5/25/2017

Crônicas de Malazarte


Crônicas de Malazarte
Texto escrito por Mário de Andrade e publicado em 1923. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes (2017)

Deu-se agora um fato muito importante na minha vida: fim trinta anos. Que tenho eu tom isso! dirá o leitor que sabe livros e se presa. Com efeito: não tem nada. Eu é que tenho. Não basta? Malazarte sempre me repete: Intelectual, nunca te preocupes com preceituário dos leitores. São vaidades. Leitor que se presa é absolutamente desprezível.
Esta maneira de pensar de Malazarte me agrada, embora lembre Wilde — e eu não seja grande admirador das "Intenções" Para mim Wilde é artista eminentemente caduco. Peneirando bem só me ficaram o "De Profundis" e a balada. O resto envelhecerá. Já envelheceu. Não se lê três vezes. —Cale-se! — Hei de falar. Não se lê três vezes. Todo esse artificialismo sem dor, aquela idolatria sem crítica pela Grécia, o paradoxo à força, a coleção das suas personagens de estufa, etiquetadas como avencas raras... Wilde reeditou essa coisa curiosa, que às vezes é moda, mas não é fonte: o dandismo artístico. Outros leões houve na história das letras. Fáceis exemplos Camões. Goethe. Nabuco. Há distinção. Wilde transplantou o almofadismo para a região das letras; e se Byron e Musset foram leões entre a elegância do tempo, leões foram também na poesia. Mas este leão derradeiro não é significado extensivo da palavra. Faz metáfora. Foram leões de lirismo pelos atributos que do leão animal transladaram para o verso: potência viril, tumultuária beleza, generosidade. Há generosidade nos leões? Foram leões na poesia, como Napoleão é fondre masculinizado, le foudre — exemplo invariável de gramáticas francesas.
Abandono Wilde. Se continuo nesta parolagem associativa será não acabar mais. Ora eu ainda tenho assunto e penso que crônicas devem ter fim, embora se qualifique de crônico isso que nunca mais acaba, como por exemplo insultar modernistas. Eis aí crônica doença que a milhares de milênios perdura, com a mesma agitação e ararice. Para esta última não há remédio. É ingênita. Agitação no entanto é coisa que a velhos não fica bem. Uma certa calma prudencial, apesar de realmente não existir por dentro, pôde esconder essa agitação. Deve fazê-lo. Sobre isso, com seu pacato e delicioso dizer. Baltazar Castiglioni deixou-nos boa advertência no "Cortesão". Aos velhos a serenidade assenta, avisa o italiano, e aos moços é certo que leveza e jovialidade vão bem, como predicados de juventude que são.
Eu, por mim, preferi sempre a companhia dos moços. Aprendo nela muito mais. A velhice espeta no canavial da conversação o espantalho da experiência. Afugenta. Ninguém aprende pela experiência dos outros. Isto ê certo. Doutra fôrma a História não seria um eterno repetir-se e os homens uma continuada lamentação. Que cabeça, examinando os atos passados dos membros que lhe obedeceram, não dirá: Se me fosse dado voltar para trás, agiria doutra maneira? Mas se toda a vida a experiente velhice andou a avisar essa cabeça que a estrada real perlustrada era notoriamente um descaminho!... Qual! a experiência só de nós nos vem.
Ainda por cima os velhos nos apresentam o espantalho sob um aspecto didático, única maneira de fazer a experiência para sempre aborrecida. Raro homem volta aos estudos de escola. Virgílio muito pouco é lido, por causa duma tempestade latina e umas "horrentia Martii arma" engolidos malbaristamente aos escolares 13 anos de nossa vida. J à li na escola!... Então a gente compra Macedo, Wilde, Fogazzaro e outros inéditos franceses.
Tenho um ginásio imaginário na cabeça em que os alunos estudam filosofia em Nietzsche, latim em Petrônio, psicologia em Geraldy e Bourget. As tragédias que adepto são de Bataille, Ibsen, Maeterlinck e Suderrmann. Ali se aprende o português em Guerra Junqueiro, em Silvio Romero e na Revista da Língua Portuguesa. Deste jeito meus alunos se aborrecem de coisas pernósticas, de coisas inutilmente nebulosas e simbólicas, de maus versos, maus romances, e nunca mais quererão escrever mal o português. Mas é um ginásio apenas imaginário. Não tenho inclinação para diretor de consciências, como se vê.
Pensas que isso me entristece? Ao contrário! Sou aluno. Inveterado aluno. Escolhi para me bacharelar nas ciências e nas letras as doutas preleções dos moços. Adoro a mocidade! Principalmente a minha. Apeguei-me a ela. Agarrei-a com tais unhas que agora, creio, não me deixará nunca mais. Assim seja! Respeita-se a velhice... Por quê! Nada vejo de respeitável nessa máquina que já não sofre e sentencia. Eminentemente repleta de si e incapaz de errar. Admiro os erros e os que sofrem de seus próprios erros. Admiro a mocidade que erra e sofre. Eu canonizei a mocidade — essa mártir dos entusiasmos.
Estou a afirmar todas estas verdades irritantes por uma razão capital para mim: fiz trinta anos. Considero esta idade importantíssima. Comparam-na ao verão... Chamam-na de outono... Que embrulho, essa baldeação trimestral de estações! Não entendo delas neste Brasil primaveral. E positivamente não quero saber se colheitas se fazem no verão ou no outono. Isto são metodizações europeias, que muito bem mostram o depauperamento muscular e espiritual do velho mundo. Daí essa necessidade de metodizar os atos, própria de velhos e depauperados. A Europa é um sanatório onde por meio de termas e hormone, artes e homens buscam se revigorar em vão. Ora, apesar de sete anos mais moço vivo a cantar como Whitman:
