Texto escrito por Martins,
em 1939. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes
(2017)
Seria uma banalidade repetir que a literatura estava se tornando um emaranhado de falsidades que o modernismo acabou. O modernismo, de certo jeito, foi outro emaranhado de falsidade. Hoje não se sabe bem o que quer dizer modernismo, tanto é efêmera e relativa a mística das classificações. Quem é moderno? Quem não é moderno?
Por muitos
aspectos os movimentos modernistas não passaram de verdadeira s manifestações
do século XIX, porque foram a exaltação do indivíduo. Esse indivíduo era o
"homem moderno", com as suas impasses de cultura, a sua coragem
esportiva, a sua inquietação permanente, a sua linguagem modificada pela
mecânica, o seu tédio melancólico e a sua loucura jovial.
O fato,
entretanto, é que passamos o momento lúgubre em que os nossos escritores se
compraziam em compor artificialmente uma literatura de caroços. Vencemos também
o período anárquico da reação, a hemorragia dos manifestos.
Como nas
revoluções políticas, os vencedores de ontem começaram já a estabelecer uma
nova burguesia intelectual, uma volta voraz ao academismo (clara ou disfarçada
em eufemismos sucedâneos) a criar uma nova ordem, uma nova disciplina e o culto
de novos tabus.
As
consequências do movimento foram de tal forma consideráveis, que seria ingênuo
estabelecer os limites de sua extensão. Pode-se dizer que ele passou a
mentalidade brasileira a limpo. Mas, como todas as revoluções, trouxe detritos
nas águas turvas. É que toda escola oferece uma oportunidade aos medíocres.
O modernismo
sofreu a influência avacalhadora dos adeptos. Como nos tempos do parnasianismo
todos escreviam sonetos, no tempo do modernismo passaram todos a escrever
tolices em versos livres. (Como, há coisa de uns dois anos, era moda ser
escritor proletário). Tirando talvez uma dezena de nomes principais, onde estão
agora aqueles rapazes que apareciam nas revistas assinando coisinhas aí por
volta de 1924?
É essa a
ação perniciosa das teorias, das escolas, das plêiades, das academias. É essa a
influência perniciosa dos grandes escritores. Como somos um país de reflexos,
assimilamos sempre a literatura de um nome solar para estabelecer a ronda
saltitante dos satélites. Byron era um grande poeta, mas os
"byronianos" forçaram a nota até ao ridículo pitoresco. A obra de
Wilde não é má, mas a obra dos "wildianos" é péssima.. Assim também a
dos "verlainianos", a dos "proustianos", a dos
"pirandelianos", etc.
Sob esse
aspecto, foram grandes malfeitores para a nossa intelectualidade moderna Gilde,
Proust, Lawrence, a literatura proletária. Além de Péguy e Claudel, que
orientaram os católicos.
Dessas
influências, naturalmente a que mais se esparramou foi a da literatura
proletária, em razão da nossa Índole tão afeita às emoções de superfície.
De fato, um
dos defeitos maiores da literatura dos nossos dias, no Brasil, é a facilidade
de construção. Os nossos romances modernos, sobretudo, ressentem-se da falta de
profundidade, da ausência de análise. Temos estendido a literatura de
observação direta a um excesso de superficialidade horizontal, de conformidade
banal com a realidade, de cumplicidade com a vida.
O crítico
francês sr. Pierre Hamp escreveu com propriedade a propósito dessa literatura
de reportagem:
"L'écrivain d'enquête est obligé de
toujours poursuivre son sujet dans les embuches d'un réel qui lui est étranger.
Il se superpose a son oeuvre, il ne l'habite pas. II tourne autour, il
n'est pas au centre et dans l'imprégnation. On voit alors Ia grande
difficulté de l'art social: c'est Ia pénetration".
Uma
determinada concepção de arte social tem levado parte de nossos escritores a
sair de sua órbita natural de atividades, do meio em que vivem quotidianamente,
para a realização de inquéritos sobre a vida proletária. Ora, toda obra de arte
é social, desde que seja atual, desde que seja um reflexo do seu meio. O que é
preciso é que seja feita com sinceridade. Porque o que pode comover na arte
social, não é o fato dela ser social, é de ser arte.
Advirto que
me refiro exclusivamente à arte social e não à arte doutrinária, ã literatura
de partido. Não discuto aqui si a criação artística está ou não ligada ã
posição política do indivíduo. Há quem pense aliás que pode haver uma perfeita
dissociação entre as duas atitudes, a artística e a humana: o sr. Julien Benda
lembra o caso de Fustel de Coulanges, ensinando que a reconstituição do passado
exige a anestesia das paixões do presente; isso como historiador, porque, como
homem, ele bem que participou das paixões do seu tempo...
