10/26/2017

Rabicho (Conto), de Valdomiro Silveira


Rabicho

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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As guaricangas tremiam, sussurrando soluços, porque um vento bravo passara pelo brejo e tivera o atrevimento de bulir com elas: vendo as palmeirinhas tremer assim e os sacis bater as asas cheias de riscas, fazendo tal e qual como quem está presa de susto ou dor, a gente – se fosse crendeira – diria que a tristeza andava passeando aquela tarde pelo país do rio verdinho.

Na verdade, isso não podia continuar. A madrugada rasgara-se acompanhada de ventania: o sol apareceu, sem que a ventania abrandasse; e agora, com as primeiras fusquinhas do crepúsculo no ocidente, a ventania ainda se tornara mais irada.

Vem a hora de passar o bando dos patos, a hora em que os piris e as taboas palpitam no cimo d’água, saudando-os. A terra inteira pareceu recolher-se para receber no âmago o derradeiro espasmo do sol: assim que ele imergiu no fundo das montanhas, ela agitou-se por instantes numa convulsão demorada, e cobriram-se de vivo sangue as copas dos angicos, até aí virginalmente brancas.

Mais tempo, menos tempo, saía de um rancho sufocado entre dois montes, a um lado do rio verdinho, o Renato da Mantiqueira, montado num cavalo mouro. Arranjara o animal a capricho, levando-o primeiro, raspando-lhe o pelo depois; selara-o com um socado de sorocaba, dos bons, adicionando-lhe peitoral e caçambas de prata que tiniam. Teso e cheio de não-me-toques, ganhou a estrada que dizia para a grama; assobiou a música da araúna, ergueu ao ar o chicote de bonito lavor, desceu-o às ancas do mouro, e seguiu com vontade.

Seu coração batia forte, acompanhando quase o viajeiro da cavalgadura: chegou a pensar umas coisas esquisitas, que eram comparações dos estrupidos das patas com o barulho do coração, perguntando a si mesmo o que seria que andava mais ligeiro – o coração ou cavalo?

Encontrou gente como formiga. Aborreceu-se um nada. Queria-se não visto e só, abrindo e fechando porteiras, namorando a estrela do pastor que não tardaria a entrar no circo imenso do firmamento; queria-se invisível entre os andaaçus marginais da estrada real: amaldiçoou, no íntimo, aquelas pessoas que o observavam com tal insistência, que se diria estarem resolvendo interrogá-lo a cada sombra mais densa de gurrupiazeiro, onde luzia em triunfo a prataria dos bocais do mouro.

Deu-lhe na gana gritar que ia ver a Anica, a dona dos olhos mais perigosos de toda a redondeza, a rapariga que ao andar tanto e tão bem rebolava o corpo, que o corpo dela fazia pensar-se numa colina de geléia deliciosíssima. Ia, pois vê-la: que importava isso aos bocós, agora? Teve desejos de livrar o peito da jeriza que o oprimia. Quis mandar os importunos cavaleiros e viandantes aos quintos dos infernos. Quis dizer muito; mas continuou sem dizer nada, mas continuou a assobiar a música da araúna.

O engraçado foi que no alto de um morrinho, por sinal que um morrinho todo florescido de maravilhas, um nambu mineiro estava piando com delícias. Havia já pedaço, principiara uma série de pios, e não conseguira chegar ao fim, pois um outro lhe volvera pronta resposta, escondido numa touceira de maçambará. O Renato passou e, como recomeçasse a predileta canção, o sonso do nambu tomou voo contra ele, cuidando-o por certo algum rival que requestava a mais que desejada nambu.

O Renato levantou o chicote, varejou-o, empuxando-o contra o chão. E reparando nele, que se estorcia nas vascas da morte, murmurou:

— Se até os passarinhos já têm ciúmes de mim, que dirá certa gente que se morre de amores pela Anica!

Aquela ideia atravessou-lhe o espírito, como um morcego o silêncio de uma igreja. Sobre ela acumularam-se outras, não menos ruins. Sobre estas, outras piores. De modo que o rapaz, de alegre que estava, se pôs a banzar. Lembrou-lhe um fato, o de lhe haverem contado que o pai da moça jurara matá-lo, se o soubesse rondando junto às janelas do terreiro.

Isso já era demais. Virava de zanga em ameaço. Enfurecesse-se o velho, tinha lá suas razões. Mas ameaços, não os fizesse, que um peitudo da Mantiqueira não conta com desgraça de jeito nenhum!

Quem pagou tudo, foi o mouro. Vergastadas intercadentes lambiam-lhe com raiva as paletas. Murros – até murros! – adormeceram-lhe as fibras de sob as crinas. Pés nervosos, descalços, correram-lhe as virilhas, por feição que o deixaram mais do que triste. Um animal de estimação, como ele, apanhado à semelhança de burro chucro, já se viu só?

