10/14/2017

A Sociedade (Conto), de Alcântara Machado




A Sociedade
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Filha minha não casa com filho de carcamano!
A esposa do Conselheiro José Bonifácio de Matos e Arruda disse isso e foi brigar com o italiano das batatas. Teresa Rita misturou lágrimas com gemidos e entrou no seu quarto batendo a porta. O Conselheiro José Bonifácio limpou as unhas com o palito, suspirou e saiu de casa abotoando o fraque.
O esperado grito do cláxon fechou o livro de Henri Ardel e trouxe Teresa Rita do escritório para o terraço.
O Lancia passou como quem não quer. Quase parando. A mão enluvada cumprimentou com o chapéu Borsalino. Uiiiiia — uiiiia! Adriano MeIli calcou o acelerador. Na primeira esquina fez a curva. Veio voltando. Passou de novo. Continuou. Mais duzentos metros. Outra curva. Sempre na mesma rua. Gostava dela. Era a Rua da Liberdade. Pouco antes do número 259-C já sabe: uiiiiia-uiiiiia!
— O que você está fazendo aí no terraço, menina.
— Então nem tomar um pouco de ar eu posso mais?
Lancia Lambda, vermelhinho, resplendente, pompeando na rua. Vestido do Camilo, verde, grudado à pele, serpejando no terraço.
— Entre já para dentro ou eu falo com seu pai quando ele chegar!
— Ah meu Deus, meu Deus, que vida, meu Deus!
Adriano Melli passou outras vezes ainda. Estranhou. Desapontou. Tocou para a Avenida Paulista.
Na orquestra o negro de casaco vermelho afastava o saxofone da beiçorra para gritar:
Dizem que Cristo nasceu em Belém...
Porque os pais não a haviam acompanhado (abençoado furúnculo inflamou o pescoço do Conselheiro José Bonifácio) ela estava achando um suco aquela vesperal do Paulistano. O namorado ainda mais.
Os pares dançarinos maxixavam colados. No meio do salão eram um bolo tremelicante. Dentro do círculo palerma de mamãs, moças feias e moços enjoados. A orquestra preta tonitroava. Alegria de vozes e sons. Palmas contentes prolongaram o maxixe. O banjo é que ritmava os passos.
— Sua mãe me fez ontem uma desfeita na cidade.
— Não!
— Como não? Sim senhora. Virou a cara quando me viu.
...mas a história se enganou!
As meninas de ancas salientes riam porque os rapazes contavam episódios de farra muito engraçados. O professor da Faculdade de Direito citava Rui Barbosa para um sujeitinho de óculos. Sob a vaia do saxofone: turururu-turururum!
— Meu pai quer fazer um negócio com o seu.
— Ah sim?
Cristo nasceu na Bahia, meu bem...
O sujeitinho de óculos começou a recitar Gustave Le Bon mas a destra espalmada do catedrático o engasgou. Alegria de vozes e sons.
... e o baiano criou!
— Olhe aqui, Bonifácio: se esse carcamano vem pedir a mão de Teresa para o filho, você aponte o olho da rua para ele, compreendeu?
— Já sei, mulher, já sei.
Mas era coisa muito diversa.
O Cavaliere ufficciale Salvatore Melli alinhou algarismos torcendo a bigodeira. Falou como homem de negócios que enxerga longe. Demonstrou cabalmente as vantagens econômicas de sua proposta.
— O doutor...
— Eu não sou doutor, Senhor Melli.
— Parlo assim para facilitar. Non é para ofender. Primo o doutor pense bem. E poi me dê a sua resposta. Domani, dopo domani, na outra semana, quando quiser. Io resto à sua disposição. Ma pense bem!
Renovou a proposta e repetiu os argumentos pró. O conselheiro possuía uns terrenos em São Caetano. Coisas de herança. Não lhe davam renda alguma. O Cavaliere ufficciale tinha a sua fábrica ao lado. 1.200 teares. 36.000 fusos. Constituíam uma sociedade. O conselheiro entrava com os terrenos. O Cavaliere ufficciale com o capital. Armavam os trinta alqueires e vendiam logo grande parte para os operários da fábrica. Lucro certo, mais que certo, garantidíssimo.
— É. Eu já pensei nisso. Mas sem capital e senhor compreende é impossível...
— Per Bacco, doutor! Mas io tenho o capital. O capital sono io. O doutor entra com o terreno, mais nada. E o lucro se divide no meio.
O capital acendeu um charuto. O conselheiro coçou os joelhos disfarçando a emoção. A negra de broche serviu o café.
— Dopoo o doutor me dá a resposta. lo só digo isto: pense bem.
O capital levantou-se. Deu dois passos. Parou. Meio embaraçado. Apontou para um quadro.
— Bonita pintura.
Pensou que fosse obra de italiano. Mas era de francês.
— Francese? Não é feio non. Serve.
Embatucou. Tinha qualquer coisa. Tirou o charuto da boca, ficou olhando para a ponta acesa. Deu um balanço no corpo. Decidiu-se.
— Ia dimenticando de dizer. O meu filho fará o gerente da sociedade... Sob a minha direção, si capisce.
— Sei, sei... O seu filho?
— Si. O Adriano. O doutor... mi pare... mi pare que conhece ele?
O silêncio do Conselheiro desviou os olhos do Cavaliere ufficciale na direção da porta.
— Repito un'altra vez: O doutor pense bem.
O Isotta Fraschini esperava-o todo iluminado.
— E então? O que devo responder ao homem?
— Faça como entender, Bonifácio...
— Eu acho que devo aceitar.
— Pois aceite.
E puxou o lençol.
A outra proposta foi feita de fraque e veio seis meses depois.
O conselheiro José Bonifácio
de Matos e Arruda
e senhora
têm a honra de participar a V. Exa. e Exma. família, o contrato de casamento de sua
filha Teresa Rita com o Sr.
Adriano Melli.-
Rua da Liberdade, nº 259-C.
O Cav. Uff  Salvatore Melli
e senhora
têm a honra de participar a V. Exa. e Exma. família o contrato de casamento de seu filho Adriano com a senhorinha Teresa Rita de Matos e Arruda,
Rua Barra Funda nº 427.


São Paulo 19 de fevereiro de 1927.

No chá do noivado o Cav. Uff. Adriano Melli na frente de toda a gente recordou à mãe de sua futura nora os bons tempinhos em que lhe vendia cebolas e batatas, Olio di Lucca e bacalhau português, quase sempre fiado e até sem caderneta.

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