
Elsa entrou da rua repuxando com o
dedo a gola da blusa de seda carmesim, para refrescar com abanos frenéticos de leque
o pescoço afogueado. Falou da procissão, que estivera linda — povaréu, muitas palmas.
Disse que nunca vira tanta gente na igreja; que nem se podia respirar, que estava
assim! (e apinhava os dedos). Que a filha de nhá Vica fizera um berreiro dos demônios;
que não sabe por que levam crianças à igreja. Depois interpelou o primo:
— Por que não foi, Lauro?
— Eu... — ganiu o rapaz derreado na
cadeira de balanço.
Não terminou. Entrava dos fundos dona
Didi. Elsa, sua filha casada, beijou-lhe a mão, abraçou-a.
— Por que não foi, mamãe, aos cavalinhos,
ontem? Esperei-a lá. Não imagina o que perdeu! A companhia é ótima.
— Não pude, passei mal o dia — dor
de cabeça, visitas...
— Pois perdeu. Há lá um menino que
é um prodígio — pouco maior que o Juquinha, completamente desengonçado. Faz trabalhos
pasmosos, que contados ninguém acredita. Pega nas duas perninhas, cruza-as na cabeça,
aqui na nuca, e com as mãos pula como um sapo. Depois desengonça a cabeça e gira
com ela como se a tivesse presa por um barbante. Uma coisa extraordinária! O sujeito
do trapézio não trabalha mal. Achei muita graça no Juquinha — era a primeira vez
que ele ia ao circo: “De que é que você gostou mais, meu filho?”—, perguntei.
“Gostei mais do homem que se balança
na rede e cai na peneira.” A rede é o trapézio e a peneira é a rede de malhas...
Todos riram; a vovó, com delícias;
Lauro, complacente — e Juquinha, que estava à janela cuspilhando nos transeuntes,
recebeu olhares cheios de amorosa admiração.
Elsa parolou inda um bocado. Depois,
voltando-se para o primo:
— Que horas são, Lauro?
— Sete e meia — expectorou o moço,
com um pigarro que foi cuspir à janela.
— Quase horas!... Começa às oito.
Não vai, mamãe? Vá, a senhora precisa de distrações. É por causa desse aferrolhamento
em casa que anda assim magra e amarela. Saia, espaneje-se!
Nisto espocaram foguetes. Elsa contou-os,
de dedo para o ar.
— Três! É o sinal. E você, Lauro,
vai ou...
— Pode ser que sim, pode ser que não
— gemeu o filósofo.
— Diabo de rapaz este! “Pode ser!...”
Ó velho de cem anos! Ó caramujo! Desate isso, vá!
— Fazer? Ver trapézios? Meninos desossados?
Palhaços?... Iria, se não houvesse lá nenhuma dessas coisas, nem a moça que corre
no cavalo, nem o homem do arame, nem...
— Mas que é então que havia de haver?
— Nada. Gente nas prateleiras, cochilando,
e no picadeiro um gato morto... a cheirar.
— Só? Ai, que já é mania de originalidade!
Pois vou eu. Não tanto pelos trabalhos como pela troça, o farrancho. Bole-se com
um, atira-se uma casca de pinhão noutro, e assim corre a noite alegremente. E quem
não fizer isto neste cinismo de terra morre encarangado, cria orelha-de-pau.
Ajeitou sobre o penteado o fichu de
sedinha vermelha, deu diante do espelho uns retoques à cara e, com um “Até logo,
corujas!”, saiu com o Juquinha pela mão.
Dona Didi recolheu.
Lauro ficou outra vez só na saleta,
uma perna sobre o braço da cadeira, fumando pensativamente. Zoava-lhe ao ouvido
a parolice trêfega da prima. Consultou o relógio: quase oito! Ergueu-se, tomou do
chapéu e saiu.
Noite linda. No alto, a lua cheia
apascentando um rebanho de nuvenzinhas acarneiradas.
Lauro deambulou a esmo, de mãos cruzadas
às costas, batendo o calcanhar com o ponteiro da bengala. Famílias deslizavam pelas
ruas, de rumo ao circo; deslizavam como sombras, à luz baça dos lampiões de querosene.
