10/31/2018

A “Cruz de Ouro” (Conto), de Monteiro Lobato




A “Cruz de Ouro”

— Entre , quem é.

— O Feroz não está solto?

— Viva, compadre! Suba!...

Um barbaças de óculos e cachenê de lã ringiu o portão de ferro e galgou a passos trôpegos a escadinha que levava ao alpendre de ipomeias. Lá o aguardava, de cara amável, um segundo barbaças, o coronel Liberato, vestido duma farda consentânea com a sua belicosidade: chambre de palha de seda, chinelo cara de gato e gorro de veludo negro com cercadura de ponto russo.

O que subia também era coronel. Coronel Antônio Leão Carneiro Lobo de Souza Guerra, ou simplesmente Nhô Gué. Chegaram ambos àquele alto posto militar pela razão estratégica de colherem para mais de dez mil arrobas de café. Se em vez de dez colhessem apenas cinco mil, seriam majores ou capitães. Este inteligentíssimo critério econômico do nosso militarismo é garantia de paz muito mais segura do que a Liga das Nações.

— Que milagre foi esse? — disse o de cima, abraçando o velho amigo.

— Quem é vivo sempre aparece e eu ainda não morri, apesar desta sufocação que me escangalha o peito.

— Você é o peito, eu a enxaqueca. Não valemos mais nada, compadre. Mas como vão todos? A comadre?

— Boa, todos bons, isto é, a Chiquinha... Ui!

— A cutucada?

— Não, este ventinho encanado...

— Pois vamos entrar.

E os dois urumbevas penetraram na sala de fora.

A sala de fora do coronel Liberato merece relatório para que a posteridade se deleite em conhecer como era uma sala de visitas de coronel brasileiro no século XX. Cadeiras austríacas, sofá e cadeiras de balanço, tudo enfeitado com os crochezinhos das filhas. Mesinha central de cipó com embrechados, obra de um “curioso” do lugar. Duas almofadas no sofá, uma tendo um gato estufado, de lã, com olhos de vidro; outra, um papagaio de miçanga verde — maravilhas feitas por certa afilhada prendadíssima. Dois aparadores com vasos para flores artificiais, figurinhas de louça — “bibelotes”, como lá dizia o dono, e várias curiosidades naturais — caramujos, conchas, um ninho de joão-de-barro, um mico seco e duas famílias de içás vestidos. Nas paredes, espelho oval, dois retratos grandes a carvão e fotografias em porta-cartões de talagarça, bordados pelas meninas. Pendurado do lampião belga suspenso ao teto, grande abacaxi de papel de seda. Piano de armário. Tapete com grande onça. Que mais? Iam-me esquecendo as duas “escarradeiras de sobrado”, com caraças de leões... Viva o naturalismo!

Entrados que foram, os dois coronéis refestelaram-se nas cadeiras de balanço, o do “ui!” com cautelas, gemidos e caretas ao dobrar as juntas. Liberato puxou o cigarro de palha e, enquanto afrouxava o fumo na palma da mão, reatou a conversa.

— Ahn! Com que então a dona Chiquinha...

— Compadre, entre nós não há segredos; a doença dela são amores. Quer casar, ora aí tem.

— Não vejo mal nisso. Está na idade. Só se...

— Mas adivinhe lá com quem a tolinha emberrinchou de casar?

— ?

— Com o José de Paula!

— O filho da Nhá Vé?

— Esse mesmo. Um moço sem vintém de seu, gente do Chicão de Paula...

Sair do nicho de filha única, onde vive como uma Nossa Senhorinha, para ligar-se a um lorpa de marido, ser criada, escrava dele! Se pudéssemos, nós que temos experiência da vida, abrir os olhos dessas mariposinhas tontas... Mas é inútil. Encasqueta-se-lhes na cabeça que o amor, o amoor, o amooor é tudo na vida, e adeus. O que nos vale é que o rapaz é pobre mas direitinho — quanto ao moral.

Liberato interveio com cara purgativa.

— Homem, não sei. Não é por falar, mas não me cheira bem aquele sujeitinho. Você o acha moralizado. Será. Mas a família dele é droga e a prudência manda atentar não só nas qualidades do galho como também nas do tronco. Olhe o que sucedeu outro dia com o primo dele, o Chiquinho...

— Não soube de nada, compadre. Que foi?

— Você anda no mundo da lua, homem! Refiro-me ao escândalo da Recreativa.

À palavra “escândalo” Nhô Gué esqueceu o reumatismo e arrastou a cadeira para mais perto.

— Escândalo?

