Romance triste
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Poetas... Poetas são como as abelhas que buscam apenas na flor a substância com
que fazem o mel. Que lhes importa que, depois da visita ao nectário, a flor
murche e feneça? outras há pelo bosque perfumado e para essas outras vão elas
aligeirando as azas.
Donzela, que dais ouvidos às canções
do poeta, julgais ingenuamente que ele vos pertence, que nunca mais se apartará
do juramento feito aos vossos pés, com os olhos nos vossos olhos, procurando,
talvez, surpreender a vossa alma? engano vosso — para que ele vos abandone
basta que uma outra apareça.
Foi Zeuxis, se me não trai a
memória, que, para realizar na tela um tipo de beleza, reuniu na sua oficina várias
donzelas, aproveitando de cada uma a linha ou a cor mais pura, o garbo ou a languidez,
a esbelteza e a curva graciosa e, depois de rematada a figura, era um complexo
maravilhoso e as moças, que se haviam prestado a ser modelos, deixaram no
painel do artista um pouco do próprio corpo. Desta ficaram os olhos, daquela
ficou a fronte, os cabelos duma despenhavam-se ondulando sobre os alvíssimos e
redondos ombros doutra, as mãos eram de tal, os pés duma outra, era a boca dum
rosto, o nariz de outro e assim a obra perfeita era como o mel das abelhas — o
conjunto do sabor de múltiplas corolas. Fazem assim os poetas.
Um conheço eu que, depois de
me haver lido uma admirável composição em sonoros alexandrinos, toda consagrada
à glória de uma mulher ideal, dizendo-lhe eu o nome da criatura inspiradora,
fez um momo dobrando lentamente o papel em que fulguravam os lindos versos:
— Estás louco. A boca,
efetivamente, é dela, mas os olhos... Ah! se visses os olhos de... Duas violetas,
meu amigo! Duas violetas! Nunca vi olhos daquela cor!
— Mas Fulana, objetei, tem uns
pés de saloia. — Sim, os pés são hediondos mas eu, na poesia, refiro-me aos pés
imperceptíveis da Cesira. Conheces Cesira? ah! meu caro...
— De sorte que na tua poesia
há quatro mulheres!...
— cinco, aliás: a graça é da
Olímpia, ninguém anda como a Olímpia; é uma deusa.
— Mas isso é um gineceu em
alexandrinos, homem.
— O poeta não ama a mulher,
ama a beleza, concluiu o meu amigo com solenidade.
Não pensava assim o que morreu
entre as árvores amigas. Foi um amoroso fiel e calado, não gemia o seu
tormento, continha-o no coração e, de quando em quando, lá o exalava em
estrofes. Enquanto a criatura amada viveu na mesma cidade em que ele morria
abafou medrosamente o seu segredo, como Arvers; ela, porém, partiu para outros
climas, para outros braços e o solitário, num derradeiro esforço, deixou o seu
retiro e publicou a sua história dolorosa. No frontispício do livro, como a
legenda sinistra, pôs ele uns versos do Cancioneiro
de D. Diniz que resumem toda a sua agonia:
Quizo ben, amigos, e quero e querrey
Hunha mulher que me quis, e quer mal,
E querrá; mays non vos direy eu qual
A mulher; mays tanto vos direy,
Que quis ben, quero, e querrey tal mulher
Que me quis mal sempre, querrá, e quer.
Fomos companheiros em Lambari.
Ela também lá estava. Uma vez, à tarde, conversávamos no cottage do parque, ouvindo as cigarras, quando ele se pôs a falar
no falecimento da sua velha mãe, uma boa e resignada velhinha, que era o seu
amparo moral no mundo. Nunca pensara na morte enquanto ela vivera, mas na mesma
tarde do enterro, voltando do cemitério, começou a ser perseguido por aquela ideia
fatal. Sabia que estava perdido, era como um edifício que ia, aos poucos,
caindo e, na sua qualidade de ruína, só acolhia tristezas. Enfim! e, resignado,
encolheu os ombros.
— Mas tu tens aproveitado
muito aqui, com as águas.
Voltou para o meu rosto os
olhos tristes e, com um sorriso melancólico, disse com a sua voz rouca:
— Com as águas...
Súbito um riso cristalino
rompeu alegremente o silêncio crepuscular. Ergueu-se o poeta de olhos cravados
num caminho que se ia enchendo de festivo barulho. Um bando gárrulo de moças apareceu
e, entre elas, esbelta e loura, com uns olhos que fulguravam, a boca mais
vermelha que as rosas sanguíneas, onde um sorriso tinha residência, ela, a misteriosa
criatura amada. Como se quisesse martirizar o desgraçado, chamou-o, a rir,
tomou-lhe o braço e lá o foi levando por entre as flores, a inebriá-lo com o
seu perfume de mancenilha. Nessa noite, no salão do hotel, o poeta recitou um
apólogo: O sapo e a estrela.
Era uma vez uma estrela...
E vai um sapo, o idiota,
Logo apaixonou-se ao vê-la.
O apólogo foi recebido com
aplausos gerais, mas num vão de janela, houve quem murmurasse, disfarçando um
sorriso: “O sapo... coitado! é ele...”
E a estrela andava trefegamente pela sala reunindo pares para urna quadrilha.
