O Duplo
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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— Temos, então, um caso de
desdobramento da personalidade do meu querido amigo?
— Quem te disse?
— Laura.
Benito Soares ficou um momento
encarado no coronel. Por fim, meneando com a cabeça, desabafou contrariando:
— Laura... Laura faz mal em
andar contando essa história por aí.
— Que tem?
— Ora! Que tem... Há dias, em
casa do Leivas, pouco faltou para que eu rompesse com o Malveiro, a propósito
do que se deu comigo, e que lhe contaram não sei onde, entendeu que me devia
tomar à sua conta, expondo-me à risota de uns petimetres ridículos que o
cercam. Fiz-lhe sentir que não me agradavam os seus remoques e deixei-o com os tais
mocinhos, que lhe aplaudem os versos quando ele lhes paga a cerveja ou o chá,
aí por essas casas.
Não ando a pregar doutrinas:
não sou sectário, não frequento sessões nem leio, sequer, as tais obras de
propaganda que pretendem revelar o que se passa no Além da morte. Sou religioso
à velha moda, observando a doutrina que aprendi, ainda que não ande beatamente
pelas igrejas de círio e ripanço. Cumpro rigorosamente os Mandamentos e os
marcos que limitam a minha Crença são os quatro evangelistas; fora de tais
"termos" não dou um passo — nem para diante, seguindo os
reformadores, que pregam o novo Credo, nem para trás acercando-me de altares
pagãos ou adorando ídolos grosseiros. Onde me deixaram meus pais, que foram os
meus iniciadores, aí ficarei até morrer.
Contei a Laura a tal história
como contaria um acidente qualquer de rua, sem cuidar que ela fizesse do caso
assunto de palestra nos salões que frequenta. O resultado disso é o que se está
dando comigo, aborrecendo-me, irritando-me, porque desconfio de todos os
olhares e, se alguém sorri à minha passagem, imaginando que comenta o meu caso,
fico logo pelos cabelos.
— Mas, afinal, como foi?
Comigo podes abrir-te sem receio. Sabes que, além de discreto, não sou dos que
zombam do sobrenatural. Os fatos aí estão: produzem-se, reproduzem-se e, se
ninguém os explica, muitos dão deles testemunho e provas e eles, efetivamente,
manifestam-se visível, sensivelmente.
Os cépticos encolhem os ombros
sorrindo, os adversários, à falta de argumentos com que os destruam, bradam
contra os que os apregoam. A verdade, porém, é que nos achamos diante de uma
porta de bronze que nos veda um grande mistério, ou melhor — Mistério.
Mas já é muito havermos
chegado à porta. Sente-se que além dos túmulos, que são limiares de outro mundo,
há alguma coisa que... Ninguém sabe o que é.
A porta mantém-se fechada,
deixando apenas passar um rastinho de luz no qual flutuam indícios, revelações
vagas, como átomos nos raios de sol. Mas deixemos as dissertações para mais
tarde. Vamos ao teu caso. Foi, então, um desdobramento da tua personalidade?...
— Não sei que foi. Digo-te
apenas que passei os minutos mais angustiosos da minha vida.
Saindo do Alvear, subi
vagarosamente a Avenida até a Tabacaria Londres, onde comprei charutos e estive
um instante a conversar com o Borges sobre coisas da vida.
O Borges anda com a mania dos
Marcos; possuí não sei quantos milhões, e espera que a Alemanha recomponha as
finanças para aturdir-nos, a nós e ao mundo, com a vida maravilhosa que tem
toda em plano. O que me está parecendo é que o pobre está com o juízo em pior
estado de que as finanças germânicas. Enfim, deixando o Borges, dirigi-me, sem
mais empeços, para a Galeria, onde comprei os jornais.
O meu bonde apareceu logo e
logo foi assaltado. Não consegui uma ponta e fiquei entalado no banco da
frente, entre um obeso cavalheiro ruivo e uma matrona anafada, dessas que se
esparralham.
O bonde partiu e, oprimido
pelas duas enxúndias, dificilmente consegui abrir um dos jornais. Pus-me a ler,
ou antes: a olhar a página porque, em verdade, a minha atenção vagueava, aí por
longe. Os olhos passeavam pelas palavras, sem que o espírito lhe colhesse o
sentido, como deve acontecer com os aviadores que veem, de muito alto, todo o
panorama de uma cidade em mancha, sem distinguir os bairros, as ruas, os
edifícios, apenas o alvejamento das casas, a placa cintilante do mar, o relevo
dos montes. Sentia-me atraído por alguma coisa. Voltei página do jornal — a
mesma confusão, o mesmo empastamento. Foi então, que levantei a cabeça, olhando
em frente e vi, meu amigo, vi!...
