Camões: o poema
Ensaio escrito em 1924, pelo escritor Amadeu Amaral. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes (2016)
Esse poema, porém, não interessa apenas a portugueses, como uma espécie de livro sagrado de uma religião nacional, estranha e esotérica. A universalidade é que constitui a sua maior e mais duradoura grandeza. Se Portugal desaparecesse um dia por efeito de um cataclismo, do grande naufrágio se salvaria, quando tudo houvesse de perecer, este livro imortal e predestinado a sobrenadar a todas as ondas da vida e do tempo, como se salvou das águas do Mecom pela mão do pobre poeta naufragado.
Os
"Lusíadas" são uma dessas obras do espírito humano que parecem
incorporadas no conjunto das forças da natureza, enquadradas no jogo e circulação
das energias e dos fenômenos. Tem qualquer coisa de orgânico e de vital, que
lhe vem do acaso ou do providencialismo dos acontecimentos e das coincidências
que o suscitaram, e que por isso mesmo lhe deram esse caráter de uma concreção
maravilhosa de largas realidades e de virtualidades perenes.
Dir-se-ia
que os grandes criadores geniais são, de fato, porta-vozes, "desecos
sonores", refletores, ou, melhor, álveos preparados por um desígnio extra-humano
para receberem a confluência excepcional de várias correntes dispersas da vida
e do pensamento.
Essa
ideia, que parece eivada de misticismo romântico, como que se impõe, entretanto,
aos espíritos mais inclinados a uma apreciação positiva e objetiva das coisas.
A concepção de uma consciência exterior e superior à do artífice, dentro da
qual e pela qual ele pensa, ele sente, ele se move, pela qual ele se põe, sem o
perceber, em contacto com a grande vida da história, com a mais larga realidade
humana e com o inundo do mistério e da eternidade, se ainda se ressente de
muitas incertezas e dá lugar a muitas fantasmagorias retóricas, mercê das
nossas ideias incompletas sobre os fenômenos relativos à atividade do espírito
em função do meio social, é, Contudo, uma concepção que se pôde aceitar
provisoriamente como traduzindo de longe a verdade de um mecanismo efetivo,
ainda mal estudado.
Em
Camões, nós vemos antes de tudo um conjunto milagroso de predisposições de
temperamento, de caráter, de origem, de educação, de situação social e de vida,
que o tornavam apto a realizar uma epopeia com o que ela exige de ardor, de
força, de gravidade, de convicção íntima, integral e profunda.
Esse
homem surge exatamente num momento da civilização em que a volta entusiástica
ao espírito antigo e às fôrmas que esse espírito criou, tornava possível uma
larga e sôfrega absorção dos exemplos e dos modelos gregos e romanos, ainda não
de todo requentados e repisados pelas minuciosidades da cultura retórica e gramatical.
Ao passo, porém, que, em outros países, era preciso procurar os elementos
esparsos da matéria épica nos refolhos da história, nos nevoeiros da lenda, nos
esforços da meditação e nas liberdades da imaginativa, em Portugal a própria
vida inteira do país chegara ao cimo de um movimento ascensional de energias coletivas,
e a substância de uma poesia grandiosa como que refervia alucinante num estralejar
de cachoeira.
Esse
prodigioso conjunto de circunstâncias é que permitiu que Luiz de Camões, com
todas as suas tendências doutorais, imitativas e cultistas (antes do verdadeiro
"cultismo" literário) não caísse no artifício de uma composição
sabiamente regulada pelo modelo virgiliano, ou de uma simples crônica metrificada,
rimada e florida de elegâncias e belezas convencionais.
Ele
bem se propôs a "Eneida", por modelo, bem se muniu de todo um aparelho
clássico de figuras mitológicas, bem andou pelos arquivos da literatura antiga
arrecadando uma multidão de pequenas peças aproveitáveis; mas a verdade presente
e pungente dos incitamentos que o levavam a sonhar com uma epopeia, a sinceridade
fervente do seu patriotismo, a vibração da sua natureza engolfada na realidade,
entranhada nas palpitações ambientes da vida, e, mais que tudo isso, o seu
gênio todo nutrido de objetividade e de sentimento, fizeram que rompesse,
apesar de tudo, a couraça dos cânones respeitados e deixasse extravasar uma
poderosa originalidade pelos dez cantos desse poema monumental.
Como
notava Schlegel, os "Lusíadas" são o único poema verdadeiramente
"nacional" dos tempos modernos, aquele em que se condensa deveras a
história, o espírito, a alma de uma nação; e são ao mesmo tempo o mais
universal dos poemas, porque nos apresentam essa nação a marchar do fundo da história
para o cume de uma formidável missão civilizadora no mais largo cenário geográfico
até então abarcado pelas energias humanas. São, ainda, o único onde se pôde
respirar em verdade uma atmosfera de harmonia moral e de plenitude heroica,
acima da "literatura", sem artifício, sem ceticismo dissimulado, sem
ironia nem descrença latente, toda repassada de ingenuidade e de decisão, toda
cheia de uma "certeza" tranquila, jovial e magnífica a expandir-se
correntemente por uma "tuba canora e belicosa".
Esta
a maior beleza do poema, a suprema beleza, de dentro da qual ressaem iluminadas
ou na qual se dissolvem as outras belezas secundarias, e onde os próprios
defeitos e as próprias partes caducas têm a sua explicação e o seu meio
natural, como as folhas amarelas e os galhos ressequidos de uma grande árvore
frondejante. Essas belezas menores são bastante conhecidas, e por isso estou dispensado
de uma enumeração que seria fastidiosa.
