O paradoxo contemporâneo
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Sobre a nudez forte da Verdade
o manto diáfano da Fantasia.
EÇA DE QUEIROZ
Não há esperança — tudo é
verdura. Nunca a terra se mostrou assim prospera: não há memória de outra tão
inclemente fecundidade. Dir-se-á que um Deus andou semeando e abençoando a
sementeira, porque não há sol que a esturrique, não há geada que a creste, não
há lagartas que a destruam. As próprias formigas mal aparecem nos trilhos e,
por preguiça ou porque as contenha o mesmo Deus propício, satisfazem-se com as
folhas secas que o vento espalha ou com as varreduras dos paióis.
O que era vageiro pedrento e maldito
onde estalavam, fendidas, as relhas dos arados e os bois robustos arriavam
arquejantes deixando na terra seca, estampada em suor, as marcas dos seus corpos,
é hoje campo de fertilidade. Várzeas estéreis, onde apenas lograva viver o sapo
da miséria, ostentam-se vicejantes, cobertas de verde e alta alcatifa que é o
arrozal que aponta. As mesmas rochas safaras geram prodigiosamente — a crosta
que as forra vale por um alfobre. Vêm-se penhascos floridos e, nos sulcos dos
carros que, meses atrás, passaram lentos, rinchando, recolhendo a colheita, os
grãos perdidos proliferam: há milhos crescendo nos caminhos, empenachando-se
nos andurriais ou, flexíveis, dobrando-se graciosamente no fundo das grotas,
entre os inhames, onde a água brilha e canta.
Em todo o torrão há uma roça,
em todo o canto viceja uma horta. O colono tem necessidade de arrancar os legumes
que ameaçam invadir a casa; vergam as latadas, pelas cercas de espinheiros em
flor trepam as ramas do feijoal, os repolhos gordos afundam na terra, a couve
flor desabrocha corno um polipeiro imenso e lá vão braçadas de folhas tenras
para os estábulos, para a pocilga, para o aprisco, para o corveiro e ainda
sobram aterradoramente.
As canas empinam-se e
curvam-se em arco, estirando-se na terra para, adiante, levantarem-no de novo;
o milharal farfalha ao vento como a chamar os colhedores, as vagens secas
cascavelam, abóboras abandonadas desenvolvem-se monstruosamente sob as frescas
folhagens protetoras e, quem olha os pomares, hesita entre as duas cores que se
casam — a verde das folhas e a amarela dos pomos.
Os galhos vergam e, como não
há mãos que bastem à colheita, sob as árvores acenosas os frutos que apodrecem vão
formando um nateiro fecundante.
Não há esperança! O cafezal
parece adornado de coral — os frutos em cereja encarreiram-se, acumulam-se nos
ramos pendentes e os rios aí vão regando, o sol reluz e cria, o vento leve
encarrega-se de limpar os galhos, levando-lhes as folhas secas, e borboletas,
besouros, libélulas e abelhas, que pousam de flor em flor, conduzem o gérmen da
fecundação, vão multiplicando a abundância, fazem uma semeadura aérea ou
melhor: realizam as núpcias florais como sacerdotes alados que visitam os lares
verdes e juntam os casais aromalíssimos, conduzindo a alma amorosa de um a outro,
em beijos. Não há memória de tão inclemente fertilidade.
Com o frio a esperança do
lavrador é a geada. Ao crepúsculo, quando as névoas se vão adensando, ei-los todos
de olhos alongados: Virá a geada? Com a noite taciturna, estrela-se o céu onde
não paira uma nuvem; o frio aumenta. Noite fria e límpida é anunciadora de geada.
As crianças tiritam, os velhos abeiram-se do fogo estendendo tremulamente às chamas
as mãos engelhadinhas e o vento sopra ríspido.
Oh! como ó alegre a voz do
vento! Corta, vento de inverno! Corta, ceifador noturno, corta! E o homem bendiz
o vento que zune. Bem haja o bom vento! Bem haja o bom vento!
Curioso lá vai o lavrador à janela,
entreabre-a, espia e tirita: noite estrelada e gelada. Ainda bem! Ainda bem! exclama
esfregando as mãos. Temos geada! Temos geada! anuncia contente e todos sorriem
à ideia de uma devastação. Deitado, ouvindo as gambás que vão e vem pelas
telhas, ei-lo a sorrir, pensando: É a geada bendita que está caindo. Amanhã os
campos serão outros. Eu ficarei reduzido a um terço, outros perderão mais e a safra
de todo o Estado, com o benefício desta noite, ficará em menos da metade do que
se espera e ainda será muito. Felizmente o inverno aí está e há um Deus no céu.
