Carlos Drummond: sobre a Tradição em Literatura
Texto escrito por Carlos Drummond e publicado no ano de 1925. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes (2017)
Os escritores que falam em nome de uma tradição são justamente aqueles que mais fazem por destruí-la e contribuem para a sua corrupção. Ao contrário, aqueles que não se preocupam com os fantasmas e fantoches do passado mantêm inalterável a linha de independência intelectual que condiciona toda caiação de natureza clássica. São estes Últimos os verdadeiros tradicionalistas, por isso que o próprio da tradição é renovar-se a cada época e não permanecer unificada e catalogada. Romper com os preconceitos do passado não é o mesmo que repudiá-lo. Uma lamentável confusão faz com que julguemos toda novidade malsã, e toda velharia saudável. Este conceito equipara as obras literárias aos xaropes e outros produtos farmacêuticos: quanto mais tempo de uso, mais recomendáveis... A verdade é que o tempo, reage sobre qualquer livro de duas maneiras: debastando-o e emprestando-lhe novas aparências. Por um lado, tira-lhe todo interesse que seja do tempo, e que com ele se adelgace; por outro, empresta-lhe uma consistência que o torna capaz de impressionar sensibilidades de tempos muito diversos. Assim, um livro de 1500, lido em 1925, não é o mesmo livro de então; morreu um pouco e tornou a nascer outro pouco. É um outro livro, de um outro autor.
O que
chamamos de tradição propriamente não existe. Que vem a ser uma tradição
literária? Talvez o mosaico fantasista e caprichoso com que o tempo se divertiu
em transformar a secessão de obras e autores que constituem uma literatura? Não
pode ser mais do que isso, e a nossa época, terrivelmente dotada de espírito
crítico, acha pouco. Temos, pois, mais que o direito de desrespeitar essa falsa
tradição: temos o imperioso dever. E só assim faremos dessa matéria morta e
pegajosa dos séculos uma argila dúctil que sirva às nossas criações. Será
mantendo essa independência espiritual, talvez ingenuamente feroz, mas
francamente construtiva, que reataremos o fio tantas vezes perdido do
classicismo. Os nossos avós inteligentes não desejariam de nós outra coisa.
Copiá-los é o mesmo que injuriá-los. Recolhamos o seu espólio, sem excesso de
veneração; temos que proceder a um grave inventário de suas pretendidas
riquezas. O presente não pôde estar a sofrer os contínuos “bluffs” do passado.
Seremos duramente julgados amanhã, porque é cada vez maior esse diabólico senso
crítico que distingue o homem, moderno. Poderemos, pois, perdoar aos nossos
antepassados? Mais que uma fraqueza do coração, será uma fraqueza da
inteligência.
Que cada um
de nós faça o íntimo e ignorado sacrifício de suas predileções, e queime
silenciosamente os seus ídolos, quando perceber que estes ídolos e essas
predileções são um entrave à obra de renovação da cultura geral. Amo tal
escritor patrício do século 19, pela magia irreprimível de seu estilo e pela
genuína aristocracia de seu pensamento. Mas se considerar que este escritor é
um desvio na orientação que deve seguir a mentalidade de meu país, para a qual
um bom estilo é o mais vicioso dos dons, e a aristocracia um refinamento ainda
impossível e indesejável, que devo fazer? A resposta é clara e reta: repudiá-lo.
Chamemos este escritor pelo nome: é o grande Machado de Assis. Sua obra tem
sido o cipoal em que se enredou e perdeu mais de uma poderosa individualidade,
seduzida pela sutileza, pela perversidade profunda e ardilosa deste romancista
tão curioso e, ao cabo, tão monótono. Deu-se com a obra de Machado de Assis o
mesmo que o desabusado João Cocteau conseguiu lobrigar na obra-tabu de Anatólio
rance: ambas são aparentemente clássicas, porém sem nenhum classicismo
autêntico: este só é denunciado pelo correr dos anos, que reage sobre os livros
pela maneira dupla indicada mais acima. “Cherchez
donc le classicisme futuer dans ce qui ressemble le moins aux classiques”.
Eis aí o segredo da debilidade mortal de Machado de Assis. O escritor mais fino
do Brasil será o menos representativo de todos. Nossa alma em contínua
efervescência não está em comunhão com a sua alma hiper-civilizada. Uma
barreira infinita nos separa do criador de Braz Cubas Respeitamos a sua
probidade intelectual, mas desdenhamos a sua falsa lição. E é inútil
acrescentar que temos razão: a razão está sempre com a mocidade.
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