
Extraído do livro "História do Brasil", publicado no início do século XX. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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1 - É a revolução de 1820, em Portugal, que vem criar para a corte emperrada de
D. João VI embaraços extremos, cuja solução já não seria possível sem graves
riscos para a dinastia. Veio ela por, aqui, o monarca na dolorosa contingência
— ou de voltar para Lisboa, perdendo o Brasil, ou de permanecer no Rio de
Janeiro, perdendo Portugal.
O que se passara lá no velho
reino desde a saída da corte era realmente, ou para matar de uma vez o espírito
da raça, ou para revigorar o sentimento da nacionalidade tão batida de
infortúnios. Assim que em grande parte por esforço seu, se viu o povo português
desafogado das tropas do Imperador, passou a ficar sob a tutela dos ingleses.
Chegou o governo do Rio a modificar a composição da Regência que lá deixara em
1807, só para no respectivo conselho meter um representante da Inglaterra! Esse
representante, que foi o general Wellesley (o futuro duque de Wellington),
tinha também o comando de todas as forças de terra, ficando as de mar
subordinadas ao vice-almirante Berkeley.
Portugal não era mais nação
soberana.

E quando se encontravam com o
povo português, então é que sabiam ser melindrosos e truculentos aqueles
heroicos fidalgos.
De sorte que o valor daquela
gente afrontando os franceses nem ao menos lhe valia a fortuna de esquecer
aqueles inimigos que tinha sabido repelir... Não eram melhores os que ficaram
dominando a terra desventurada.
É realmente de amarguras a
fase que às agressões francesas se segue para Portugal. Estavam empobrecidas as
populações. Os invasores tinham talado o país, e destruído todos os elementos
da sua vida econômica. Os que não podiam emigrar expunham-se lá a toda sorte de
misérias.
A tal Regência, que só
obedecia aos ingleses, era mais absoluta que o rei, e de um tirania
infinitamente mais feroz.
É desse estado de coisas que
vai sair a alma da revolução de 1820.

Por meados de 1817, um evento
estrondoso e inesperado aumentava os sustos em que andava já a população: a
Regência faz publicar (na Gazeta de
Lisboa) que o marechal Beresford (o novo chefe do exército e senhor supremo
do reino) descobrira uma conjuração tramada contra as instituições. E não
demorou que, sem que nada se soubesse do respectivo processo, assistisse
Lisboa, estarrecida de pasmo e terror, à execução de grande número de militares
(entre os quais o tenente-general Gomes Freire de Andrada).
Advertido por aquilo a que a insânia
da Regência dera o aspecto de grande atentado contra a instituições, cuidou o
governo, tanto lá como aqui, de redobrar a vigilância, e perseguir "todos
os ímpios", fechando à alma do povo todas as válvulas, fazendo pesar sobre
todo mundo o rigor da majestade alarmada e inexorável, oprimindo, vexando a
torto e a direito, como quem no momento do perigo, só pensa na salvação.
Mostravam-se assim os homens
da Regência, como os conselheiros do rei, muito persuadidos ainda de que é por
estultas medidas de força que se hão de combater as tendências vitoriosas do
tempo. Nem ao menos aprendiam, além das grandes lições tão flagrantes ainda em
toda a Europa, aqueles exemplos, ali bem vizinhos, do espírito liberal na
Espanha, a rebater, com a insubmissão e a revolta os processos do impenitente
Fernando VII, até alcançar contra eles o completo triunfo.
A revolução espanhola
produzira em todo o continente a maior impressão. Alarmaram-se as casas
reinantes, ainda não bem serenadas daqueles tufões que as haviam sacudido; e
vendo agoiros em toda parte onde uma voz de povo se erguia, foram-se conjurando
contra as injunções da história.
Em Portugal, onde era mais
fácil o contágio, sentiram-se mais diretamente os perigos. Inquietou-se a tal
ponto a Regência que logo clamou apavorada para Londres, antecipando-se a pedir
socorro aos ingleses para o caso de alguma complicação emergente.
Rebateu-lhe impiedoso o gabinete
inglês, que a Inglaterra "não se intrometeria nos negócios internos da
península, e que a sua garantia de defender Portugal se restringia unicamente
ao caso de agressão estrangeira"...
Faz, então, a Regência, nas
suas aflições, partir para o Rio o marechal Beresford, a entender-se com o rei
sobre os sinais que andavam lá nos ares...
3 - Por mais obcecados que
andassem no seu ofício aqueles homens de D. João VI, não é provável que
recebessem com perfeita indiferença as revelações com que os surpreende o
emissário da Regência.
E no entanto, vivia aquela
corte fechada tão por longe do seu tempo que, à vista do que se receia lá na
Europa, a medida mais sábia que lhe ocorre é a de nomear Beresford locotenente
do rei.
Mal havia, porém, o marechal
inglês partido de volta para a Europa, quando chega ao Rio a notícia da
revolução do Porto.
