3/14/2018

História do Brasil: Governo Geral - Tomé de Sousa e D. Duarte da Costa


Extraído do livro "História do Brasil", publicado no início do século XX. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)

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Governo Geral - Tomé de Sousa e D. Duarte da Costa

O GOVERNO GERAL

1 — No seu aspecto geral, era esta, em 1548, a situação do Brasil. Estava iniciado o povoamento nas capitanias de São Vicente, do Espírito Santo, de Porto Seguro, dos Ilhéus, da Bahia, de Pernambuco e de Itamaracá.

Contavam-se já umas quatorze ou quinze povoações nessas capitanias, de muitas das quais já se iam exportando para o reino vários produtos, como açúcar, algodão, tabaco, infinidade de matérias extrativas e outros artigos do pais.

Começavam a estabelecer relações entre as diversas capitanias, amparando-se o protegendo-se entre si os donatários. Defendia-se resolutamente a terra contra os especuladores que varejavam o litoral. Todas as povoações tinham já, cada qual, o seu forte e competente guarnição. Em quase todos os portos havia pequenas forjas e estaleiros, onde se consertavam navios, e até se construíram embarcações para os serviços da costa. As relações com a metrópole já se faziam mais frequentes, por esforços dos próprios colonos, mediante contratos com armadores particulares.

Em suma, os donatários tinham revelado o Brasil, mostrando que ele não era mais o país inóspito e tremendo dos primeiros dias. Haviam desfeito os mistérios e as lendas. Tinham aberto caminho aos obreiros futuros, e desembaraçado a terra para a ação da autoridade oficial.

Isolado num único ponto da costa, no meio de seiscentas léguas desertas, não seria Tomé de Sousa, com a sua pequena expedição, capaz de resistir aos selvagens, estimulados e dirigidos pelos franceses.

Aos donatários tocou, portanto, a obra menos gloriosa, é certo, mas a tarefa mais árdua, sem a qual não se haveria preparado o país para a organização administrativa que se vai seguir.

Além de tudo quanto desde muito impressionava o espírito da corte, dois fatos iam agora apressar a deliberação que se tomou; o desastre de Francisco Pereira Coutinho, e o cruzeiro ostensivo que os contrabandistas franceses mantinham nos mares da costa, entre a ilha de São Sebastião e o Cabo Frio. Sobretudo este último perigo denunciava cabalmente a incapacidade dos donatários para prover com eficácia à guarda da costa.

Tão desafrontados e arrogantes tornaram-se afinal os franceses que as vilas de São Vicente e do Porto de Santos se viram reduzidas a uma conjuntura aflitiva, ameaçadas até de bloqueio formal por aqueles aventureiros.

Não era possível, pois, retardar-se uma providência decisiva para salvar o Brasil.

2 — A criação de um Governo Geral para a colônia correspondia, portanto, à necessidade que se andava sentindo, e tinha por fim: — uniformizar a administração de todo o país; — corrigir o arbítrio dos capitães-donatários, e os desmandos e abusos praticados contra o gentio; — regular as relações entre as diversas capitanias, submetendo os donatários a uma autoridade superior tendo sede no próprio país; — tornar efetiva a guarda da costa perseguindo os contrabandistas; — amparar os donatários contra insurreições de índios, e contra assaltos de piratas e corsários e investidas de intrusos; — instituir justiças menos ilusórias, que pusessem mais ordem na vida das colônias; — reprimir abusos do fisco, e salvaguardar os interesses da real fazenda; — ativar a conquista e o povoamento; em suma — organizar a ordem política no domínio.

Para isso era necessário alterar alguma coisa no regime das donatárias, derrogando muitas das amplas jurisdições e privilégios que se haviam concedido aos capitães.

Fizeram-se essas reformas nos próprios regimentos dados em 1548 a Tomé de Sousa, como Governador Geral; a Antônio Cardoso de Barros, como Provedor-Mor da Fazenda; e a Pero Borges, como Ouvidor Geral.

A julgar por esses regimentos, o intuito do governo português é, por enquanto, ensaiar a colonização oficial, e fazer diretamente um serviço que se tornasse como norma para os donatários.