Mais um ano de fartura como este e seria um dia a lavoura do Brasil.
Não há quem resista.
Antigamente, com o que dava um alqueire de terra, uma família vivia fartamente;
hoje, com a abundância, o fazendeiro pena em miséria. O que o compromete ó o
excesso: todos plantam, todos colhem: não há compradores.
Anuncia-se uma feira, açode
gente de toda a parte a disputar as barracas ou com as lonas e os esteios para
armar a sua tenda. Levanta-se tão densa poeira nas estradas com a chegada dos
carros, das tropas, das recuas, das manadas, dos rebanhos e ainda da gente que
as mesmas torres das igrejas desaparecem abrumadas.
No campo da feira amontoam-se
os serões e as cangalhas, empilham-se os jacás e os coxos, enfileiram-se as
capoeiras, atravancam-se os largos cestos. O cercado de animais referve e, como
não há divisões, saltam os potros, os burros escoucinham, marram os touros, cuincham
os bacorinhos, grunhem os grandes cevados acaçapados, fossando a lama,
cacarejam as galinhas, grasnam os patos, arruínam os pombos e todas essas vozes
não chegam a abafar as dos homens, das mulheres e das crianças que apregoam esgueladamente
o que trazem das suas roças.
Quem entra numa feira, vendo a
multidão que vai e vem, imagina que o comércio corre animado, engano — só lia
ali vendedores, de sorte que o sertanejo, que deixou o seu sítio longínquo, à beira
da serra, para oferecer na feira os frutos do seu pomar e o gado novo da sua
caiçara para, com o produto, comprar novos ferros e chita e madapolão para os
seus, ali está de cócoras, macambúzio, o cachimbo nos beiços, os olhos perdidos
longe, no céu da sua banda, lá para os lados da serra onde a sua gente, pobre
gente! o espera com as compras tão necessárias... até um remédio lhe pediram e
o mísero nem para o remédio faz.
E dissolve-se a feira: lá
tornam todos com os frutos murchos, com os animais cansados, maldizendo a abundância
porque todos têm e não compram.
Isto acontece ao pequeno
lavrador que ara, semeia, aduba e colhe, que tosa a ovelha, que munge a vaca,
que informa o queijo e bate a manteiga auxiliado pela família. Imaginai o
desespero do grande plantador que vê, em volta da casa, formigar uma nova vila
de colonos. É a exuberância que o desgraça, é a fartura que lhe traz a miséria.
Lá vai vagarosamente,
aparecendo, desaparecendo por entre uns outeirinhos aveludados, um comprido e
pesado trem de carga — café. Dos sertões feracíssimos descem diariamente tropas
numerosas; são campainhas tinindo desde a madrugada até a noite, às vezes pela
noite adiante e tropeiros bradando — café. Pelos rios, em balsas, descem
milhares de arrobas que vão ter às pequeninas estações onde embarcam para o
porto. Os horizontes são verdes — onde acaba o cafezal começa o céu, e as árvores,
sobrepujadas pelos frutos, achaparam-se: é a maravilha da fertilidade, a praga arruinadora
do excesso.
No porto, à medida que vão
chegando os vagões entulhando os armazéns, vai o preço descendo e, como entram
sempre novos trens carregados, mais baixa o valor da mercadoria; é quase uma
miséria o que oferecem, não vale a pena vender; o melhor é conservar o café em
casa, mas como? onde? se não há tulhas e se o fazendeiro tem a colônia a
murmurar reclamando a paga! Que vá o café, que vá! e os campos cada vez mais
verdes. Oh! a inclemência do verde!
Como se vivia bem no tempo
passado! O pouco que a terra dava era vendido a peso de ouro e o fazendeiro que
colhesse o que hoje colhe um sitiante poderia viver regaladamente como um rajá:
o fruto tinha valor real, as tulhas eram tesouros, os engenhos eram verdadeiras
casas de moeda. Agora as máquinas poderosas não preparam em seis meses,
trabalhando dia e noite, todo o café da colheita, as moendas, jorrando rios
doces, não espremem toda a cana, parte perde-se nos carros ou amontoada nas
eiras, e, se a deixam na terra, apendoa; o leite apodrece nas queijarias, a
fruta encarquilha-se ou transforma-se em lama nos pomares. É demais! Corta, vento
de inverno! Corta, ceifador noturno!