Passado o susto do primeiro
instante, começam a desvairar os conselheiros do rei sem saber o que lhe haviam
de aconselhar. Tipos houve ainda que, confiantes no terror dos outros,
ostentaram indignações, atribuindo à inépcia e desídia da Regência a culpa do
que se atreviam a fazer os liberais. Tomás Antônio, na sua cândida
inconsciência daquele momento, entendia que "só um caminho tinha o governo
de El-Rei a seguir" — que era o de enérgica reação contra o que se fazia
lá no reino.
Isso não impediu que o governo
mesmo se dirigisse à nova Regência, declarando-lhe que "aceitava" a
convocação das Cortes segundo os antigos usos; e que o próprio rei, ou um dos
príncipes seus filhos, tornaria à antiga metrópole, assim que se soubesse quais
eram os intuitos das ditas Cortes...
A assembleia revolucionária,
logo que se reuniu, disse claro o que ia fazer. Em todos os domínios
portugueses foi a revolução recebida com verdadeiro entusiasmo. No Brasil, em
quase todas as províncias, organizaram-se juntas provisórias obedientes à
Regência: dizendo-se assim, portanto, a D. João, que acima da sua autoridade já
uma outra se reconhecia.
Votaram as Cortes as bases da
Constituição que se ia promulgar para a monarquia: e em toda parte foram
juradas essas bases.
4 - A franca adesão da Bahia à
causa constitucional vem lançar a corte de D. João nos últimos apuros. Ou
toma-se alguma providência em relação ao que se opera no reino, ou tudo se vai
fazer em Lisboa como se não houvesse mais rei. Não se sabe até onde poderá ir o
espírito novo que domina incontrastável nas Cortes.
No dia 24 de fevereiro (1821)
publicaram-se dois decretos: um, ordenando que D. Pedro seguisse para Lisboa;
outro, convocando para se reunirem no Rio de Janeiro procuradores de câmaras
tanto do Brasil como das Ilhas e demais domínios portugueses. Não é fácil
atinar com o intuito de semelhante providência, a não se admitir a veleidade de
formar um contrapeso aos elementos que estão agindo lá na península. Parece que
andava aí a ação de Tomás Antônio.
Mas em toda parte foi
repulsado o segundo daqueles decretos.
E começa para o pobre monarca,
entregue aos destemperos dos seus áulicos, a fase de amargura que precede à
saída da corte para a Europa.
A efervescência dos ânimos no
Rio ia "atingindo o paroxismo". As próprias tropas da guarnição já
não disfarçam as suas tendências. Todo mundo queria aderir às Cortes.
Pela manhã de 26 de fevereiro,
foram os vários corpos e batalhões reunindo-se na praça do Rocio. A essas
forças juntou-se incontinenti o povo em multidões, no mais vivo assanho.
D. João, assustado (como
andava sempre agora), ordena a D. Pedro que vá saber o que é que deseja o povo
unido às tropas.
Chegou D. Pedro ao campo do
Rocio; e, de acordo com o alvitre dos áulicos, quis explicar a convocação dos
procuradores de câmaras em Junta de Cortes... Mas o advogado Macamboa
levantou-se diante do príncipe, e declarou-lhe, "em voz pausada e firme,
que o povo e a tropa reclamavam: 1°, que fosse imediatamente reconhecida e
jurada, sem restrições, a Constituição que as Cortes de Lisboa promulgassem; 2°,
que se destituíssem desde logo os ministros e demais funcionários que iludiam o
rei e a nação, e se nomeassem para os cargos públicos homens mais
avisados". Levou Macamboa a audácia "até apresentar ao príncipe uma
lista contendo os nomes das pessoas que deviam ser nomeadas '.

É claro que não havia lugar
para discutir mais nada: aquela mísera soberania está ali vencida e humilhada
pela outra que se levanta. D. João, muito aflito, entrega a sua causa ao filho,
autorizando-o a tudo fazer, contanto que o salve naquele transe.
O próprio D. Pedro escreve e
D. João assina um decreto nos termos indicados pelo povo: e o príncipe volve ao
campo do Rocio. Ali, no teatro São João, encontra já o Senado da Câmara, o
bispo, os novos ministros, que haviam sido já nomeados, e outras autoridades.
Indo à varanda do teatro, dali
dirigiu-se ele ao povo, "proclamando em altas vozes o sistema
constitucional, e asseverando que el-rei de bom grado anuía a todos os desejos
da nação, e o encarregara de, em seu nome jurar desde já a Constituição tal qual se fizer em Portugal pelas Cortes".
Anunciou em seguida que el-rei
se dignara de aceder ainda aos reclamos que se lhe faziam quanto aos ministros
e demais funcionários, demitindo os que não mereciam a confiança pública, e
nomeando os que eram propostos pelo povo e pelas tropas.
