçar a clâmide da Musa pelas tavernas e calçadas da cidade.

Sobre esses aspectos da sua vida, na juventude, formaram-se muitas lendas, como sempre acontece, e segundo essas lendas o nosso futuro épico teria chegado a ser, por um lado, um valentaço perigoso e, por outro lado, um repentista pedinchão. Calúnias, sem dúvida. Parece averiguado, contudo, que não foi propriamente um santo, mas viveu e saboreou a sua hora de mocidade e soltura.

Teve relações com o patusco frade Ribeiro Chiado, com quem é fama que se mediu de uma feita em ligeiro combate de improvisos, a ver quem ganhava uns melões postos como prêmio por um fidalgo. O caso não se afigura impossível, porque nisso de disputar pequenos benefícios o poeta não achava graves impedimentos. A um outro fidalgo, que lhe prometera uma camisa e tardava com ela, não duvidou desfechar uma cobrança em regra, por sinal que sob graciosíssima forma:

Quem no mundo quiser ser
Havido por singular,
Para mais se engrandecer,
Há de trazer sempre o dar
Nas ancas do prometer.
E já que vossa mercê
Largueza tem por divisa,
Como o mundo todo vê,
Há mister que tanto dê,
Que venha a dar a camisa.

Assim como não tinha os requintes dos escrúpulos de uma austera concepção de dignidade literária, que só viria muito depois, também não tinha as surdas irritações desta sombria hipersensibilidade moral, tão encontradiça em nossos tempos de exagerado e dolorido culto do Eu.

Depois que esteve a servir em Ceuta, onde lhe ficou o olho direito numa refrega, pareceria, a julgarmos pela nossa experiência atual, que viesse de lá cheio de orgulho e devorado de melancolia. Moço galanteador e mundano, estuante de aspirações que não eram apenas de glória póstuma, aquele olho perdido parece que lhe devia ter levado metade da luz de sua alma, deixando-lhe o coração todo recozido em sangrentas angústias. A verdade é que, reatando a vida que antes levava em Lisboa, continuou a despender-se em galanteios e chalaças e brincos; e — o que é mais — tendo-lhe uma senhora chamado "cara sem olhos" longe de se doer da impiedosa grosseria, retribuiu-a com outro e desanuviado galanteio, todo entretecido de trocadilhos:

Sem olhos vi o mal claro,
Que dos olhos se seguiu:
Pois cara sem olhos viu
Olhos que lhe custam caro.
D'olhos não faço menção,
Pois quereis que olhos não sejam;
Vendo-vos, olhos sobejam;
Não vos vendo, olhos não são.

Houve ainda uma senhora, por nome "Foã dos Anjos", que lhe chamou diabo. A essa, igualmente, retrucou numa desenfarruscada série de redondilhas não menos engraçadas, nem menos corteses:

Quem quer que viu, ou que leu,
Terá por novo e moderno,
Ter quem vive no inferno
O pensamento no Céu.
Mas, se a vós vos pareceu
Que me estava bem tal nome,
Esse diabo vos tome.

Esse gênio folgazão e despreocupado continua a manifestar-se mais tarde, na Índia, depois de tantos sucessos tormentosos, — o olho perdido, os serviços em Ceuta sem recompensa, a briga no dia da procissão de "Corpus Christi", seguida de muitos meses de cárcere, o embarque forçado como simples soldado raso, a dura viagem de seis meses salteada de tempestades, e enfim o apartamento de tudo quanto amava. De Goa escrevia ele a um amigo, dando novas de si e da terra em tom de chança: "vivo mais venerado que os touros da Merceana e mais quieto que a cela de um frade pregador". Lá mesmo, compôs a sátira dos "Disparates da Índia", recheada de mordacidades e de gracejos fortes, e lá mesmo ofereceu aos amigos aquele almoço original, em que os pratos, em vez de comida, continham cópias espirituosas.

A história de seus amores, como os mais acontecimentos importantes de sua vida, anda muito romanceada de lendas antigas e de conjecturas e imaginações antigas e novas.

Segundo Teófilo Braga, teve três inclinações sérias em sua existência: a primeira, por uma prima, em Coimbra, quando estudante: a Belisa que aparece em algumas de suas poesias; a segunda, pela excelsa dona Francisca de Aragão, dama da rainha; e a terceira, a mais célebre, por uma das várias Catarinas de Ataíde que então viviam no paço, formosa vergôntea da estirpe fidalga dos Limas. A todas dedicou versos repassados ao fogo de uma paixão "decisiva" A que realmente lhe ficou na alma para o resto da vida, — parece verificado — foi a última.

