3/15/2018

Importação de africanos (Ensaio), de Rocha Pombo


Importação de africanos

Extraído do livro "História do Brasil", publicado no início do século XX. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)

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1 - Desde épocas imemoriais havia na África a escravidão histórica; isto é, a que é própria de todas as sociedades humanas numa certa fase da sua evolução social e política.

Da escravidão histórica nasceu a escravidão mercantil; isto é, a exploração do cativeiro como um negócio. Esta é exclusiva e característica das raças africanas degradadas, desde que se puseram em relações com outras raças em mais alto grau de cultura.

Sem remontar a tempos mais remotos, parece que se podem ter os árabes como os criadores da moderna escravidão do negro.

As vitórias do Islã deram como resultado o estabelecimento do tráfico pelo extremo nordeste do continente. Com o dervixe penetraram até o coração da África as legiões do profeta. Como a conquista — a forma de proselitismo preferida pelos apóstolos de Alá — era fácil, e sem glória nem proveito entre selvagens, salvava-se ao menos o que era possível no interesse dos conquistadores: o monopólio do comércio, e o tráfico de escravos destinados a suprir o Sul da Ásia e grande parte do Mediterrâneo oriental.

Esse tráfico ampliou-se com a expansão do Crescente por todo o Norte da África. Teve então o tráfico externo dois largos emunctórios: o de leste, pelo mar Vermelho; e o do norte, pelo deserto, até o Magreb. Nos princípios do século XV, puseram-se os primeiros navegantes cristãos em relações com os indígenas da costa africana de leste. Alguns aventureiros chegaram a internar-se no continente subindo os grandes rios.

Encontraram-se esses com traficantes e mercadores árabes, e viram então o estado em que se achavam os negros.

Segundo se diz, o primeiro português que levou para o reino alguns africanos do Senegal fora Gil Eanes. Mesmo admitindo que antes de 1432 não se conhecessem na Europa (ao menos na Península Ibérica) escravos negros, pode-se fixar que só depois de meados do século XV é que se começou a introdução em Portugal. Ainda assim, o que se fez até fins do dito século não passou de meros ensaios, sem o caráter franco de especulação mercantil.

Basta ver que, em 1483 ou 84, ainda Diogo Cão levara da Guiné para Lisboa, como curiosidade, quatro rapazes negros que lhe confiara um régulo da costa. Não os levou, porém, como escravos, senão como visitantes, para que depois, ao voltar para a África, como efetivamente voltaram, contassem entre os seus o que tinham visto na terra do branco.

O tráfico efetivo, data, portanto, dessa época (fins do século XV). Primeiro, fazem-se experiências em Madeira e em Porto Santo; em seguida, levam-se negros para os Açores; logo depois para Cabo Verde; e por último (por meados do século XVI) trazem-se para o Brasil.


2 - Regulou-se logo o negócio (a compra na África, o transporte, e a venda nos mercados) com aquiescência, e mesmo com o apoio de todos os governos. A competição mais forte dava-se entre especuladores da França, da Inglaterra, de Portugal e da Holanda.

Foi principalmente nas novas terras descobertas que se sentiu mais necessidade de braços vigorosos, sem os quais os latifúndios, que facilmente se adquiriam, não teriam nenhum valor.

É para a América, pois, que se fez o tráfico mais vasto.

Não foi, no entanto, o Brasil o núcleo mais denso de população negra na América; nem nos toca a nós a prioridade do tráfico. Antes de nós, importaram os espanhóis as primeiras levas para as Antilhas. Cuba e Haiti tornaram-se definitivamente, sobretudo esta última ilha, os maiores centros de elemento africano em toda a América; e a tal ponto que ainda hoje, numa porção considerável da antiga Hispaniola, é a negra a raça preponderante.

Ao Brasil, só com alguns donatários, é que começaram a chegar os primeiros negros. A princípio eram empregados exclusivamente em serviços domésticos; depois, no trabalho dos engenhos.

Os africanos eram trazidos por empresas, que disso se ocupavam como negócio lícito e rendoso.

Do porto de desembarque seguiam as turmas para estações de refresco, de onde se recolhiam depois aos armazéns das feiras.

Os dois grandes entrepostos da introdução, no Brasil, foram a Bahia e o Rio de Janeiro. Daí é que saíam escravos para todo o país.

Tem-se calculado em milhões o total de africanos que durante três séculos entrou aqui na fusão geral. É isto bastante para sugerir a enorme importância deste coeficiente na formação do nosso complexo étnico.



3 - Nos primeiros tempos da colônia, até meados do século XVII, os núcleos mais densos de escravatura estavam no Norte, em Pernambuco principalmente, e na Bahia. Logo depois, tornou-se também o Rio de Janeiro um centro notável.

Durante todo o século XVIII (primeiro devido ao trabalho dos engenhos, em seguida ao serviço agrícola) o Rio se fez um como porto africano, com aspecto de uma Loanda mais vasta e mais agitada.