O Governador Geral vem "fundar uma fortaleza e povoação grandes na Bahia, de onde se possa dar favor e ajuda às demais povoações, e prover nas coisas da justiça, direitos das partes e negócios da real fazenda".

O regimentos de 1548 mal delineiam o regime novo, que só com o tempo se foi integrando; mas é bastante ver que por eles aqui se constituía uma como delegação da soberania real para todo o país; que se punha a justiça fora da alçada exclusiva dos capitães; que se continham os arbítrios do fisco, pondo os respectivos agentes nas capitanias, e os próprios donatários, sob a superintendência e inspeção de um Provedor-Mor.

Para assento do Governo Geral escolheu-se a Bahia, por ser o ponto da costa, de onde, em virtude da respectiva posição geográfica, mais facilmente se poderia acudir às diversas capitanias. O desastre de Coutinho facilitou a reversão da donatária à coroa, mediante acordo com o sucessor do malogrado donatário.

3 — Era Tomé de Sousa, a quem se confiara a alta função de instalar o Governo Geral, um homem notável pelas suas qualidades. Tinha servido na Ásia, a grande escola daqueles tempos; e dando provas de discernimento, prudência, valor e tino político, e sobretudo de caráter forte. Além disso, era homem religioso e de costumes irrepreensíveis.

A sua austeridade vinha quebrar logo as tradições daquela anarquia moral em que andavam vivendo quase todas as colônias.

Ao lado de Tomé de Sousa vieram homens que pareciam da mesma estofa. As três autoridades superiores (Governador, Ouvidor Geral e Provedor Mor) eram independentes, ou pelo menos tinham atribuições discriminadas e próprias; mas deviam andar de acordo, formando um como conselho do governo.

Investido do comando militar, como capitão-mor da costa, vinha Pero de Góis, o qual talvez não se tivesse ainda desenganado da sua paixão pela terra, apesar da desfortuna com que tentara colonizar a sua donatária (São Tomé ou Paraíba do Sul).

Vinham também outros funcionários subalternos, muitos oficiais e mestres de obras; uns 200 homens de tropa regular, uns 300 colonos de contrato, e 400 degradados, formando um total de mais de 1000 homens.

Tendo saído de Lisboa em princípio de fevereiro, veio a expedição chegar à Bahia pelos fins de março.

Dizem antigos cronistas que viera logo Diogo Álvares ao encontro dos portugueses assim que fundeara a esquadrilha, um pouco antes de defrontar com a antiga povoação de Coutinho. Sabe-se que já havia Diogo recebido aviso da vinda do Governador; e é natural que se prevenisse para uma recepção condigna.

Informado, pois, da situação da colônia e da atitude dos selvagens, combinou Tomé de Sousa com o patriarca exule o modo como convinha entrar no país. Reuniu e pós em ordem o Governador os homens de guerra que trazia, e da praia marchou em forma para a Vila Velha, indo na frente os padres (jesuítas e seculares que acompanhavam a expedição) conduzindo uma grande cruz de madeira.

Dizem que a solenidade do préstito, e os cânticos com que se maravilhavam os índios, comoveram até às lágrimas os próprios portugueses.

Da praia marchou a gente em ordem até o antigo arraial de Diogo Álvares, onde se foram todos instalando.

Viu logo Tomé de Sousa que o da Vila Velha não era o local mais próprio para fundação da cidade, e cuidou de escolher uma paragem mais adequada. Depois de explorar o Recôncavo, convenceu-se de que ali não havia sítio a preferir. Um pouco para o norte da Vila Velha, alteia-se a terra em anfiteatro, da praia até uma larga chapada, coberta, então, de arvoredo. Ali resolveu-se fundar a capital do domínio.

4 — Desbravado o terreno, levantou-se-lhe em torno uma cerca de paus-a-pique. Dentro desse perímetro, delineou-se o plano da cidade, traçando-se ruas e praças, assinalando-se locais para os diferentes edifícios públicos, e começando-se logo as construções provisórias.