A noite, que era de lua, veio com todo o vagar. Suindaras gemiam perdidas numa lonjura incalculável e um beija-flor sem juízo trinava, apesar de vinda a noite, no ramo cimeiro de uma arvoreta. O Renato sentiu-se tomado de súbita melancolia; puxou as rédeas, parou, dirigiu ao pássaro a mágoa de que percebia inundados os próprios olhos, e ouviu-o cantar. A estrela do pastor já fulgia no céu e ele pensou entre si:

— Pode que o louquinho do beija-flor se esteja finando de paixão pela estrela!

E depois acrescentou: 

— Mas é mesmo um louquinho o tal, que não pode ter certeza de ser correspondido. Eu, que gosto da Anica, sei pelo menos que ela gosta de mim. Gosta muito, mas mesmo muito!

Em seguida, abstraiu-se, com uma penetração estranha de vista para o mistério claro do luar, e murmurou:

— Homem, quem sabe?

Estalaram chicotadas. O mouro disparou num galopão. Por quê? Porque o Renato precisava conhecer o amor que a Anica possuía no coração de moça nova. Apresentara-se uma dúvida: pressa se dava ele em desvendá-la.

Para logo romperam do lago de luar que transbordava pela estrada, ramalhetes de vegetação densa e altaneira. Eram três jatobás que assombreavam a casa da linda Anica, e, achando-se perto deles, o rapaz achou-se perto do peito dela...

Ai! Que julgava já vê-la, num vulto visto à porta da casa! Mas não, não era! Talvez alguma pomba esquecida do ninho, enrufando as penas, pousou ali e contemplava a serenidade do espaço: quem sabe se uma travessa marrequinha, das alvas, estava perlongando aquelas regiões, antes de tornar à quentura do ninho? Não, não era a moça!

Não era, mas então o que seria?

Foi-se aproximando. O vulto deu de crescer, de crescer. Cresceu de tal modo, que, afinal, o Renato reconheceu nele a Anica.

As madressilvas de uma cerca próxima rescendiam; as laranjeiras vestiam-se de noivas e, noivas perfumosas, enchiam o ar de piras emanações: de vez em vez uma viração mais apressada mergulhava nas ramarias, e formava-se-lhes em torno uma atmosfera de inocência e de sonho.

O Renato achou-se envolvido na pureza dessa atmosfera e acreditou-se levado aos sete céus da felicidade.

A prova é que falou, numa voz que se diria de êxtase:

— Anica, está deveras distraída!

Ela respondeu numa voz que era mais branda que um arrulho:

— Tenho motivos para distração.

— Para alegria?

— Antes fosse. Para distração que termina em sofrimento.

— Pois, Anica, uma coisa lhe juro: você empregava com acerto os seus pensamentos, se eles ficassem presos numa ideia.

— Qual ideia, Renato?

— A da nossa dita.

— Aí está um impossível!

— Impossível, se você quer que seja impossível.

— Não, eu não quero.

— Então, você tem estima por mim?

— Não sei.

Às vezes o não sei é dito de tal forma que já é uma afirmativa. O Renato alegrou-se, e teve os olhos úmidos de satisfação. E daí sua voz banhou-se de satisfação também, como os olhos, saindo-lhe trêmula:

— Já vê que nós havemos de ser ditosos.

— Não, atalhou Anica: não, porque papai não admite nem que se toque nesse assunto.

— Que me importa?

— Mas você bem sabe que eu sou de menor idade.

Nesse momento, reboou na calma da noite uma apóstrofe terrível:

— Desgraçado! Saia de lá que, senão, corre perigo!

— É a voz de papai, aventurou Anica: fuja! Fuja!

O Renato, porém, quedou-se-lhe à beira. Tomou-lhe uma das mãos, e bradou com toda a energia:

— Quero muito bem a ela. Ela me quer muito bem. Deixe que nós casemos, é o que lhe pedimos.

— Maldito! – a voz continuou: nunca eu lhe entregaria minha filha!

— Nunca?

— Nunca.

O Renato perguntou à Anica:

— O seu amor é grande?

— É.

— Você faz loucuras que eu fizer?

— Faço.

— Suba à garupa do mouro.

Ela montou. Cingiu-lhe o corpo com os seus braços cor de leite, notou que ele os premia com afeição e creu-se venturosa.

O cavalo partiu num galopão desfeito. Viu-se uma fímbria de nuvem ondulando-lhe sobre a cauda, uma nuvem de cassa ou de cambraia, e um longo chapéu de feltro, de abas largas, a sumir na indecisão do luar. Depois, nada mais do que... Poeira, poeira e mais poeira. 

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