10/26/2017

Jurando falso (Conto), de Valdomiro Silveira


Jurando falso

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Dizer o que era a Nanica, nos tempos em que o José das Perovas pegou de amores com ela, é coisa quase impossível: só mesmo se se lhe visse o retrato é que se convenceria a gente da formosura perigosa que a diaba tinha. Chamavam-lhe Nanica, por ser mesmo garnizé: mas apesar de retaca – isto agora é que é verdade! – qualquer moçona das mais sacudidas não lhe causaria inveja de qualidade alguma.

Pois o José das Perovas apaixonou-se perdidamente pela tal: não havia no quarteirão alma cristã que não soubesse do caso; por sinal que uma nhá Tuda, linguinha levada dos dianhos, contara em segredo a muitas pessoas que o vira pinchar flores de baixo da janela pra riba, na casa em que a dita morava, com o pai quase imbecil por amor dos pifões.

O boato avolumou-se, daí a pouco. Raparigas houve que chegaram a perguntar à Nanica:

— Dizem por aí que você está dando corda ao filho do Manecão: é verdade? É verdade?

— Ora! O que têm vocês com isso? – tornava ela: tratem de sua vida e não se importem com a alheia, é o melhor! Eu nunca lhes perguntei por semelhantes coisas; façam o mesmo: não se intrometam em meus negócios.

Aquelas, contendo a raiva que lhes gritava no peito, nada mais lhe diziam na presença. Mas depois – virgem nossa senhora! – lá iam todos os qualificativos, em procissão, acompanhando o nome da outra: fogueta, namoradeira, sem modos, busca-pé, regateira, xingos deste porte, e de maior, alteavam-se aos ares, perseguindo-lho, quando acertavam de falar a respeito dela. A onda cresceu de modo que um dia a Nanica foi sabedora do que à sua conta rosnavam: olhou em redor de si, viu-se meio abandonada da sorte, aceitou de uma vez as galanterias do que havia tanto tempo a requestava – e um belo dia agarrou mundo.

A barulheira que correu no quarteirão, logo depois, nem se pode contar: parecia querer subir direitinho ao céu, de tão irada que vinha! Se não subiu é porque a voz do povo, em vez de ser de Deus, como alguns falam, é voz do diabo: e a voz do diabo não deve de passar deste inferno, que é a terra. Volvidos dias, porém, quietou o rumor; só o que se ouvia ainda eram conceitos como este:

— Aquilo é sina, coitada!

E por estarem convencidos de que era sina, deveras, aquilo, ninguém mais mordeu em o nome da pobre: no que andaram muito bem, porque afinal de contas águas passadas não fazem rodar moinho.

Um mortal não precisa de viajar grande coisa para achar a felicidade: às vezes (segundo afirma um entendido!), esta sujeita não está mais longe do que a dois passos da gente, e a gente vai procurá-la onde menos a pode encontrar! O José das Perovas não se afastou muito: arranjou seu rancho à beira do turvinho, aí pros lados do espírito santo, e dedicou-se à Nanica. E a Nanica dedicou-se-lhe que dava gosto vê-los.

De madrugada, ia ele ao trabalho, depois de dizer à companheira frases bonitas e maviosas como as do Armando Erse: ela escutava-o com semblante florido de regozijo, e retribuía-lhe os abraços. Entretanto, quando o vulto do José se sumia entre as duas guarucaias que se elevavam à margem da estrada, na garganta da mata, a moça principiava a suspirar, já de saudades. De tarde, ficava a esperá-lo à porta do rancho: e quando ele surgia, então ela dava de correr-lhe ao encontro, alegre que nem uma aleluia. Está-se vendo que vida melhor só no paraíso!

Mas o tempo dos frios chegou, anunciado desde o começo por umas ventanias bravas que acurvavam o lindo arvoredo dos arredores. Morreram as rosas do jardim do rancho. Os céus vestiram-se de cambraia, e a mata de luto. Daí por diante, dia a dia, caiu geada que foi um despotismo, consoante o falar dos caipiras vizinhos. A Nanica sentia-se intanguida: o próprio fogo das fogueiras como que já não esquentava. E como a pousada se erguia à boca de um vale, entre duas montanhas que pouco distavam uma na outra, o rugir do vento afunilado no vale era mais do que triste, doloroso. Ao aparecer o sol (que no dizer daqueles caipiras é o capote dos pobres), os dois amantes saíam a aquecer-se aos raios dele: no terreiro, ficavam separados, como se entre ambos se entendesse um lençol de água gelada. E as horas sucediam-se monótonas.

Uma vez, meado o dia, e na ausência do José, acercou-se do rancho um guapo moço, que teve para com a Nanica a mais requintada cortesia que se pode imaginar. Começou fazendo-lhe um cumprimento rasgado, ao estacar o cavalo pampa; achou-a depois, cativante; perguntou-lhe, depois, se aceitava umas violetas vivas, com o que ela muito se admirou, chegando a inquiri-lo: 

— Adonde o senhor mora ainda há flores que não murcharam?