Assim,
os "Lusíadas" são um monumento oferecido à admiração universal, e um
monumento irremovível e imperecível. Não é daqueles que se medem e se exploram
com os metros e moldes de teorias estéticas limitadas e concluídas: é daqueles
que se impõem à consideração de quem quer que lance olhares retrospectivos e
circulares sobre as grandes manifestações da criação artística na humanidade, e
que se tornaram fonte, base ou escora necessária de todas as concepções teóricas
não inteiramente construídas no vácuo.
Para
nós, brasileiros, os "Lusíadas" apresentam, além dos motivos universais
de apreço, outros motivos que nos são particulares, e que não devemos esquecer
Antes de tudo, os "Lusíadas", sendo o poema de Portugal, são o poema
da pátria de nossa pátria — e o poema da nossa raça. Unamuno, o grande escritor
espanhol, não há muito, alargava esse conceito de raça para incluir nele a
gente da Galiza, que é irmã da gente portuguesa, e dar assim aos
"Lusíadas", obra de um descendente de galegos, o caráter de um poema
ibero-ocidental, em que se traduzem qualidades fundamentais, comuns aos dois
povos. Nós só podemos ter razões para não pretender menos que Unamuno, e seria
ocioso insistir neste ponto.
Vem
agora um outro motivo, ainda intimamente ligado ao precedente. A língua dos
"Lusíadas" não é apenas a grande e formosa língua comum de Portugal e
Brasil; é, a certos respeitos, mais a língua do Brasil que a de Portugal. A
prosódia fixada no poema, já não sendo a prosódia corrente dos portugueses de
hoje, está perfeitamente de acordo, em quase tudo, com a que ainda prevalece na
maior parte do nosso país, Nós podemos, sem afetação e sem contrafação, recitar
os versos dos "Lusíadas" na plenitude do seu ritmo e da sua sonoridade.
Já por esse lado, já também pelo boleio nativo da frase, pelo tom da elocução,
pelo vocabulário, os "Lusíadas" têm para nós, principalmente nos trechos
mais simples e mais espontâneos, um ar de familiaridade repousante e gostosa,
que em vão procuraríamos em obras portuguesas de época posteriores.
Finalmente,
um terceiro motivo, e último, não tanto porque não possa há ver outros, como
porque devo ater-me aos principais e permanecer nos limites de um trabalho
modesto, em que é preciso ambicionar mais que tudo o mérito da brevidade. Esse último
motivo está na permanente atualidade moral dos "Lusíadas",
atualidade, para nós, brasileiros, talvez não só permanente, como Imperiosa, no
momento que atravessamos.
É
coisa de toda evidência
que nós vivemos, espiritualmente, no vago e no flutuante das ideias e dos
sentimentos. Tíbios de caráter por um conjunto de fatores que não vem a pelo,
nem seria fácil discriminar, somos tíbios e incertos em nossas idealizações e
em nossas diretrizes. Temos um desgraçado pendor para as volúpias equívocas de
um ceticismo e de um diletantismo de pensa mento, que já tocam as raias do
niilismo moral e total. Falta-nos fé, falta-nos fibra afirmativa, falta-nos a
coragem de optar, falta-nos a sensação forte e rodente das responsabilidades
perante a vida, perante a Pátria, perante a Humanidade e perante nós mesmos.
Somos umas naturezas ondulantes e frouxas, melancólicas, sensitivas e retraídas,
resinadamente rebeldes e inconciliáveis. A feminilidade da alma contemporânea é
aqui mais acentuada do que em parte alguma.
Padecemos
uma grande doença, de que não temos toda a culpa, cujas origens espaçam mesmo,
em parte, à nossa compreensão, cuja própria presença se percebe em conjunto mas
refoge à pressão de um diagnostico minudente. Contudo, é preciso reagir E entre
os muitos remédios e corretivos que cada qual deve buscar, segundo sua ideia ou
seu instinto, um deles bem poderia ser o poema da nossa raça, que é também o
poema da Masculinidade robusta, onde se glorifica a vida, onde se sente passar,
como um sopro de primavera e de bata lha, a beleza forte da ação, onde se
enaltece o individualismo a expandir-se dentro de uma ordem superior como um Hércules
benéfico, onde ressoa magnificamente um hino ao sentimento do dever humano e
social. É o dever feito poesia e beleza, o áspero dever que floresce em
heroísmo, em alegria e em orgulho, o dever saneador e revigorador que tem
criado tudo quanto há de mais prestigioso, mais durável e mais incorruptível na
história, superpondo ao mundo das forças brutas, da vida vegetativa, do
fatalismo gemente e das indecisões crepusculares o mundo claro e definido da
consciência que afirma, forte da sua boa fé, e da vontade que age, segura da
sua intrínseca bondade, — uma, ardente como um lume na treva, outra cortante
como uma espada que rutila.
Mundo
pequenino e precário como nau perdida em oceano tenebroso, mas, enfim, nau onde
há a solidez relativa das taboas, onde há a palpitação das velas que prendem e
cansam os ventos ameaçadores, onde há um leme submisso, onde os próprios astros
remotos e indecifráveis servem aos nossos desígnios, e onde as flâmulas
inquietas atiram ao espaço e às forças da natureza e do destino o desafio
intrépido da energia humana sobrepairante ao mistério, à dor, à ruína e à morte!
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