Aplaudido com delírio, e
levado como em triunfo até à quinta, deu ali D. Pedro conta a el-rei de como se
desempenhara daquela tarefa; e fazendo sentir àquele simulacro de majestade
quanto estavam povo e tropa satisfeitos com a atitude do soberano, induziu-o,
ainda, a aproveitar o ensejo de recomendar-se ao amor e gratidão dos seus
súditos apresentando-se-lhes em pessoa na cidade, como em perfeita comunhão com
eles quanto à nova ordem de coisas que se instala.
Revestiu-se D. João de coragem
para aquela função heroica. No momento em que chegou ao Rocio, e avistou a
multidão atirando-se como ondas sobre a carruagem, aos gritos de alegria,
pensou, o pobre monarca, que era chegado o seu último dia de vida. Nos momentos
em que voltava a si daqueles espasmos, caía em pranto e dizia em voz
entrecortada de soluços — "Oh meu Deus! porque não me disseram há mais
tempo que o povo seria tão feliz com essa
Constituição! Se o soubesse, não o teria feito esperar tanto!" Mais
morto que vivo, deixou-se ainda conduzir a uma sala do paço; e ali, chorando
como uma criança, e impelido pelo filho, balbuciou de uma janela palavras quase
inarticuladas de protestos de adesão aos últimos acontecimentos.

Trata-se agora de saber o que
é que se faz em relação aos reclamos que vêm de Lisboa. Resolve o conselho do
rei que volte para a Europa toda a Família Real. Mas contra isso se alarma o
partido brasileiro, exigindo que fique no Brasil o Príncipe D. Pedro. Este
próprio age fortemente sobre o ânimo do pai, mostrando-lhe como a possessão
americana estará perdida para a monarquia, se aqui não permanecer alguém capaz
de conter o espírito de independência que se desenvolve, e agita o país
inteiro.
Cedera D. João: e por decreto
de 7 de março, declara-se a nova resolução de volver a corte para a
"antiga sede e berço original da monarquia", mas deixando no Brasil
como locotenente do rei o Príncipe Real, até que se promulgue a Constituição
que está sendo elaborada.
Mas, tudo continua a ser
incerteza para os homens daquela corte sucumbida. — Que fará D. Pedro no Rio de
Janeiro com o seu ânimo inconstante e meio destemperado? — Como será D. João
recebido lá na Europa?
Essas dúvidas retardam a
partida da Família Real a aumentam-lhe os embaraços. Com isso impacientam-se
principalmente os brasileiros que receiam venha o rei a voltar dessa resolução,
que lhes corresponde tão bem aos anseios. Chegou-se mesmo, entre os partidários
da independência, a cogitar de meios de fazer a corte embarcar de uma vez.
Nem havia necessidade de tanta
aflição: bastava que os acontecimentos seguissem a sua lógica.
Fazia D. João muito empenho em
que fossem, com a Família Real para Lisboa, o maior número possível de
representantes do Rio e das vizinhas províncias às Cortes. Via talvez nisso uma
segurança de que o rei estava perfeitamente "conciliado" com a nova
ordem reinante em Lisboa.
7 - Instalou-se no dia 20 de
abril a assembleia que devia eleger os representantes do Rio de Janeiro. No dia
seguinte deu-se conta, aos eleitores, das instruções que iam regular o
exercício de Regência. Os eleitores, desconfiados, votaram que de preferência,
se pedisse ao rei que adotasse provisoriamente a Constituição que se havia
restaurado em Espanha. Pediram que se deixasse também um Conselho de Estado
para o Príncipe.
Como se se arrogasse já
poderes de verdadeira Convenção, expediu a assembleia uma deputação encarregada
de apresentar ao rei esse reclamo, e de exigir ainda que voltassem para terra
os cofres do erário que se dizia estarem a bordo prestes a partir com a Família
Real.
Mas em São Cristóvão, essa, e
principalmente as outras imposições, produziram surda, mas profunda indignação;
e tratou-se de castigar as insolências daquela demagogia destemperada.
Mandou-se então atacar de
surpresa e dissolver a assembleia que se desmandara. Houve confusão medonha na
sala onde estavam os eleitores. Deram-se muitas mortes e ferimentos. E o
edifício foi fechado.
No dia seguinte assina D. João
novo decreto declarando sem efeito o da véspera que mandava vigorar a
Constituição de Espanha...
Agora, estava para a corte
tudo acabado no Brasil.
No dia 24 de abril, ao cair da
noite, embarca o rei, achando-se já a bordo toda a gente que devia acompanhá-lo
naquela retirada que parecia uma nova transmigração. Cerca de quatro mil
pessoas saíram então do Rio.
O único que sentiu deixar o
Brasil foi o desventurado monarca. Banhado em lágrimas, "balbuciando
frases desconexas e cortadas de soluços", saíra ele da quinta. Caía às
vezes numa espécie de delíquio... e de repente rompia em vozes e gestos
singulares, como se estivesse em sonho atribulado.
No dia 26, pela manhã,
levantou ferros a frota e saiu à barra.
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