12/08/2017

O paradoxo contemporâneo (Conto), de Coelho Neto




O paradoxo contemporâneo

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Sobre a nudez forte da Verdade
o manto diáfano da Fantasia.
EÇA DE QUEIROZ

Não há esperança — tudo é verdura. Nunca a terra se mostrou assim prospera: não há memória de outra tão inclemente fecundidade. Dir-se-á que um Deus andou semeando e abençoando a sementeira, porque não há sol que a esturrique, não há geada que a creste, não há lagartas que a destruam. As próprias formigas mal aparecem nos trilhos e, por preguiça ou porque as contenha o mesmo Deus propício, satisfazem-se com as folhas secas que o vento espalha ou com as varreduras dos paióis.

O que era vageiro pedrento e maldito onde estalavam, fendidas, as relhas dos arados e os bois robustos arriavam arquejantes deixando na terra seca, estampada em suor, as marcas dos seus corpos, é hoje campo de fertilidade. Várzeas estéreis, onde apenas lograva viver o sapo da miséria, ostentam-se vicejantes, cobertas de verde e alta alcatifa que é o arrozal que aponta. As mesmas rochas safaras geram prodigiosamente — a crosta que as forra vale por um alfobre. Vêm-se penhascos floridos e, nos sulcos dos carros que, meses atrás, passaram lentos, rinchando, recolhendo a colheita, os grãos perdidos proliferam: há milhos crescendo nos caminhos, empenachando-se nos andurriais ou, flexíveis, dobrando-se graciosamente no fundo das grotas, entre os inhames, onde a água brilha e canta.

Em todo o torrão há uma roça, em todo o canto viceja uma horta. O colono tem necessidade de arrancar os legumes que ameaçam invadir a casa; vergam as latadas, pelas cercas de espinheiros em flor trepam as ramas do feijoal, os repolhos gordos afundam na terra, a couve flor desabrocha corno um polipeiro imenso e lá vão braçadas de folhas tenras para os estábulos, para a pocilga, para o aprisco, para o corveiro e ainda sobram aterradoramente.

As canas empinam-se e curvam-se em arco, estirando-se na terra para, adiante, levantarem-no de novo; o milharal farfalha ao vento como a chamar os colhedores, as vagens secas cascavelam, abóboras abandonadas desenvolvem-se monstruosamente sob as frescas folhagens protetoras e, quem olha os pomares, hesita entre as duas cores que se casam — a verde das folhas e a amarela dos pomos.

Os galhos vergam e, como não há mãos que bastem à colheita, sob as árvores acenosas os frutos que apodrecem vão formando um nateiro fecundante.

Não há esperança! O cafezal parece adornado de coral — os frutos em cereja encarreiram-se, acumulam-se nos ramos pendentes e os rios aí vão regando, o sol reluz e cria, o vento leve encarrega-se de limpar os galhos, levando-lhes as folhas secas, e borboletas, besouros, libélulas e abelhas, que pousam de flor em flor, conduzem o gérmen da fecundação, vão multiplicando a abundância, fazem uma semeadura aérea ou melhor: realizam as núpcias florais como sacerdotes alados que visitam os lares verdes e juntam os casais aromalíssimos, conduzindo a alma amorosa de um a outro, em beijos. Não há memória de tão inclemente fertilidade.

Com o frio a esperança do lavrador é a geada. Ao crepúsculo, quando as névoas se vão adensando, ei-los todos de olhos alongados: Virá a geada? Com a noite taciturna, estrela-se o céu onde não paira uma nuvem; o frio aumenta. Noite fria e límpida é anunciadora de geada. As crianças tiritam, os velhos abeiram-se do fogo estendendo tremulamente às chamas as mãos engelhadinhas e o vento sopra ríspido.

Oh! como ó alegre a voz do vento! Corta, vento de inverno! Corta, ceifador noturno, corta! E o homem bendiz o vento que zune. Bem haja o bom vento! Bem haja o bom vento!

Curioso lá vai o lavrador à janela, entreabre-a, espia e tirita: noite estrelada e gelada. Ainda bem! Ainda bem! exclama esfregando as mãos. Temos geada! Temos geada! anuncia contente e todos sorriem à ideia de uma devastação. Deitado, ouvindo as gambás que vão e vem pelas telhas, ei-lo a sorrir, pensando: É a geada bendita que está caindo. Amanhã os campos serão outros. Eu ficarei reduzido a um terço, outros perderão mais e a safra de todo o Estado, com o benefício desta noite, ficará em menos da metade do que se espera e ainda será muito. Felizmente o inverno aí está e há um Deus no céu. Mais um ano de fartura como este e seria um dia a lavoura do Brasil.