 “I, now thirty-seven years old in perfect health... "
Em pletórica saúde, pois não! Graças vos sejam dadas, Higea, filha de Esculápio! Por tudo isso não gosto mais da Europa, que é sanatório e tem 4 estações.
A idade não deve ter estações, nem trinta anos é outono ou verão. Isso de infâncias, juventudes, idade adulta, velhice... prédicas de sanatório! Há semente mocidade. Porção delas! Cada nova década é uma... Primeira mocidade... Segunda mocidade... Isso me comove. Comove, porque uma era nova desperta para mim, nesta quarta mocidade em que Outubro me transporta. "Era nova" a muitos se antojara palinódia... Que palinódia essa! Não dei para neoclássico nem para arrependido. Vou para diante, apenas isso.
Dirão também que estou a falar de mim? Estou. Mas, embora já me aborreça o paradoxo, falar de mim é falar dos outros também. Mas creio que não sou lá muito são de espírito. Volto a afirmar essa verdade, porque me lembro das palavras de Shestov: O homem são de espírito, inteligente ou imbecil, na realidade não fala de si, mas do que pôde ser necessário e útil aos outros. Mas, pergunto eu, quem é são de espírito? Que coisa é útil na Terra? A demais falar de si, falar dos outros... Tudo o mesmo. Nem nós, homens diferentes deste mundo, somos tão diferentes assim. A questão se limita a volumes de narizes e morais. Qual a diferença entre os homens? Um tem dois milímetros quadrados menos de nariz, outro maior cubagem na moral. Mas todos nós temos nariz e moral. E é por causa destes recipientes que quando digo Eu, o leitor entende tratar-se dele. Por causa de termos sem exceção, moral e nariz, homens somos todos um universal, como aprendi a dizer nessa fantasia linda e inútil, posta por vocês no departamento das ciências e por mim no departamento das malazartes, a Filosofia.
É verdade que nas minhas crônicas se mede o tamanho de meu nariz. Mas não posso andar por aí medindo narizes de leitores. Seria indiscreto. Mostro o meu, aos 30 anos. O leitor que observe se ele é maior ou menor que o seu. Vá lá! Quanto? Dois milímetros? Pois sejam dois milímetros. Mas o leitor aprendeu por si, e por comparação, que é ainda a melhor maneira de pensar. Substituamos o verbo pensar por experimentar, que também é da primeira conjugação. Tantas coisas e tão contrárias se têm pensado, que não tenho mais nenhum gosto em conjugar o verbo. Ponho decidido: EXPERIMENTAR.
Talvez isto seja culpa do século, que pela ciência experimental se conduz. Epstein lançou agora a Lirosofia, segundo ele, o dernier bateau abordado em plagas de humanidade, para substituir pensamento e experiência. Mas eu ainda não me dou bem com a nova mesinha do sanatório francês. Sou passadista — confesso, desde os tempos eruptivos do desvairismo. Ainda continuo no verbo experimentar e digo ao leitor: Mediste os dois narizes. Adquiriste experiência e por ti mesmo a adquiriste. Pois que te faça bom proveito! E continuo a lembrar os meus 30 anos.
Entrei para a quarta mocidade! Um sem-número de imagens comovidas ronda no meu ser profundo. É uma poracê maravilhosa na clareira da mata. São juruparis, caaporas e uiaras a bailar. Saltam anhangás das moitas, surgem maraguinganas das fumaças odorantes da fogueira. Filtra-se a Lua através da folhagem, adensando nos troncos e nos festões dos cipoais arquiteturas invisas. Que Partenões de mármore e ardentes policromias! Que Santos Apolinários do ouro e ultramarino! Oca rupestre onde sapateia o guau do passado, do presente e do futuro. Vitórias, nobrezas, bondades e... Ambições imorredouras, orgulhos imorredouros erros morituros e amores dum só dia... Tudo surge, dança e volve e volta, numa fantástica orgia de entusiasmos. Eu tremo. Ambições imorredouras me constringem! São elas que me fazem viver. Sufocam-me os orgulhos? Mas são eles que, enquanto a carne faz o seu ofício e me traz melancolizado e desgostoso, como diria Frei Luís de Souza, me dão esse pincel que agora anda a pintar sorrisos nos meus próprios lábios. Amores dum só dia? Como as rosas. Que trocara os rosais de Paulicéia por flores artificiais? A rosaseca. Outra nasce. "Improbe amor, quid non mortalia pectora cogis!" Os erros morituros me saúdam... A luta principia. Escorre sangue. Rubro agora. Negro adiante. Gritos. Cadáveres, num acervo de redes, poeiras e lágrimas. Morrem os erros. Mas que punição maior para este césar enfastiado! O espetáculo vai recomeçar. Os erros, sei que renascerão! Alimpam-se da lama ensanguentada, curam-se das chagas, apagam o sulco das lágrimas; e novamente belos, aprazíveis, convidativos voltarão! E eu sei que voltarão! Oh!..
Meu Deus! sou a mais discutível das tuas obras-primas!...
Qual! Tudo isso é mentira! fantasia!

Sou cronista e escrevo coisa leves. O leitor risone essas linhas que falam de anhangás impossíveis e de reciários errores. Tudo isso é domínio de lenda. Imaginações! Malazartismo!
Malazartismo? Belazarte me olha e me saúda. Ergue aquele chapeuzinho duro de Carlito, que deu para usar. — Mário, um cigarro. — Perdoa Belazarte, ainda não te vira! Ele acende o cigarro. Atira-o fora, distraído. Queima o dedo e fuma o pau do fósforo. Saúda outra vez. Sacode os ombros. Vai-se embora.
Penso: Belazarte nunca fuma... Por que agora fumou?...

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