Com admirável disposição, toda a gente se entregou ao trabalho, desde o próprio Governador e os padres, até as mulheres e as crianças, e sobretudo os índios.

Feitas as primeiras casas, onde se puderam recolher provisoriamente as famílias e as autoridades, cuidou-se de substituir a cerca de madeira, que defendia a povoação, por uma alta e grossa muralha de taipa, "com dois baluartes sobre o mar e quatro para parte da terra, com artilharia e o mais necessário".

Dentro de dois meses, estava quase toda a gente que viera com o Governador instalada naquele alto, que se guarnecia agora de muros. Em Vila Velha, no entanto, ficavam sempre alguns já relacionados com o pessoal de Diogo Álvares. E até fez Tomé de Sousa questão de não abandonar aquele posto, que serviria ali de nexo entre a barbaria e a civilização que se assenta.

Em pouco tempo transformara-se inteiramente aquela estância, a nova povoação surgira, como por encanto, do meio daqueles esplendores da terra.

Acabada a construção da casa da Câmara e da igreja Matriz, resolveu o Governador fazer com toda pompa a instalação da cidade.

Pela manhã de 1° de novembro (1549), acompanhado dos seus oficiais e de todas as autoridades, e de multidão de povo, dirigiu-se Tomé de Sousa para a igreja de N. S. da Ajuda, onde se celebrou missa do Espírito Santo. Foi em seguida ao paço do senado; e ali, depois de declarar ereta a nova cidade sob o nome de do Salvador, em presença do clero, nobreza e povo, prestou juramento e assumiu o cargo de Governador Geral do Brasil, tomando por sua vez o compromisso das outras autoridades e demais funcionários, e recebendo as homenagens que lhe eram devidas.

5 — Fundada a cidade, prosseguiu Tomé de Sousa na sua tarefa, organizando primeiro a vida municipal, dividindo e discriminando a competência das diversas autoridades. Fixou o termo do município, demarcando-lhe seis léguas para cada lado. Formou-se o conselho ou câmara de vereadores, escolhendo-se pessoal idôneo entre os "homens bons" da terra, e provendo-se os vários cargos da administração.

Constituído o governo local, e arregimentados todos os serviços, começou-se a distribuição de terras aos colonos, nas mesmas condições em que o faziam já os donatários.

Ao mesmo tempo que distribuía terras e animava os lavradores, ia o Governador mandando abrir estradas e caminhos em toda parte do distrito onde não era possível a navegação. Nas vizinhanças da cidade, e até fora, para o sertão, restauraram-se muitos engenhos que estavam abandonados, e fundaram-se outros, tomando rápido incremento a indústria rural.

A viação costeira e fluvial tinha de ser o mais poderoso instrumento do progresso da colônia; e para impulsioná-la, começou-se por montar um grande estaleiro, onde logo se armaram pequenas embarcações para o tráfico interno da vasta baía e dos rios que nela confluem, e depois, galeões, bergantins e barcas para o serviço de cabotagem. Deu isto como resultado imediato o povoamento de todo o litoral do Recôncavo.

Para estabelecer em grande escala a criação, empregou o governador uma caravela só no transporte de gado das ilhas, para onde em troca já se mandava madeira. É ele próprio que diz ao rei que o gado vacum é "a maior nobreza e fartura que pode haver nestas partes".

Não podia, pois, ter tido mais auspicioso início a colônia destinada a ser sede do Governo Geral.

6 — Mas a missão de Tomé de Sousa era muito mais vasta que a de simples fundador da cidade. O que vinha ele fazer era principalmente instituir a administração geral, pôr em ordem as diversas capitanias, instalar em todas elas a justiça do rei, proteger o esforço dos donatários, regularizar as coisas da fazenda.

Com semelhante intuito, assim que se encaminharam as obras da cidade, o seu primeiro cuidado foi mandar o Ouvidor Geral e o Provedor-Mor em visita às capitanias do Sul, onde mais se fazia sentir a necessidade de corretivo e de amparo oficial.

