10/26/2017

Os guaxes (Conto), de Valdomiro Silveira


Os guaxes

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Naquele tempo o laranjal da Serrinha não estava no ermo, como agora, que não vale uma pitada de rapé: tinha bem boa casa de morada pra uma banda, perto d’água, criação grande, e dali a pedaço, longe umas cem braças da casa, a gente via a roça de cinco alqueires, onde os milhos já embonecravam, prometendo uma colheita e tanto. O ano era de fartura, lá isso era, em todas as coisas, até nos próprios arvoredos do mato.

Foi situante no lugar um tal Chico Marzulão, sojeito estimado e bem visto dos vizinhos, casado c’ûa mulher das melhores deste sertão, não desfazendo nas outras. Mas o merecimento de mais porte que seu Chico tinha, pra dizer uma certeza certa, era ser pai da moça mais chibante que se tem conhecido até hoje por aqui em roda. Nhá Lina se chamava aquele anjo, segundo o esquisito apelido que lhe botou o Reimundo, que lhe queria tanto como a sombra quer ao sol: porque, afinal, onde é que já se viu heresia assim, dar nome de morador de céu pra uma criatura do mundo dos pecadores?

O Reimundo, que sempre foi um ventana pra vida, trabalhador que nem alimal (com perdão da palavra), ficou embeiçado por ela, desde que a viu uma tarde, passando por ali e pedindo por acauso uma xicra de café: ela, nhá Lina, trouxe o café em pessoa, enquanto a mãe o hospedava, proseando co’ele, e o Reimundo sentiu-se logo quente das orelhas, e de olhos turvos como quem firma a vista em qualquer luz muito forte. Ela era destrocida, não se avexava a dois arrancos: veio lá de fora, onde as mulheres são desembaraçadas como quê, e também entrava direito na conversa, até rindo, quando chegava a casião.

Daí por diante, já se sabe, o Reimundo ‘garrou por ela um rabicho em demasiado: ê! rabicho! Cortava na subida e na descida, e dava só aquelas ânsias! Percurou saber quem era a moça, o pai e a mãe da moça: colheu logo que o pai foi sempre dos que não admitem que ninguém lhe pisasse no ponche; e a mãe, de respeito a conta inteira. Morava lá pros fundos da Pedra Branca, e pegou a tecer pela Serrinha, fazendo como quem vinha pra vila, voltando quaji em seguida, feito um andante de costume.

A princípio nhá Lina pouca atenção pôs no rapaz: mourejando todo o santo dia, ela não tinha um pequeno tempo de seu pra bispar as pessoas que mexiam pela estrada; despois, por ele às vezes parar muitas horas nas proximidades da casa, c’uma espingarda troxada a tiracol, observou que tal parada devera de ser coisa: e, reparando que o tal senhor dão era bem parecido, pensou o que pensam as da mesma idade que ela, até agora, e foi ficando triste, como reza a história, até reconhecer consigo mesma que se ia tornando dele de tudo. Sea Maria Rita, ûa mulher de muito tino, que sabe da vida de meio mundo pra esses centros de sítios todos, diz que é mesmo deste feitio que o diabo tenta os outros; ela, que diz, é porque tem expriência, e a expriência é a mestra da vida: remate que põe sempre em suas prosas, e é verdade.

O Reimundo achou lado de visitar a familiage de seu Chico Marzulão, com desculpa de ofrecer ûas marrãs e uns capadetes gordos: chegou à porta, preguntou pelo velho, arengaram muitas horas, pechincharam demais, e por fim tramaram uma berganha, soltando o Reimundo dois capadetes por um poldro castanho redomão, que era uma pintura, de estampa linda, cola e crina compostas, tábua do pescoço e ancas bem feitas, escanelado, ardoroso que nem o demo. No sábado que veio, trouxe os porcos, tomou um café, mais um isto, mais um aquilo, e foi-se embora no romper da lua, levando o cavalo adestro, e sentindo o rumor louco do coração dentro do peito.

Passados meses, negócio vai, negócio vem, deu um vomitório pra mãe da namorada, a fim de ver se saía ou não o casamento: a velha remancheou, gaguejou, fez mesuras, fez rodeios, e ele contemplou-se despachado. Tem daqui, tem dali, achou de talho a nhá Lina, um dia, e falou-lhe de vereda se queria ser a companheira dele: a nhá Lina arrespondeu que sim, que queria, − era só pedir pro pai.

E agora.