Quanto à
influência de Lawrence, ela degenerou, entre nós, numa sinistra exibição de
recalques evadidos. O escritor inglês é admiravelmente puro, quase ingênuo, no
próprio ímpeto pagão de sua selvageria erótica. Nada de "canaille",
nenhum tom escuso de patifaria sexual. O que ele tentou escrever foi uma
espécie de sinfonia litúrgica da carne, num tom misterioso de oficiante pagão.
Nós
introduzimos gestos obscenos de coitos infelizes, evocações sórdidas de
recalques adolescentes e bamboleios suados de sambas excitantes.
(Muita gente
achará talvez que eu estou fazendo a crítica justa de meus próprios livros. De
fato, alguns críticos me acusaram, no meu romance "A terra come tudo"
e, principalmente no "Lapa", de exibir uma certa volúpia em pintar
cenas eróticas em seus mais repugnantes detalhes. Nada mais injusto. O que me
interessou naqueles dois livros, o que me levou a escrevê-los, não foi nunca um
impulso sexual, mas a dor humana, a desgraça irremediável das mulheres para
quem o amor não passa da tragédia quotidiana. Não tem importância nenhuma o tom
da linguagem. Ele é necessário ã vida do romance, à verdade de sua estrutura.
Posso afirmar que ambos são livros absolutamente puros e bem intencionados).
Uma das
consequências mais sérias do modernismo foi afastar inteiramente a poesia da
sensibilidade popular. De fato, o povo desconhece por completo a poesia
moderna, fôrma aristocrática da literatura.
Há quem
julgue isso um mal. Na verdade, não é um mal nem um bem, é um fenômeno lógico.
Há uma dissociação tremenda entre a brutalidade mecânica do mundo moderno e o
lirismo açucarado dos motivos poéticos tradicionais. O poeta se sente mal, quer
dar o fora da vida, quer se refugiar em um país onde se fale uma linguagem
diferente, onde os outros homens não compreendam e não ridicularizem as suas
mensagens. A poesia moderna representa um anseio de fuga, de evasão, de não
conformidade com a vida real. (Jorge de Lima na "Túnica inconsútil",
em contraposição ao Jorge de Lima dos primeiros poemas; Manuel Bandeira;
Adalgisa Néri — três exemplos só).
Essa poesia
se transformará pouco a pouco, quando se realizar lentamente uma espécie de
reajustamento sentimental entre os poetas e as multidões. Porque atualmente os
poetas estão falando, para o povo, uma língua morta, grego ou latim, sem
nenhuma ressonância na sua receptividade emotiva. O modernismo não deu um
grande poeta popular.
O lirismo
moderno tornou-se uma "voz interior", perdeu todas as suas
características de interpretação de sentimentos coletivos, refugiou-se no
círculo fechado de uma arte para iniciados Maçonaria literária.
Se o romance
social caiu num excesso de facilidade, a poesia vai se atirando num hermetismo
perigoso e solitário.
Esse
divórcio entre o artista e o público caracterizou todo o esforço moderno nas
letras e nas artes. Os socialistas explicam, com Plekanow, que é uma forma
tímida de protesto contra a sociedade burguesa. Para eles, entretanto, passou o
tempo dos protestos tímidos e, daí a literatura social dos nossos dias.
Quanto a
mim, acredito que o artista é quase sempre um inadaptado, seja qual for o meio
social em que viva. Quase todos os poetas, pintores, compositores, romancistas,
escultores que viveram numa atitude de permanente hostilidade com a vida nunca
pensaram numa revolução brusca dos valores sociais, ou encararam essa hipótese
ainda com olhos sonhadores, como si se tratasse de uma utopia, um devaneio
sedutor, um "motivo artístico".
A literatura
moderna se caracteriza também pela sua feição de pesquisa, pela ânsia de
explicar o fenômeno "homem" em função de suas próprias paixões ou da
sua coletividade social. O homem passou a ser um caso clínico.
Daí a
volúpia das memórias e das biografias. Daí a voracidade com que são devorados
os tratados de psicologia e da rapidez com que se vulgarizou a estudo da
psicanálise e está se vulgarizando o da biotipologia.
Decorre
disso uma certa facilidade propicia à floração da charlatanice cultural. A
vulgarização da cultura produziu a falsa cultura, panaceia que só tem servido
para complicar ainda mais o estado mórbido desse frágil doente que é o homem
dos nossos dias, o tão decantado "homem moderno" — domador de
máquinas domado pela sua própria miséria interior...
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