Magotes de pretas passavam, taralhando, num rufo de saias engomadas. Iam com pressa,
numa açodada ânsia pelas molecagens do palhaço.
E Lauro rememorou os tempos em que
também ele se tomava daquela sofreguidão, nos dias magníficos em que o pai anunciava
ao jantar: “Aprontem - se que hoje vamos aos cavalinhos”. Com longa antecedência
já ele e os irmãos vestiam a roupa nova, punham o gorro de marinheiro e de bengalinha
de junco na mão sentavam-se à porta da rua à espera do anoitecer.
Lauro reviu nitidamente o Laurinho
de outrora, trotando para o circo à frente do farrancho, e depois sentado na terceira
fila das arquibancadas, com olhadelas gulosas para a última, rente ao pano, onde
se repimpavam os moleques. Lá é que era a pândega!
Soava a sineta. O povo pedia o “paiaço”.
Vinha um “casaca de ferro” espevitar os lampiões. Grosso berreiro: “Arara! Arara!
Ó caradura!”. Impassível, o homem graduava a luz dos belgas, um por um, sem pressa;
depois pegava da corda e içava aquela coroa de lampiões acesos, aos goles, até meio
mastro.
Rompia a música. Bem maçante a música.
Dava sono...
Afinal, começava a função e o palhaço
entrava como um bólide, rolando às cambalhotas. Tão engraçado!... O relógio dos
fundilhos do calção marcava meio-dia. Na cabeça, inclinado para a orelha, o chapelinho
de funil, microscópico. Bastava ver o palhaço e Lauro desandava a espremer risos
sem fim. A cara caiada, as enormes sobrancelhas de zarcão, os modos, a roupa, tinha
tudo tanta graça...
Mas o melhor eram as micagens e as
histórias. “Vem cá, seu cara de burro: quem de vinte tira dois quanto fica?” O “casaca
de ferro” respondia: “Dezoito, naturalmente”. “Ó asno! Fica zero!” O povo estourava
de riso — e Lauro com ele...
Vinham depois os trabalhos. Não gostava.
O arame, que caceteação! O trapézio, maçante... Mas gostava dos cavalos porque com
eles reaparecia o palhaço e mais o Tony.
Oh, como era bom quando havia Tony
! A gente estava distraída e de repente plaf!
Que foi? Foi o Tony que caiu! E cada tombo...
No melhor da festa aparecia um idiota
com uma tabuleta: INTERVALO. Era um desmancha-prazeres e por isso objeto de ódio.
Todos saíam. Ficava só a mulherada. Lauro cochilava então e às vezes dormia recostado
na tábua dura. Ao termo dum quarto de hora voltavam todos, e o papai trazia embrulhos
de doces, empadas, pastéis.
A pantomima! Era o melhor. Os salteadores da Calábria, A estátua de carne...
E a Maria borralheira? Vira-a duas vezes, e nunca havia de esquecer aquele
desfile de figurões históricos — Garibaldi de muletas, o general Deodoro, Napoleão...
Suas recordações estavam em Napoleão,
quando Lauro chegou à praça onde zumbia o circo. Reviu a clássica barraca iluminada
por dentro, deixando ver, desenhada no pano, a silhueta dos espectadores repimpados
nos bancos de cima. Em redor, tabuleiros com lanternas dúbias a alumiarem as cocadinhas
queimadas, os pés de moleque, os bons-bocados; e mulatas gordas ao pé, vendendo;
e baús com pastéis, cestas de amendoim torrado, balaios de pinhão cozido. E, grulhantes
em torno, os pés-rapados de bolso vazio, que namoram as cocadas, engolindo em seco,
e admiram com respeito os “peitudos” que chegam à bilheteria e malham na tábua um
punhado de níqueis, pedindo com entono:
— Uma geral!
O encanto de tudo aquilo, porém, estava
morto, tanto é certo que a beleza das coisas não reside nelas senão na gente.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
gostaria de saber a opinião do conto Cavalinhos de Monteiro Lobato?? Gostaria de entender mais sobre, alguém pode me ajudar?
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