Topou no outro dia com o Chico perto do monjolo, trançou as pernas em riba do selim, que a égua sabina em que estava montado era um cachorro, de mansa, e conduziu o intento da conbersação até fazer o pedido. Seu Chico pode-se dizer que enfiou. Não: enfiar, não enfiou, mas embatucou, que é quaji, tanto faz dá na cabeça, como na cabeça dá.

Vira, mexe, vira, mexe, acabou seu Chico por explicar que decerto não cabia a proposta, não havia arrumação, porque a moça era de santo, por uma promessa que ele Marzulão e a dona fizeram, duma intendência que ela, menina ainda, se achou às portas da morte, por via dum sarampo arrenegado.

E quem é de santo, não hai quem não saiba, tem sempre desastre na vida, e morre por desastre.

O Reimundo, nem bem seo Chico lhe deu adeus, chegou os garfos à catirina, e saiu ventando pela estrada a fora, c’uma zunideira nos ouvidos e um peso na cabeça, que até mostravam jeito de doença. Arrebentou na vila, quando menos esperava, navegou que nem um mantecato pelas ruas, sem apear em parte alguma, e fez chão pelo escurecer, aborrido, já sem altura.

Mas daí a uns par de dias, pilhando outra vez a nhá Lina de talho, foi-lhe fazendo suas queixas e exclamações: e a nhá Lina, que pissuía um coração mole e vivia pendurado dos olhos dele, jurou, no fim de contas, que havia de ter toda a firmeza; e pediu-lhe que a esperasse, com firmeza por igual, porque a gente deve de acreditar piamente no ditado: não hai bem que sempre ature, nem mal que nunca se acabe.

Sea Maria Rita não é à toa que dá a entender que os namorados, quando chegam a este ponto, vão descendo, descendo, de tentação em tentação, até ficaram c’um pé na terra e outro no inferno. Mas qual, seo Maria! Inferno é aqui mesmo na terra: pois vassuncê quer maior pena e mais grande sofrimento que estar um pobre coitado c’a boca n’água e morrendo à sede, ver uma canoa?

O partido conservador estava de cima, e o seo Chico Marzulão era um chimango peitudo. Os liberais cá do mato arreceberam cartas lá de baixo contando por notícia que mais mês menos mês, o imperador ia chamá-los pro poder: de maneiras que as eleições desse tempo iam ser brabas.

Assim que elas foram vesprando, o afamado Chico Dia mandou avisar aos daqui que havia de trazer um ajutório que servisse direito; Marzulão, que era colega do Chico Dia, meio irmão de criação dele, até, ficou entusiasmado, que gaguejava e chorava quando vinha de jeito falar-se na subida dos seus. E chegou muitas vezes a bufar, inchando o papo que nem um arurá assanhado.

— Deixe correr o aço, que esses saquaremas hão de ver de que pau é a canoa, quando eu tiver voz ativa e for sobdelegado aqui no distrito! Esses danados cuidam que batuque é reza, imaginam que marimbau é gaita. Eles hão de encontrar forma pro pé!

Veio o falado dia. Regulando seis da manhã, ou pouco mais, a gente do Chico Dia passou pelo alto das três ilhas. Cada qual dos caboclos trazia bandeirinha branca nûa mão e bacamarte na outra, e garrucha dum lado da cintura, e faca do outro lado, − e caminhavam alegres, numa pagodeira. O Chico Dia, amontado num saino de oito pés, ia na frente do povo: e se porventura o saino queria descair na balança, relava-lhe no sofragante as chilenas pras paletas que era um regalo.

Seo Chico Marzulão, já de conchavo antigo, perparara a matula de noite, porque era vindouro na terra e não tinha casa pra assistir no povoado. Ao clarear, arreou seu macho, esperto que era um raio, e foi-se encontrar co’a caboclada do Chico Dia na volta do caminho. No instante em que rompeu juntico deles, como por um milagre, todo o povaréu gritou que parecia uma demência:

— Aí, companheiro sacudido! C’uma parceirada em que tenha muitos desse calibre é que os cascudos verão bóia! Viva o Marzulão! Fogo no Marzulão!

E umas par de garruchas afloresceram de pólvora queimada, arriba das cabeças de todos. Aquilo eram salvas ao seo Chico e aviso à liberalada da vila: ouvidos os tiros, passada a primeira impressão, houve um reboliço pras ruas, que não acabava mais, e só asserenou quando apareceu no alto, pra lá da igreja, aquele mundão de gente.

Êta! Eleições brabas! Até hoje são faladas!