Para isso organizou-se uma flotilha de duas caravelas e um bergantim, sob o comando do próprio capitão da costa. Pero de Góis.

Estas autoridades visitaram todas as vilas marítimas das várias capitanias, tomando as medidas indispensáveis para que se regularizassem todos os serviços, e tendo ensejo de reprimir a audácia de traficantes franceses em algumas baías.

O grande proveito que se colheu desta visita foi exatamente esse de verificar-se até que ponto se haviam os franceses adiantado na invasão desta parte da costa, ameaçando de graves perigos as colônias portuguesas. Principalmente Pero de Góis, pelo dever do seu posto, não cessou mais de clamar, escrevendo continuamente para a corte, e insistindo junto do Governador Geral por urgente ação decisiva contra os intrusos.

Não dispunha, no entanto, Tomé de Sousa de recursos com que pudesse assumir ofensiva de proveito. Em tal conjuntura, o mais que cumpria era ir simulando rigor de vigilância com o fim de desassombrar a navegação para o sul. Na impossibilidade de manter um cruzeiro regular na costa, limitou-se ele, de concerto com o capitão do mar, a desimpedir o trânsito até São Vicente fazendo seguir de quando em quando para ali a pequena e quase desmantelada flotilha, e mandando escoltar as embarcações mercantes. Desse modo, ao menos, embargava-se o desplante e arrogância dos especuladores.

7 — Achando-se tudo em boa ordem na Bahia, e em geral normalizada a administração, teve tempo o Governador de fazer, ele próprio, uma visita às capitanias do Sul. Acompanhado de seus oficiais e outros funcionários, saiu por princípios de 1553, e veio fazendo estação em todas as vilas, apreciando tudo por si mesmo, e atendendo aos reclamos dos capitães e dos povos, principalmente quanto à ordem local e às condições de defesa.

Em São Vicente foi recebido com muitas festas. As coisas da terra iam regularmente. Só as complicações com os índios é que andavam cada vez mais perturbando a vida dos colonos. Teve, portanto, de melhorar as condições de defesa, fazendo reparar os antigos fortes, e construir outros, e aumentando a guarnição das duas vilas.

A instância de João Ramalho, foi o Governador até Piratininga. Ali encontrou muitas queixas contra aventureiros, mesmo portugueses, que tinham invadido o campo em grande ânsia de lucros. Os mais afoitos embrenhavam-se pelos sertões, indo até o Paraguai negociar. Chegou a tal ponto este comércio com Assunção pelo interior, que o próprio Tomé de Sousa se alarmou, e entendeu conveniente impedir tais comunicações.

Concluída a visita, apressou-se o Governador a voltar para a Bahia, onde a sua ausência já se fazia sentir. A incontinência dos colonos ia gerando colisões com os selvagens; e o que ocorria dava-lhe uma impressão bem funda do modo como se há de levar na América o problema do povoamento.

Havendo apanhado em síntese o que se passa ali e nas demais capitanias, as necessidades de que mais se ressentem todas, os erros que era mais urgente corrigir, as providências mais instantemente reclamadas, não perdeu tempo em longos relatórios: formulou concisa e nitidamente o seu modo de ver, escreveu ao rei expondo tudo com franqueza, e expediu imediatamente para o reino o homem de mais confiança entre os seus auxiliares, o próprio capitão-mor da costa, a dar em pessoa e de viva voz todas as informações que pudessem orientar o governo de Lisboa.

A chegada de Pero de Góis à corte causou a mais viva satisfação, pela certeza que se teve de que se havia fundado enfim a obra da colonização, e com tanta fortuna que já se podiam considerar como renascentes, nesta porção dos vastos domínios da monarquia, aquela antiga coragem e aquela esperança que começavam a desfalecer na África e na Ásia.

Agora, na América portuguesa, tudo dependia de continuar com segurança a obra iniciada. Para isso é preciso, antes de tudo, que no Governo Geral se ponham sempre homens que se meçam pela estatura daquele que acaba de cumprir conscienciosamente o seu heroico dever.

Imagens:
Biblioteca Nacional Digital:
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