Nem todos os escravos, aliás, iam para o interior. Muitos deles ficavam por aqui mesmo, ou nos lares como fâmulos, ou nos armazéns de comércio, nos serviços de estiva e de transporte local, e até em pequenas oficinas de artes mecânicas.

Desenvolveu-se mesmo entre a gente mediana da terra o costume de comprar negros para os por de aluguel em fábricas, ou de soldada na praça, ou em obras públicas. Este género de negócio tornou-se logo muito comum. Uma família que conseguia adquirir um casal de escravos tinha feito às vezes um seguro patrimônio. Era um bem que aumentava, tanto pela procriação, como pelo acréscimo do valor venal que o escravo ia tendo. A fecundidade da raça continuou aqui a ser espantosa como na África. Muitos senhores, em vinte ou trinta anos, viam triplicada ou quintuplicada aquela propriedade, sacrílega aos nossos olhos de hoje, mas naqueles tempos só preciosa.

Quanto à valorização do escravo, basta ver que ainda pelos meados do século XVIII custava uma peça da índia, ou um fôlego vivo (como se dizia em documentos oficiais) na média 100$000 (os molecotes, de 40 a 80$000) e já em princípios do século XIX, o valor de cada indivíduo foi crescendo de 500$ até 2:000$000 e mais. O escravo ladino (já ensinado) valia muito mais que o boçal (chegado recentemente da África). O crioulo nascia já valendo mais. Um moleque inteligente, sabendo algum ofício, arte ou mister, valia dinheiro. Uma jovem mulata, vistosa e prendada, era uma fortuna.

O declínio da mineração fez volver pouco a pouco a atividade geral para as indústrias agrícolas. O escravo foi passando da lavra para o eito. De princípios do último século em diante, a lavoura do café começou a deslocar para São Paulo, Minas e Rio de Janeiro, a população negra.

Criou-se então o tráfico interno: os novos negreiros compravam escravos nas cidades para os vender nas fazendas.

Nas cidades, com os antigos senhores, ficavam só os escravos de estimação, as amas de peito e as amas secas, os criados domésticos {as mucamas), artífices e operários. Foram esses elementos que entraram na fusão; e hoje se acham mais ou menos diluídos no aspecto geral da população brasileira.



4 - Procurando apanhar os vestígios que a escravidão deixou no caráter nacional, vejamos o que é possível num relancear de olhos.

Foi o escravo que desnobilitou o trabalho. Ninguém se convence, mesmo hoje, de que num ofício se possa ser homem de sociedade. As próprias artes liberais voltaram a ser aqui o que tinham sido na Idade Média. Saber música, tocar um instrumento, conhecer desenho ou pintura, ser escultor ou arquiteto — eram habilidades que não convinham a pessoas de família ou de posição social. Ensinar meninos era profissão quase degradante.

É por isso mesmo que, em regra, os artistas do período colonial vinham da escravidão, ou das classes mais humildes.

A coexistência (e na maioria dos casos, o convívio) do senhor e o escravo (formando quase verdadeiras castas) deixou em toda a nossa psicologia de povo profundos vincos, que só a obra da cultura fará desaparecer de todo. É fácil assinalar, por exemplo: — um sentimento exagerado
da fortuna e do poder, e até de funções (às vezes mesmo as mais precárias) — em contraste com a mais absoluta subserviência diante de uma fortuna ou de um poder maior, ou de funções mais altas; ao lado de uma negação absurda da autoridade — um ridículo autoritarismo no cargo mais insignificante alternando com a mais leviana desestima pela justiça e pela ordem, até as mais incríveis audácias — uma refinada hipocrisia, desplante para invocar, em momento oportuno, o império da lei ; a violência arrogante, e o mais baixo renunciamento pessoal; a filáucia destemperada, e a indolência vencida, a desídia moral do bárbaro; a idolatria das grandezas e o desprezo da humildade; e tantas outras virtudes, de que às vezes nem nos apercebemos.

O regime servil equivaleu perfeitamente, nos seus efeitos, aos antigos despotismos. Dele, como destes, não podiam deixar de sair: um homem que sempre mandou, e outro que sempre obedeceu; cuja sorte era morrer no trabalho, e outro que tinha direito a gozar voluptuosamente a vida. à custa do seu semelhante. Um e outro vieram da escravidão, e ficaram como taras no sangue nacional.



5 - E não se pense que as altas classes ficavam imunes dessa herança.

Foram exatamente as famílias ricas que recolheram logo, para todos os serviços domésticos, o homem de cor. Era muito raro encontrar casas onde houvesse fâmulos que não fossem negros; pois, os brancos, a isso se recusavam como a uma degradação. Não havia serviço, mister, e até festa de lar, onde a criadagem negra não entrasse. Mesmo fora de casa, indo à igreja, ou viajando, a família não prescindia da sua escolta de serviçais.

A ação do escravo não se limitava, aliás, a exercer-se nesse trato íntimo e contínuo com a família do senhor.