Criar! E vale a pena criar?
Com a abundância o gado anda farto e luzidio: no chiqueiro do pobre cevam-se
varas de porcos, as vacas mal podem caminhar embaraçadas pelos ubres apojados,
e assim as cabras, as ovelhas igualmente. Por muito haver pouco vale e, como o
preço oferecido não compensa, os homens resolvem deixar os animais no campo
esperando confiadamente o tempo da miséria, que há de vir, Deus é grande!
Levanta-se o lavrador, sai pé
ante pé guiado pela claridade tênue da lamparina do oratório, acesa diante das
imagens como a lembrar-lhes o pedido feito, com fervor, por todos; lá vai.
Chega à janela, corre o ferrolho. Que frio! sorri contente, tintando e espia — noite
serena, céu estrelado e a geada!
É cedo, talvez; nem bruma — o
luar galvaniza as frondes tornando-as de prata e as vozes da natureza cantam,
sussurram dentro da noite; o aroma das flores passa nas auras, a água rola no
moinho. O lavrador ali fica a olhar, sem sentir o frio que corta como à espera
da geada que não vem, a ouvir, sem compreender, o que lá fora dizem as árvores
alegres. Torna ao leito desanimado. A esposa, que o viu sair, espera-o sentada,
com o rosário entre as mãos enclavinhadas:
— Gia?
— Ainda não.
— Pode ser que pela
madrugada...
— Não creio. É Deus que nos
abandona. Enfim, seja feita a sua vontade. Deita-se. Queria que sentisses o cheiro
das flores.
— Que flores?
— Não sei, mas é um aroma que
entontece. Essas malditas flores estão anunciando outras cargas. Aqui só o
fogo.
Cala-se e, de olhos abertos,
fica a penar na monstruosa queimada salvadora: uma chama viva que crescesse com
o vento e que fosse arrasando os campos de milho e cana e o cafezal e subisse à
mata e secasse as fontes deixando a terra vazia e estéril, coberta de cinzas,
durante anos. Só isso.
Faria um aceiro protegendo
apenas o cafezal novo, o mais que fosse, que o incêndio levasse e o pouco dos
anos vindouros salvaria o prejuízo dos tempos copiosos. Só o fogo!
Mas para isso seria necessário
que todos os fazendeiros entrassem no acordo sinistro tomando, cada qual, um
archote e ateando o incêndio que, vindo de pontos diversos, às lufadas
vermelhas, deixasse apenas, em cada fazenda, como pequenas ilhas, dois ou três
alqueires de culturas verdes. Escassearia o produto e cresceria o preço.
Mas o fogo estimula, o fogo
arde e fecunda como o beijo. Haveria, no primeiro tempo, um espasmo letárgico
da terra, mas, com a primeira chuva, todas as sementeiras repontariam viçosas,
com ânsia maior de vida e a produção seria mais acabrunhadora.
Que fazer?
Um silvo atravessa o silêncio.
São os comboios. Lá vão eles, caminho do porto, lá vão! É madrugada. O gado
muge, balem as ovelhas. Atroadorarmente começam a trabalhar as máquinas beneficiadoras
e o fazendeiro, fatigado da vigília, salta da cama, abre largamente a janela.
Uma poeira empana os ares: é a palha do café que voa e que lá vai estrumar o
alqueive e, purpúreo, imenso, implacável, sobe no céu, vitoriosamente, o sol.
Douram-se os montes, douram-se
os campos, o orvalho rebrilha nas folhas — tudo reverdeceu com a noite e o
fazendeiro, taciturno, pensa na miséria quando o administrador, descendo a
galope do lado do engenho, estaca a bestinha diante da varanda e diz:
— Patrão, vou mandar colher
aquele resto de café do pedregal, porque as flores já estão vindo aos galhos.
Ele estremece, fita o
empregado e, sem compreender bem as palavras que ouve, encolhe os ombros
indiferente. Fruto e flor... Mas é a perdição, Deus do céu! É a perdição! Fruto
e flor... Terra maldita!
E o sol vai subindo no céu e
abelhas zumbem visitando as flores novas anunciadoras da abundância futura que
será a falência, a definitiva desgraça. Ainda frutos e já flores.
E há ainda quem gabe a terra
cafeeira, a terra roxa da cor da agonia.
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