O coronel Liberato, gozoso de contar uma novidade, limpou o pigarro e disse:

— Foi no último domingo, na festa anual da Recreativa. Discursos, recitativos e uma peça — aquela endrômina de sempre. A sociedade mandou convite a toda gente, aos jornais, aos grêmios e dentre estes à Camélia Branca, da qual é secretário o Chiquinho de Paula, primo lá do teu. Por sinal que para a Camélia foi um camarote, o 7, justamente aquele donde assistimos ao Poder do ouro, lembra-se?

— Se me lembro! Pois uma representação daquela é lá de esquecer? Montepin! e inda mais pelo Furtado Coelho! Noitão! Hoje é que não há mais disso. São umas comediazinhas indecentes, e cinemas, e drogas.

— A Lucinda Simões, hein? Mulherão!

Este “mulherão” foi dito com um arregalar de olho em que toda a concupiscência retrospectiva se espojava arreitada.

— Nem fale! — disse o outro num tom de inexprimível saudade.

— Pois muito bem: o teatro encheu-se. Estava lá o coronel Totó Fernandes com a família; a família do doutor Isidoro; o major Gonçalves com a mulher — e por falar, como está acabada a dona Elisa!

— É verdade! Quem a viu e quem a vê! A Elisinha do Rincão, como lhe chamávamos, menina sapeca, da pá-virada, semostradeira até ali... Os anos, compadre, os anos...

— Só não vi lá a gente da oposição. Isso, nenhum, nem o Zé Penetra, aquele caradura.

Riram ambos, gostosamente, à lembrança da ausência dos adversários. (Esqueceu-me dizer que estes coronéis faziam parte do diretório situacionista, colunas fortíssimas que eram da força governamental no distrito.)

— Era ali entre nove e dez — continuou Liberato —, quando, de repente, adivinhe, se for capaz, compadre, quem surge pelo camarote número 7 adentro.

Nhô Gué aparvalhou a cara com ar de quem não é capaz.

— A “Cruz de Ouro”! — concluiu o Liberato, de pé, chupando uma, duas, três baforadas do cigarro apagado, num triunfo.

Nhô Gué pasmou.

— Não me diga!...

— Pois é o que digo: a “Cruz de Ouro”.

— O rebuliço foi grande. Toda gente se pôs a murmurar, olhando uns para os outros. A família do Totó quis retirar-se. A mulher do Gonçalves virou bicha, abanava-se com frenesi, indignada com a pouca-vergonha. O doutor Isidoro, presidente da Recreativa, que no palco já se preparava para deitar o verbo, espia pelo buraco do pano, percebe o negócio, fica possesso e berra lá dentro, de ouvir-se cá na plateia, que processava, que partia a cara, que mais isto e mais aquilo — um fim do mundo! Houve pedidos de informação à bilheteria. Era preciso desagravar a moralidade pública ofendida com a execrável presença da “coisa à toa” em festa puramente familiar. Afinal a polícia interveio. O delegado foi com a descarada e com muito bons modos fê-la sair. Só então, onze horas, começou o espetáculo. No primeiro intervalo, porém, soube-se tudo: o Chiquinho de Paula, secretário da Camélia, recebera o convite para a festa, mas em vez de organizar uma comissão que dignamente representasse o grêmio, pega do camarote e o dá à “jereba”, de quem é...

Aqui o coronel Liberato, para remate da frase, fez uma cara de supremo nojo:

—... o queridinho!

Voltando em seguida à cara anterior, disse, grave e pundonorosamente, bamboleando a cabeça:

— Veja você que refinadíssimo tranca! E concluiu com desalentada severidade:

— E é com o primo de semelhante crápula que dona Chiquinha quer casar-se!

Na noite desse dia, altas horas, Liberato deixou em casa a enxaqueca e foi sorrateiramente bater à porta da “Cruz de Ouro”. Apareceu a criada. Confabularam baixinho.

— Não pode ser — disse a Libéria —, está cá seu coronel Nhô Gué. Liberato fez uma careta.

— E amanhã? — perguntou.

— Amanhã é a vez do doutor Isidoro.

— E depois de amanhã?

— Quarta-feira? Deixe ver — fez cálculos nos dedos e disse: — Quarta-feira é o dia de seu Gonçalves.

— E quinta?

— Pois não sabe que as quintas são de seu Totó?

Liberato não desanimou.

— E domingo?

A Libéria despejou uma gargalhada sonorosa.

— Os “home”! Pois então sinhazinha não há de ter um descansinho na “somana”?

E fechou-lhe a porta na cara.


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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)

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