Um veículo mais franco do sangue africano foi a intimidade em que a mulher negra ficou, desde logo, com a parte da família branca exatamente mais suscetível de ser influenciada: os filhos do senhor, desde o nascimento até a puerícia, eram entregues à ama e à governante. Em seguida à ama de leite; faziam o resto a ama seca e o pajem.

Quem quiser hoje, no entanto, saber onde é que subsiste melhor a índole do negro sobrevivente da escravidão, não há de ficar nos grandes centros urbanos; mas há de visitar as paragens mais escusas das cidades, os pequenos povoados nas vizinhanças das praças, os sítios onde, depois da abolição, se foi refugiar uma grande parte da população negra.

Se no próprio caráter nacional é incontestável a influência do escravo, em tudo o mais — nas indústrias, nas artes, nos ofícios, nas festas, na língua — se encontram vestígios bem vivos da ação do africano.



6 - Estudando-se o negro sob o ponto de vista do concurso que prestou à raça branca na formação da nacionalidade, tem-se de reconhecer que ele representa em toda a nossa história um contingente de primeira ordem.

Aguentou ele aqui, durante mais de três séculos, todo o peso do trabalho de que viveu a colônia. E isso não impediu que em toda parte facilitasse o estabelecimento dos portugueses, guardando-lhes as povoações e as fazendas contra os índios.

Passou em seguida a defender a terra contra estrangeiros. Em todos os movimentos de repulsa a corsários e aventureiros e a cobiça de outros governos, figurou o negro com uma coragem e galhardia que o igualaram aos grandes heróis das duas outras raças. É mais do que provável que, sem o negro e o índio, não teria o português mantido aqui o seu domínio.

Mas é como agente da nossa riqueza que teve o africano, na América, o seu papel mais considerável. Sob este ponto de vista sobreleva ele indiscutivelmente o elemento indígena. "Os escravos, dizia Antonil, há mais de dois séculos — são as mãos e os pés do senhor de engenho; porque sem eles, no Brasil, não é possível fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter engenho corrente". Sem eles coisa alguma se fazia que dependesse de esforço físico e causasse grandes fadigas.

Não lhes coube, pois, apenas o trabalho dos campos e dos engenhos: além das grandes culturas que só eles fizeram, em todo género de trabalhos figuram como quase únicos braços de que dependia a nossa produção geral.

Eis aí como se destaca, em pleno relevo, a dupla grande função da raça negra nesta parte da América: ela criou a economia da colônia, sem a qual não se teria fixado aqui o elemento dirigente; e guardou o território, sem o qual não seria o Brasil o que é hoje.

É evidente que sem a unidade moral em que ficaram as três raças; sem aquele profundo sentimento da pátria em que elas se identificaram nas horas do perigo; e sobretudo, sem uma forte capacidade defensiva é evidente que não teríamos conseguido trazer íntegro e indivisível, até à sua plena eclosão política, este imenso país.



7 - Há ainda uma prova que não se há de esquecer quando se quiser julgar com justiça a natureza moral do africano: é o modo como ele protestou contra a escravidão.

Sob este ponto de vista, a sorte do negro é muito mais dolorosa que a do próprio índio. Este ainda estava na sua terra, e tinha por si, não só a soberania do sertão, como o patrocínio do missionário, a voz da humanidade, e até a palavra de ordem dos governos.

O negro não teve por si misericórdia de nenhum coração. No seu exílio, nunca teve uma alma a cuja piedade pudesse recorrer nas suas amarguras. Todo aquele mundo, surdo e fechado, tinha para ele a mesma repulsa que se tem pelo simples animal.

Pois assim mesmo, vencido e degradado, teve ainda o negro alma bastante para dar testemunho da sua indignação contra a força. Desde o primeiro instante do castigo não soube dissimular o horror da sua imensa miséria. As fieiras de negros que saíam do interior da África chegavam aos entrepostos da costa sempre desfalcadas pelo suicídio. Durante a espera dos brigues, muitos morriam de tristeza ou de cólera. Em viagem, no porão do navio, uns enlouquecem, outros deixam-se morrer de fome e de sede.

À terra desconhecida chegam todos como idiotas.

E então começa o longo noviciado de dor que a raça teve de fazer aqui para chegar à história.

Primeiro resignam-se espantosamente com a sina.

Depois, vai-se erguendo, hirto e sinistro, a rebater o crime pelo crime. Não haverá talvez um recanto do país onde não subsista memória de alguma tragédia.

Travara-se a luta. Como o senhor era sempre o mais forte, o negro, ou capitulava agravando o suplício, ou fugia para as florestas. Era a fase dos quilombos.

Abre-se depois, já nos nossos dias, a última fase. O negro concilia-se com o destino para vencê-lo.

E é então que ele vai ver como afinal o branco estava, de alma aberta, a seu lado. A causa do negro tornou-se causa de toda a nação.

A história, em suma, é feita assim mesmo de tais contrastes. O que andamos fazendo é isso mesmo: andamos reduzindo cada vez mais o erro e a injustiça.


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Imagens:
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