Contudo, nos intervalos desses amores, ou durante eles, não desdenhou as graças nem sempre inocentes de outras senhoras; e na Índia, apesar de todos os revezes e de todas as saudades, ainda encontrou mulher ou mulheres em quer empregasse as largas sobras da sua abundante afetividade. Na sua obra lírica perpassa toda uma teoria de fidalgas, burguesas e plebeias, solteiras e casadas, brancas, morenas, louras e trigueirinhas, mais ou menos tenebrosas.

No meio dessa exuberância e dessa versatilidade de um temperamento pouco dado a saborear a volúpia da tristeza e mal talhado para os longos êxtases contemplativos, salteavam-no vagalhões de dor e de desespero. A esses devem-se alguns dos relanços mais comovedores da poesia lírica.

Não há fiar muito na realidade vivida de todos os casos íntimos que parecem memorados na obra dos poetas. Todos eles pagam o seu tributo à literatura, e nós sabemos que Camões o pagou. Leitor fervente de Sannazaro e Petrarca, de Garcilaso e Boscan, apaixonado de cultura, sacrificando mesmo largamente à erudição imitando o cantor de Laura nos sonetos, imitando a outros antigos e modernos, é claro que nem todos os seus versos lhe brotaram inteiramente do íntimo, embora sempre pusesse nesses lavores de arte estudiosa ao menos uma vibração de sua rica sentimentalidade própria. Entretanto, há trechos, da sua obra lírica onde o grito de alma resáe da contextura dos versos, pungente, inconfundível, com esse tom cavo e dorido da voz molhada de lágrimas, e onde o vinco da sinceridade profunda — e digo profunda porque há também uma sinceridade superficial, como há emoções superficiais — é confirmado pela ocasião, pelas circunstâncias e pelos antecedentes que explicam a crise emocional do poeta.

Esses gritos de alma encontram-se espalhados por toda a obra, nos sonetos, nas redondilhas, nas canções, nos "Lusíadas". Eis como soa, por exemplo, a Canção X, escrita numa hora de solidão amargurada, lá nos confins do mundo, num recanto inóspito e triste da Ásia, onde o poeta fora ter, como um farrapo levado pelo vento, depois de ter esvoaçado e rolado por longos mares e desvaira das terras e nações:

...Aqui a alma cativa,
Chagada toda, estava em carne viva.
De dores rodeada e de pesares,
Desamparada e descoberta aos tiros
Da soberba Fortuna;
Soberba, inexorável e importuna.

Não tinha parte donde se deitasse,
Nem esperança alguma, onde a cabeça
Um pouco reclinasse por descanso:
Tudo dor lhe era e causa que padeça,
Mas que pereça não; porque passasse
O que quis o destino nunca manso.
Oh que este irado mar gemendo amanso!
Estes ventos, da voz importunados,
Parece que se enfreiam:
Somente o Céu severo,

As estrelas e o fado sempre fero
Com meu perpétuo dano se recreiam,
Mostrando-se potentes e indignados
Contra um corpo terreno,
Bicho da terra vil e tão pequeno...

Tocamos no lado sério, refletido e elevado dessa alma complexa. Quando vamos penetrando um pouco além das primeiras aparências e dos possíveis, rápidos desvios, logo descobrimos sem dificuldade um caráter sólido e magnânimo.

Teve inimigos e rivais literários e mundanos, pérfidos e maldosos, mas não se queixa nominalmente de ninguém: não há em toda a sua obra um vestígio de rancor ou de vingança.

Quando, na procissão de "Corpus Christi", desembainhou a sua espada para ferir no toutiço um criado do paço, em defesa de dois amigos, sabia naturalmente da gravidade do seu crime, que atingia a própria pessoa do rei: traço de valentia generosa. Depois, preso, processado, metido em dura enxovia, sob a ameaça de severíssima sentença, não denunciou os cúmplices, que haviam escapado à ação da justiça, protegidos pela máscara que traziam e ao favor do reboliço que se seguira ao incidente: traço de cavalheirismo inflexível.

Nem sempre soube ter diante dos grandes aquelas atenções e resguardos que favorecem os ambiciosos e protegem os tímidos, e isto sem dúvida contribuiu para as suas desgraças. Num tempo em que a Inquisição pesava sobre os espíritos, e em que os jesuítas desfrutavam todos os favores do paço, ele manifestava abertamente a sua antipatia pelos "franchinotes", como se vê das suas cartas e de alusões contidas nos "Lusíadas".

Outro fato, indicativo da sua "imprudência": a comédia de "El-Rei Seleuco" é tecida sobre a imaginária história de um soberano que cede sua esposa ao filho, mortalmente enfermo de paixão pela madrasta; ora, entre dom Manuel e seu filho o príncipe dom João houvera também uma comédia de amor e casamento, ainda fresca na memória das gentes. Aqui, a situação dos personagens era a inversa: dom Manuel, em vez de ceder a mulher amada, casara-se com a princesa que o filho adorava. Mas nem por isso a peça deixaria de se prestar a interpretações maliciosas: podia parecer, por exemplo, que, trocando as posições, e fazendo o rei da comédia sacrificar o seu amor de esposo ao seu amor de pai, autor quisesse sugerir o como dom Manuel devera ter procedido. Visivelmente, Camões não tinha qualidades de diplomata.