Não há quem resista. Antigamente, com o que dava um alqueire de terra, uma família vivia fartamente; hoje, com a abundância, o fazendeiro pena em miséria. O que o compromete ó o excesso: todos plantam, todos colhem: não há compradores.

Anuncia-se uma feira, açode gente de toda a parte a disputar as barracas ou com as lonas e os esteios para armar a sua tenda. Levanta-se tão densa poeira nas estradas com a chegada dos carros, das tropas, das recuas, das manadas, dos rebanhos e ainda da gente que as mesmas torres das igrejas desaparecem abrumadas.

No campo da feira amontoam-se os serões e as cangalhas, empilham-se os jacás e os coxos, enfileiram-se as capoeiras, atravancam-se os largos cestos. O cercado de animais referve e, como não há divisões, saltam os potros, os burros escoucinham, marram os touros, cuincham os bacorinhos, grunhem os grandes cevados acaçapados, fossando a lama, cacarejam as galinhas, grasnam os patos, arruínam os pombos e todas essas vozes não chegam a abafar as dos homens, das mulheres e das crianças que apregoam esgueladamente o que trazem das suas roças.

Quem entra numa feira, vendo a multidão que vai e vem, imagina que o comércio corre animado, engano — só lia ali vendedores, de sorte que o sertanejo, que deixou o seu sítio longínquo, à beira da serra, para oferecer na feira os frutos do seu pomar e o gado novo da sua caiçara para, com o produto, comprar novos ferros e chita e madapolão para os seus, ali está de cócoras, macambúzio, o cachimbo nos beiços, os olhos perdidos longe, no céu da sua banda, lá para os lados da serra onde a sua gente, pobre gente! o espera com as compras tão necessárias... até um remédio lhe pediram e o mísero nem para o remédio faz.

E dissolve-se a feira: lá tornam todos com os frutos murchos, com os animais cansados, maldizendo a abundância porque todos têm e não compram.

Isto acontece ao pequeno lavrador que ara, semeia, aduba e colhe, que tosa a ovelha, que munge a vaca, que informa o queijo e bate a manteiga auxiliado pela família. Imaginai o desespero do grande plantador que vê, em volta da casa, formigar uma nova vila de colonos. É a exuberância que o desgraça, é a fartura que lhe traz a miséria.

Lá vai vagarosamente, aparecendo, desaparecendo por entre uns outeirinhos aveludados, um comprido e pesado trem de carga — café. Dos sertões feracíssimos descem diariamente tropas numerosas; são campainhas tinindo desde a madrugada até a noite, às vezes pela noite adiante e tropeiros bradando — café. Pelos rios, em balsas, descem milhares de arrobas que vão ter às pequeninas estações onde embarcam para o porto. Os horizontes são verdes — onde acaba o cafezal começa o céu, e as árvores, sobrepujadas pelos frutos, achaparam-se: é a maravilha da fertilidade, a praga arruinadora do excesso.

No porto, à medida que vão chegando os vagões entulhando os armazéns, vai o preço descendo e, como entram sempre novos trens carregados, mais baixa o valor da mercadoria; é quase uma miséria o que oferecem, não vale a pena vender; o melhor é conservar o café em casa, mas como? onde? se não há tulhas e se o fazendeiro tem a colônia a murmurar reclamando a paga! Que vá o café, que vá! e os campos cada vez mais verdes. Oh! a inclemência do verde!

Como se vivia bem no tempo passado! O pouco que a terra dava era vendido a peso de ouro e o fazendeiro que colhesse o que hoje colhe um sitiante poderia viver regaladamente como um rajá: o fruto tinha valor real, as tulhas eram tesouros, os engenhos eram verdadeiras casas de moeda. Agora as máquinas poderosas não preparam em seis meses, trabalhando dia e noite, todo o café da colheita, as moendas, jorrando rios doces, não espremem toda a cana, parte perde-se nos carros ou amontoada nas eiras, e, se a deixam na terra, apendoa; o leite apodrece nas queijarias, a fruta encarquilha-se ou transforma-se em lama nos pomares. É demais! Corta, vento de inverno! Corta, ceifador noturno!