E ele, triste, do fundo da sua
melancolia de moribundo, ficava-se a contemplá-la, como o sapo contemplava
Siriús. Não lhe falava do seu amor; e que lhe havia de dizer se ela era a
própria imagem da Vida e ele... sempre a tossir, ouvindo as lástimas dos que
auguravam a sua morte próxima. Que, ao menos, a deixassem ali, perto dele. “É a
luz da minha última hora”, suspirou, uma vez, disfarçando a mágoa num sorriso.
À volta, no trem, ele
queixou-se: “Vai recomeçar o meu sofrimento...” E voltou os olhos marejados
para o banco em que ela estava — era o apartamento. No hotel viam-se a toda a
hora e ele estava sempre a ouvir-lhe a voz, mesmo quando adoeceu pediu que lhe
conservassem a poria entreaberta e, como se alvoroçava quando, pelo corredor,
vibrava o riso cristalino da formosa indiferente!
No Rio viu-a uma tarde, na rua
do Ouvidor, toda vestida de azul:
Chapéu azul, vestido azul, de azul bordado,
Azuis o para-sol e as luvas, Senhorita,
Como um lótus azul por um deus animado,
Passa, toda de azul, por mil bocas bendita,
Vendo-a não se vê mais nada que o azul tonteia....
Como num sonho azul logo nos vem à ideia
Um pedaço de céu azul passeando a terra.
Um dia ela partiu para o campo
e de lá a cruel, escrevendo a ama amiga, pedia-lhe que dissesse ao poeta que
certamente ele ficaria curado com aqueles puros ares da serra, bebendo aquelas
frias águas que manavam das penhas e o leite gordo que uma boa mulher trazia, todas
as manhãs, à porta do hotel. Ele que fosse, que a fosse ver para convencer-se:
estava outra, ela mesma achava-se bonita.
E o mísero, sofrendo,
lançou-se afoitamente ao trabalho: em oito dias concluiu uma peça, entregou-a
ao empresário e partiu. Lá esteve e, enquanto a sentiu perto, louvou a terra e
os ares, falando em ressurreição: “ Eu vivo aqui — sinto-me outro”. Ela, porém,
desceu e, desde logo, todas as virtudes dos ares puros e das águas límpidas desapareceram.
Voltaram os sofrimentos — a febre, a insônia, os suores noturnos até que, um dia,
os jornais anunciaram a partida da bem amada para a Europa.
Esse amor era uma
misericórdia, a presença da criatura era o amparo daquela vida, tanto que ela partiu
começou a destruição. A Morte, encontrando o coração ferido, foi abalando as
últimas resistências, uma, porém, reagia — era a esperança de que ela voltasse.
Mas não, deixou-se ficar em outras terras, nos braços de outro. Bem que a sua Musa
presaga soluçara:
Ela nunca terás nem seu amor.
Desequilibrado, sem esse ânimo
forte, o poeta caiu. Tornou-se-lhe, então, a vida um rosário de dores e as que
menos o torturavam eram as que lhe pungiam o corpo — a alma, essa sofria mais acerbamente.
E começou o desfalecimento — o solitário achou-se sem o seu “ sonho “, tudo era
deserto em torno; nem o seu faceiro sorriso, que era a alegria dos seus olhos,
nem a sua voz que era a sua melodia predileta, nem o aroma que ela esparzia como
se deixasse no ar um sulco de perfume. Lá longe! Como chegar até lá!... Esses
poetas, têm, às vezes, sonhos extravagantes... Quem sabe?!
Abatido, quis ainda voltar ao
sítio que ela lhe recomendara como sendo um lugar de beleza e saúde. Foi, apeou
à porta do mesmo hotel rústico que ela habitara, percorreu vagarosamente os
caminhos que ela percorrera, agasalhou-se à sombra da sua árvore predileta e
teve visões de amor, viu-a ao longe, sentiu-a entre as flores silvestres:
Tudo de luz se inunda e, dominando tudo
Cheio da própria luz, sobressai na paisagem
O correto perfil dessa que me não ama.
Esse perfil não estava na
paisagem — estava no coração, era uma miragem passional, mas... Esses poetas,
esses poetas! quando amam são capazes de tudo e quem sabe se o desgraçado, sem
esperança de tornar a vê-la, não fez como aquela escrava do conto que, para juntar-se
ao filho morto, cravou um punhal no coração?
Ele não precisava lançar mão
de uma arma para realizar esse desejo sinistro — a Morte estava dentro dele e
bastou que deixasse a fera sair da jaula, onde a continham os cuidados, para
que, em um momento, o martírio findasse. E agora?...
Talvez que, em breve (não vem
longe a primavera) a ingrata, que habita um velho castelo de França, receba a visita
da alma peregrina.
Uma noite, apoiada ao balcão,
olhando o céu, ouvirá cantar um rouxinol nos roseirais em flor. Será tão lindo
e tão sentido o canto que ela, apesar de indiferente, voltará o rosto para
ouvi-lo e, ouvindo-o, não imaginará que, no pássaro dolente, palpita a alma
saudosa do que viveu por ela, do que morreu de amor.
Ah! o soneto d'Arvers, o
soneto d'Arvers...
É bem possível que, quando chegar à França a
notícia da morte do poeta, seguida dos comentários sobre a sua paixão funesta,
ela, deixando no colo a carta anunciadora, exclame, finalizada, na língua que
adotou:
“Quelle est done celte fimme?” et na comprendra pas.
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