10/26/2017

Capiango (Conto), de Valdomiro Silveira


Capiango

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Nhá Tereza apareceu indignada, com os olhos a afuzilarem vivíssimas cintilas de fúria, em casa de seo Virgínio, delegado de polícia que estava de jurisdução. Foi entrar à porta, e desfiar logo um rosário de queixas, a qual mais entremeada de vocativos injuriosos e praguentos: que de há muito lhe andavam rondando o casinholo, gente que ela não conhecia, nem atinava com quem fosse, tal lhe faziam de pura malvadez, porque ela, a bem dizer, nada tinha que tentasse aos outros – era uma pobre coitada sem eira, nem beira, nem ramo de figueira, como lá diz o outro.

A cada objurgação mais forte, dirigida ao gatuno ou gatunos ignorados, oscilava-lhe maciamente no pescoço, dir-se-ia congestionado de ira, um formidável papo de corda que bojava logo ao de sobre o cabeção da camisa, forcejando por patentear-se à luz meridiana. As mãos, essas já não paravam mais, iam e vinham em paralelas da direita para a esquerda, paralelas que ora minguavam, chegando quase à distância de um gêmeo, ora se faziam largas, tomando a extensão do corpo gordanchudo da oradora.

Seo Virgínio, que, por ser o dia de festa e ele capitão da guarda nacional, vestia o uniforme respectivo, no qual estava, pode-se dizer letralmente sufocado, e não sabia o que fazer do rico boné, seo Virgínio já se via desanimado ao rumor de tamanho falario, chegando a pedir a nhá Tereza dissesse de uma vez ao que vinha, o que lhe haviam furtado, quem fora o autor da tramóia, e tudo o mais que é mister nestes autos. Nhá Tereza engrolou novos xingos, agora mais puxados à sustância, acabando por dizer que lhe haviam passado os quatro soldados e um sargento em meia dúzia de frangos, um patureba, um casal de pombos camboteiros, cinco ovos de perua, de um jacá no meio do galinheiro.

Impava deveras, nhá Tereza, quando concluía a lista, mais de zanga que de cansaço – pois de pequena se afizera a esgoelar por qualquer dá-cá-aquela-palha, e bastas camarinhas de suor lhe escorriam da testa, juntando-se a outros que previamente haviam brotado das faces, as quais, todas reunidas e quiçá refrescadas por uma senhora ventania que passava, fluíam na direitura do queixo, como a buscarem o rumo do papo, que, de certo, iriam refrigerar. E seo Virgínio, que tirara por instantes o boné e o pusera em cima da mesa de perova, depois de o haver passeado de norte a sul, de uma fonte a outra, da coroa da cabeça ao toutiço, olhava para a querelante com uns olhos de todo em todo abertos, ou pela exiguidade do delito, ou do temor que sentia de ouvir em segunda edição, mais incorreta e pavorosamente aumentada, a narrativa do caso, inclusive os doestos e os baldões. Chamou então a ordenança e mandou buscar a força, recomendando a nhá Tereza retirasse para casa, onde não devia bulir em nada, para não estorvar a vistoria da justiça. (Falou assim.)

Nhá Tereza saiu de feito, gungunando ainda no fundo da garganta, como se o silêncio fosse alguma coisa que lhe fizesse espantoso mal: e assim que se achou na cancha e atirou para a cama o xale que a apoquentava, de pesado e quente, abriu-se em frases consoladas diante da filha, a Quiterinha, mostrando-se assaz confiante na boa diligência do seo capitão Virgínio, um homem de ponderação, que sabia receber os precisados de auxílio da autoridade. A Quiterinha escutava-a de olhos baixos: e em verdade se diga que as palavras da mãe lhe entravam por um ouvido e saíam por outro.

Ninguém será capaz de saber porque é que a tal Quiterinha dava tão grande sorte nesta Casa Branca cheia de moças bonitas, quando não era lá essas coisas de formosura e tinha as feições meio caídas para o queixo, sob o qual se viam duas papadas vermelhas de uma gordura entretida a fartas refeições de feijão guando, angu de fubá grosso e carne de vaca mal assada. Ninguém será capaz, a não ser que lhe tenha reparado, em tempo oportuno, em as ancas roliças e bamboleantes e no gracioso andar, que mais as faziam tremer com arte e segurança. Dava sorte, a Quiterinha, cobiçavam-na uns tantos cata-fechos, que gandaiavam dias áfios rebuscando jeito de lhe falarem, mas o que é certo é que ela não deixava de ser bem esperta e continha-os à lonjura, insaciados e sempre desejosos. Destes se diz isto: e outro tanto não se podia dizer do Chico Marceneiro...

Nhá Tereza compôs a casa por dentro, mandou à filha que se aprontasse, não na fossem ver esses homens desarranjada assim, puxou uma mesinha de costura para o meio da varanda, onde pudessem fazer as escritas precisas, e ficou à espera.

Não esperou muito tempo. Daí a nada chegava seo Virgínio, cada vez mais sumido nas suas roupas afogantes, ladeado de um meirinho e seguido de seis praças. Depois de pedida a necessária vênia, com o máximo respeito, dirigiram-se todos ao quintal onde se dera o furto, durante a noite, segundo a exposição da queixosa, que ainda agora se desentranhava no reconto do caso, já outra vez tomada de furor mal contido.

Examinado o quintal, verificou-se que havia passadas recentes, de pés grandes, desde a cerca pauapicada até uns canteiros de grama que morriam debaixo da janela da Quiterinha; naquela direção, realmente, viam-se pegadas humanas, imprimidas no chão, ao que parecia pelo tamanho, por gente macha. No galinheiro, porém, nada se observava extraordinário, fazendo-se exceção de um jacá de galinha botadeira atirado abaixo, naquele flagrante, por um galo brigador que se aterrorizara à chegada do delegado, do meirinho, e dos guardas. Reparava-se, mais, que um cateto manso, que se aquentava ao sol, também não ficou satisfeito com aquela invasão, e foi-se deitar mais longe, rente de umas taiobas, à beira da fonte.

Seo Virgínio, com quanto zelo deve ter uma autoridade, devassou todos os recantos, e nada encontrou anormal, fazendo ver a nhá Tereza que, se não se notassem aqueles sinais de pés até os canteiros de grama, poderia jurar-se que no quintal não entrara ninguém, muito menos no galinheiro. E nhá Tereza tornou-lhe:

— Qual, seo capitão! Isto é capiango que sabe fazer as coisas bem feitas, que conhece muito a minha casa, na certeza.

Como quer, porém, que ela fosse olhar um cesto velho, ao canto do galinheiro, qual não foi o seu espanto ao achar ali os ovos de perua que cuidava terem sido tirados! E por ser justamente à hora do sol ficar mais bravo, a que as criações iam beber, emboladas, à fonte, nhá Tereza descobriu, com alta admiração, a meia dúzia de frangos transviados, e o patureba, e o casal de pombos camboteiros. Pediu desculpas a seo Virgínio, muito avexada, dobrando as pontas do lenço entre as duas mãos convulsas.

Seo Virgínio, entretanto, que atentara na Quiterinha, vira-lhe os olhos afundados nas órbitas, as feições meio pálidas e chupadas de noites mal dormidas, e, principalmente, a turvação dos modos, respondeu a nhá Tereza, saindo, entre risonho e sentencioso:

— Ora, nhá Tereza, afinal o que lhe furtaram, o que lhe poderiam ter furtado, não hai justiça na terra que lhe o possa dar outra vez!

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