Criar! E vale a pena criar? Com a abundância o gado anda farto e luzidio: no chiqueiro do pobre cevam-se varas de porcos, as vacas mal podem caminhar embaraçadas pelos ubres apojados, e assim as cabras, as ovelhas igualmente. Por muito haver pouco vale e, como o preço oferecido não compensa, os homens resolvem deixar os animais no campo esperando confiadamente o tempo da miséria, que há de vir, Deus é grande!

Levanta-se o lavrador, sai pé ante pé guiado pela claridade tênue da lamparina do oratório, acesa diante das imagens como a lembrar-lhes o pedido feito, com fervor, por todos; lá vai. Chega à janela, corre o ferrolho. Que frio! sorri contente, tintando e espia — noite serena, céu estrelado e a geada!

É cedo, talvez; nem bruma — o luar galvaniza as frondes tornando-as de prata e as vozes da natureza cantam, sussurram dentro da noite; o aroma das flores passa nas auras, a água rola no moinho. O lavrador ali fica a olhar, sem sentir o frio que corta como à espera da geada que não vem, a ouvir, sem compreender, o que lá fora dizem as árvores alegres. Torna ao leito desanimado. A esposa, que o viu sair, espera-o sentada, com o rosário entre as mãos enclavinhadas:

— Gia?

— Ainda não.

— Pode ser que pela madrugada...

— Não creio. É Deus que nos abandona. Enfim, seja feita a sua vontade. Deita-se. Queria que sentisses o cheiro das flores.

— Que flores?

— Não sei, mas é um aroma que entontece. Essas malditas flores estão anunciando outras cargas. Aqui só o fogo.

Cala-se e, de olhos abertos, fica a penar na monstruosa queimada salvadora: uma chama viva que crescesse com o vento e que fosse arrasando os campos de milho e cana e o cafezal e subisse à mata e secasse as fontes deixando a terra vazia e estéril, coberta de cinzas, durante anos. Só isso.

Faria um aceiro protegendo apenas o cafezal novo, o mais que fosse, que o incêndio levasse e o pouco dos anos vindouros salvaria o prejuízo dos tempos copiosos. Só o fogo!

Mas para isso seria necessário que todos os fazendeiros entrassem no acordo sinistro tomando, cada qual, um archote e ateando o incêndio que, vindo de pontos diversos, às lufadas vermelhas, deixasse apenas, em cada fazenda, como pequenas ilhas, dois ou três alqueires de culturas verdes. Escassearia o produto e cresceria o preço.

Mas o fogo estimula, o fogo arde e fecunda como o beijo. Haveria, no primeiro tempo, um espasmo letárgico da terra, mas, com a primeira chuva, todas as sementeiras repontariam viçosas, com ânsia maior de vida e a produção seria mais acabrunhadora.

Que fazer?

Um silvo atravessa o silêncio. São os comboios. Lá vão eles, caminho do porto, lá vão! É madrugada. O gado muge, balem as ovelhas. Atroadorarmente começam a trabalhar as máquinas beneficiadoras e o fazendeiro, fatigado da vigília, salta da cama, abre largamente a janela. Uma poeira empana os ares: é a palha do café que voa e que lá vai estrumar o alqueive e, purpúreo, imenso, implacável, sobe no céu, vitoriosamente, o sol.

Douram-se os montes, douram-se os campos, o orvalho rebrilha nas folhas — tudo reverdeceu com a noite e o fazendeiro, taciturno, pensa na miséria quando o administrador, descendo a galope do lado do engenho, estaca a bestinha diante da varanda e diz:

— Patrão, vou mandar colher aquele resto de café do pedregal, porque as flores já estão vindo aos galhos.

Ele estremece, fita o empregado e, sem compreender bem as palavras que ouve, encolhe os ombros indiferente. Fruto e flor... Mas é a perdição, Deus do céu! É a perdição! Fruto e flor... Terra maldita!

E o sol vai subindo no céu e abelhas zumbem visitando as flores novas anunciadoras da abundância futura que será a falência, a definitiva desgraça. Ainda frutos e já flores.


E há ainda quem gabe a terra cafeeira, a terra roxa da cor da agonia.

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