— Há, respondeu-lhe o guapo moço: não são tão bonitas como a senhora, mas enfim não têm nada murcho.

— E adonde é que o senhor mora, ainda que mal lhe pergunte?

— Pergunta bem. Não é longe, mas também não é perto demais.

A Nanica olhava-o meio de relance; percebeu que ele era um rico rapaz, porque num animal que encapotava a todo instante e, sobre encapotar, marchava com a cara virada de uma banda: os seus arreios luziam; suas caçambas eram de prata; seu bucal, outro tanto; o relho, a mesma coisa! Na garupa do pampa morria derradeira dobra de uma capa de veludo.

Com pouco apareceu o pajem, numa esperta mula ferreira, e o patrão meneou a rédea, para se ir ao caminho. Antes, porém, de o fazer, indagou:

— Se não fosse afoiteza minha, eu desejaria saber o seu nome.

Ao que ela respondeu:

— Nenhuma. Sou Mariana, sua criada, por apelido Nanica.

— Criada de Deus, que lhe dará bom pago.

Despediram-se: e foi só o que conversaram, naquela ocasião.

Não tardou, entretanto, que o guapo moço voltasse ao dito rancho, e à mesma hora. E como a nortada gemia de contínuo ao longo do vale, enregelando-o, a Nanica ansiou a deliciosa quentura de uma boa casa em povoada, e que lhe fora oferecida com alta gentileza: um dia, pois, abriu-se. 

O José das Perovas por um bocadinho não enlouquece. Doeu-lhe aquilo tal e qual um golpe dos mais doídos. O amor que tinha era tão de raiz, que ali se deixou ficar uma temporada, no mesmo ninho, calculando que a Nanica talvez voltasse ainda. Ela, porém, não voltou nunca mais; o José fez-se ao largo afinal: e ao sair daquele retiro, onde os ventos, esbarrando uns nos outros, zuniam lamentosamente, uma porção de lágrimas se lhe foi derivando pelo rosto a fora.

Mas não há quem não saiba que tudo passa na terra. A sua dor, de funda que era, atenuou-se numa como surdina de saudades.

Voltou ao pândego viver de São Domingos. E nos cateretês, de novo, não havia quem pudesse gabar-se de levar as lampas ao José: para sapatear com graça, ele estava apartado; para rasgar o pinho, como ele ninguém.

Quando, contudo, o bulício diminuía nas varandas das festas, quando os parceiros descansavam, o José das Perovas, a um canto qualquer, encolhia-se que nem um bico-de-latão ao cerrar da noite.

Seguido, acontecia que um dos folgazões o interpelava:

— Que diacho é lá isso, José? Você está a modos de jururu.

— Qual nada! Volvia ele ao outro: estou cansado, isso sim.

— Não está, não é: você o que tem é cócegas no coranchim por amor da Nanica.

— Juro que não é! Juro! Juro!

Assim lhe corria a vida, até o momento de se encostar aos travesseiros. Nesse momento, ao rezar, ele pedia a Deus perdão de haver jurado falso, e rogava-lhe: 

— Senhor Deus de misericórdia! Já que esta paixa não me sai de dentro, ao menos fazei que a Nanica volte! Eu já não posso mais comigo, Senhor Deus de misericórdia!

Fosse pelo que fosse, um dia ela voltou!

O José das Perovas por um bocadinho não enlouquece. Arrodeava a ingrata arrependida, meigo nas mãos, na voz e nos olhos. E como a Nanica desse de chorar, de pura comoção, ele enxugava-lhe as lágrimas, carinhosíssimamente. Ficou tão possuído de alegria que chegou a resolver:

— Hoje havemos de dançar um baile às direitas, pois não havemos, meu amor?

— Seja tudo como você quiser – gorgeou ela.

Mandou-se chamar o Romão, sanfoneiro endemoninhado que assistia pertinho, combinou-se tudo, e o baile principiou quando a noite principiou.

Lá pelas tantas horas, ouviu-se um tropel de cavalos na rua, que veio morrer mesmo à porta do pagode. O José das Perovas apareceu a receber quem quer que era, ao que lhe perguntaram do lado de fora:

— Não está aqui uma moça conhecida por Nanica?

— Está. Para quê? – interrogou o José.

— Porque eu e mais o camarada viemos buscá-la.

— Então entrem, entrem.

Logo que eles entraram, o José das Perovas tomou dum refle que tinha, em cujo manejo era mestre, e ordenou:

— Agora vosmecês hão de mas é dançar conosco.

E não houve outro jeito. O guapo moço, xavi que nem um gambá torrado, teve que fazer pé de alferes a noite inteira, e seu pajem também.

Assim que arraiou o dia, o José das Perovas falou-lhes:

— Podem-se ir agora, vão-se e não se lembrem mais de aprontar outra!

Eles não se lembraram até hoje: e o José e a Nanica vivem felizes e juntinhos, tal e qual um par de vevuías.

Se no meio de uma prosa alguém acerta de recordar o nome deles, há uma pessoa que se não esquece de dizer:

— Vejam só que força não tem o primeiro rabicho!

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