Aliás, em parte alguma o seu feitio aparece melhor do que nos seus verbos, e, sobretudo, nos "Lusíadas". A unidade moral do poema, o seu ar de espontaneidade viva e corrente, o constante vigor e nitidez dos sentimentos, a correspondência dos traços psicológicos entre si e sua harmonia com o ambiente da época tudo denota que esses cantos jorraram em largos jatos, dos veios profundos de uma personalidade máscula, segura de si, sem sinuosidades e sem hesitações.

Camões aí está como ele era. Aí está o seu gosto da valentia e do gesto cavalheiroso, como no episódio dos doze de Inglaterra e numa quantidade de pequenos passos espalhados pelos mais cantos. Aí está o seu gênio um pouco fanfarrão, sob a forma de cândidos raptos de patriótica ufania, como quando põe nos lábios de Baco esta hiperbólica referência aos portugueses:

Temo que do mar e do céu em poucos anos
Venham deuses a ser, e nós humanos.

Aí está o seu orgulho, como quando de clara a dom Sebastião nas últimas estrofes:

Nem me falta na vida honesto estudo,
Com longa experiência mistura do,
Nem engenho, que aqui vereis presente,
Coisas que juntas se acham raramente.

Aí está a sua severa lealdade de soldado e cavalheiro, como nos conselhos que dá ao jovem rei, no Canto X. Aí está o seu espírito de retidão e de justiça, quando rijamente profliga a crueldade do seu admirado herói Afonso de Albuquerque para com a desgraça do Rui Dias, a quem mandou matar por andar de amores com uma rapariga do seu séquito; quando condena a ingratidão de dom Manuel para com o bravo e honrado Duarte Pacheco; quando despreza e vergasta os ambiciosos, os aduladores, os que vexam e espoliam o povo; e quando declara, dizendo a verdade, que não dará jamais o seu louvor a quem não o mereça.

Aí está, enfim, o seu radical pendor para a clareza e a decisão, visível em todo o fundo moral e mesmo na composição e forma dos seus versos.

Vejamos, para terminar, um novo aspecto desta individualidade frondosa. Aqui encontramos o maior dos seus contrastes.

Sabemo-lo galanteador, expansivo, inquieto, folgazão — e desventurado. Vem de Coimbra para Lisboa após os estudos; entra no paço; é desterrado para o Ribatejo; volta e segue a servir em Ceuta por dois anos; tenta partir para a Índia e a nau que o leva torna atrás batida por uma tempestade; demora-se em Lisboa; jaz por oito meses na prisão do Tronco; parte para a índia, sob o humilde gorro de soldado raso; passa dezesseis anos entre a África, o Indostão, o Mar Vermelho, as Molucas e a China, em viagens, tormentas, combates, amores, intrigas, prisões, misérias, raivas, desesperos e saudades. Contudo, não só teve tempo para formar uma ilustração fora do comum, como o teve para realizar uma obra literária composta de três comédias, cerca de três centenas de sonetos, uma opulenta coleção de églogas, oitavas, canções, odes, epístolas, endechas, glosas, e enfim um poema épico em dez cantos, com 1.102 estrofes — fora as cartas e fora os ensaios que inutilizou e as coisas que se perderam.

Essa obra resume de certa forma o saber e as ideias do tempo. Está inçada de imagens clássicas, de referências mitológicas, geográficas, históricas, astronômicas, de comparações eruditas, de nomes e fatos, de mil coisas, enfim, que parecem supor o manuseio constante de livros — se bem que devamos fazer largo crédito a uma fenomenal memória, tratando-se de uma época em que os livros não podiam ser adquiridos facilmente, e tratando-se de um homem cuja vida, como ele mesmo disse, andou "por o mundo em pedaços repartida".

Temos, pois, que ver, embora custe, ao lado do Camões irrequieto e derramado, um Camões recolhido e meditativo, homem de letras completo, homem preparado, estudioso, paciente, grande devorador de obras de todo o gênero, enfim, um tipo disciplinado, assentado, literalizado, tradicionalista, que se nos afigura exatamente o oposto do homem de ação, de iniciativa e de vida intensa.

Mas, aqui, já passamos do tempera mento e do caráter nativo do poeta para a brilhante e redundante figura social e literária do homem da Renascença e do Portugal do século XVI, do homem representativo de um momento da civilização e de um momento da história portuguesa.

AMADEU AMARAL

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