— Viste?...
— A mim mesmo, a mim! Eu, eu
em pessoa sentado defronte de mim, no banco da frente, que dá costas à
plataforma. Era eu, eu! Como refletido em um espelho, e certo estremeci
vivamente, incomodando os meus companheiros laterais, porque ambos voltaram-se
encarando-se de má sombra.
Pasmado, sem poder desfitar os
olhos daquele reflexo, que era, em tudo, eu: nas feições, na atitude, no trajo,
não parecido, mas reproduzido em exteriorização, pensei de mim comigo:
Se tal se dá é que o meu
espírito, alma, ou lá o que seja, exalou-se de mim, deixando-me apenas o corpo,
como a borboleta deixa o casulo em que se ópera a metamorfose. Assim, pois, o
que ali se achava, no bonde, era uma massa inerte, sustida pelos dois corpanzis
que ladeavam. E, em menos de um segundo, vi todo o horror da cena, que seria
cômica, se não fosse trágica, que se daria com a retirada de um daqueles
gordos.
Desamparado, o meu corpo vazio
tombaria. Dar-se-ia, então, o alarma: todos os passageiros de pé, a verificação
da minha morte, o reconhecimento do meu cadáver pelo condutor e a minha entrada
fúnebre em casa.
Que angústia, meu amigo! E o
outro lá estava em frente a olhar-me, como se gozasse com o meu sofrimento.
Lembrei-me, então, de fazer um movimento com os braços, com as mãos; o receio,
porém, de ser a minha vontade atendida pelos nervos fez-me hesitar. Mas eu
pensava, raciocinava. Sim, mas o corpo não esfria de repente e tais pensamentos
e tais raciocínios podiam ser ainda restos de energia d'alma que me houvessem
ficado nas células, como fica nas polias o movimento ainda depois do motor
parado.
Sentia-me rígido, petrificado
e tinha a sensação de frio, como se me fosse congelando, a começar pelos pés. E
o outro sempre encarado em mim.
Fiz um esforço supremo como se
quisesse levantar o bonde com todos os passageiros que ele continha e,
arremessando os braços, pus-me de pé.
A matrona levantou a cabeça
com atrevimento e olhou-me com tal carranca que eu pensei que me fosse
agatafunhar ou, com a força dos braços, que eram duas coxas, atirar-me do bonde
abaixo e o ruivo roncou ameaçadoramente, aprumando a cabeçorra quadrada de
ufano com entono de desafio.
Mas que me importavam ameaças
A minha alegria era grande e tornou-se maior quando, ao procurar com os olhos o
meu outro "eu", não o vi mais.
Teria descido? Não! Não
descera. Tornara a mim, atraído pela vontade, na ânsia de viver, no desespero
em que me vi, só comparável ao de alguém que, indo ao fundo, sem saber nadar,
debate-se agoniadamente conseguindo elevar-se à tona e gritar a socorro.
E tudo isso, meu amigo, não
durou, talvez, um minuto e eu guardo de tais instantes a impressão penosa de um
século de sofrimento.
Eis o meu caso, o caso que
tantos aborrecimentos me tem trazido pela tagarelice de Laura, a quem o contei,
e que o repete por aí, a todo o mundo.
E crença que D. Juan de
Maraña, encontrando-se, certa noite, com um saimento, perguntou a um dos que
conduziam o esquife: “Quem era o morto?" E logo lhe foi respondido:
— É D. Juan de Maraña.
Querendo o fidalgo verificar o que lhe dizia o farricoco e outros sinistramente
repetiam, afastou o sudário e viu. Efetivamente: o defunto era ele. E tal visão
foi que o levou ao arrependimento. Pois comigo a coisa foi num bonde. Eu vi-me,
como te estou vendo; a mim, entendes? A mim! Como explicas tal coisa?
— Essas coisas, meu amigo, não
se explicam: registam-se, são observações, fatos, elementos para a Ciência do
Futuro, que será, talvez, Ciência da Verdade.
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