Ora por essa casião as laranjas estavam que era uma calda, muito maduras e muito doces. E no laranjal da Serrinha, pegado c’o quintal de seo Chico Marzulão, juntava uma guaxaria que nem se podia contar. Mal e malzinho que apontava o sol, já se ouviam pela capoeirama a fora os pios chupados e o rumor das asas de semelhantes pass’os. 

O Reimundo, logo que viu seo Chico passar o morro que ia acabar na estrada real, veio devagar, encarapitado em sua sabina, c’o coração bate-que-bate, pedir pra nhá Supriana, mulher do dito cujo, licença pra espichar fogo nos guaxes, que na certeza andavam gordos e magníficos pra um arroz com tranqueira. Nhá Supriana, foi ele pedir, foi dar a licença: e o freguês torou de rumo pro laranjal, que era aí adiante, pra baixo, na virada do morrinho lançante que verte pro córgo.

Daí a pouco os tiros principiaram, um em cima do outro, que não paravam mais: a mó’ que a troxada só descansava enquanto ele puxava os aviamentos da mucuta e enchia os dois canos. Nhá Supriana, ouvindo tamanho barulhão, assustada a mais não poder, poribiu dois crioulinhos, que brincavam no terreiro, de irem pra aquela direção: e encafuou-se no quarto, serzindo ûas meias de algodão, sossegada já, por pensar que nhá Lina andava pra cozinha, lidando co’as panelas, e não corria risco nem um.

Nhá Supriana, em seu trabalho, dava de cantar a vida inteira. Naquele dia como nos outros, enquanto a agulha ia e vinha dum pedaço de algodão pra outro, saíam da boca da dona aquelas modinhas cheias de saudade, aquelas modinhas que aprendeu quando era frangota ainda, cobiçada de um bandão de moços e amante já de seu Chico Marzulão, que ao mesmo tempo gostava dela, que era um desespero. A agulha ia e vinha, o pensamento de nhá Supriana também ia e vinha: às vezes o pensamento andava mais depressa, outras vezes era a agulha, − e a tarde estava caindo, sem barulho, vagarenta. 

Houve uma hora, apesar de tudo, em que nhá Supriana se lembrou do mundo.

Prestou atenção pro rumo da cozinha, não sentiu nhá Lina lidar mais; pegou a escutar na linha do laranjal, não percebeu mais tiro nem um. Levantou-se, chegou à cozinha: nada de nhá Lina; campeou p’r a casa inteira, nada. E ficou de repente tomada dum susto: que estes caçadores, Nossa Senhora da Penha, chegam a pôr chumbo numa caça mesmo em frente dos outros.

Mas assim que apareceu na janela do quintal: que gritou por nhá Lina, que nhá Lina arrespondeu e veio quaji correndo; assim que viu, pra um recanto do rocio, passar o Reimundo meio arcado, com feitio de escondimento, no instantinho em que um coitelo riscava chita c’as asas abertas no meio da varanda: nhá Supriana achou-se mais assustada, à toa, a bem dizer, mas tremendo tal e qual um passarinho meio chamuscado.

Não disse nada pra nhá Lina, entrou pra dentro do quarto, e fez um choro largo e muito delorido, em silêncio, como quem purga pecado. No meio do choro, entretanto, lembrava-se do que fora no tempo de solteira, do juízo que tivera, e o pensamento do passado ia e vinha, como poucas horas antes, que nem a agulha de um pedaço de algodão pro outro pedaço. Chorou, que foi uma loucura: e assim que seo Chico voltou, já sobre a noite, encantado c’as eleições, nhá Supriana lhe falou perto da orelha, c’os beiços frios e os olhos queimando:

— Olhe, seu Chico, o primeiro desastre já foi, agora espere pro outro!

E contou-lhe o que assucedera.

Quem tinha razão era sea Maria Rita: quando os namorados chegaram a certo ponto...

Pois não aconteceu o segundo desastre. Seu padre vigário botou a bênção de casamento nos dois, num dia despois da missa, apesar que moça de santo deve de ser de santo toda a vida. Quando a comitiva dobrou a aguinhadas pedras, já perto da casa, no fundo do laranjal, e um casal de guaxes passou pelo ar, gritando, que não tinha mais jeito, o Reimundo falou pra nhá Lina, em segredo:

— Aquilo é que é pass’o bom, nhá Lina!

Ela ficou sem dizer nada. Ficou, mas em compensação, pôs-se vermelha como um juá manso, na roçada, assim que o guatambu, sem dó, foi descobrir as ervas mais altas e também o descobriu.

Coisas que a gente vê neste guanhã de mundo! 

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