Fui um dia a Itaoca levado pelas simples
indicações do sujeito que me alugou a cavalgadura.
— Não tem errada, é ir andando. Em
caso de dúvida, pegue a trilha dos carros que vai certo.
Assim fiz e lá cheguei sem novidade.
No dia da volta, porém, choveu à noite
como só chove por aqueles socavões, e na primeira encruzilhada parei desnorteado.
Como o enxurro houvesse diluído todos os sulcos da carraria, ali fiquei alguns minutos
feito o asno de Buridan, à espera dalgum passante que me abrisse os olhos. Não apareceu
viva alma, e minha impaciência empurrou-me ao acaso por uma das pernas do V embaraçador.
Caminhei cerca de hora na dúvida, até que a vista duma fazenda desconhecida me deu
a certeza do transvio.
Resolvi portar. Abeiro-me do portão
e grito o “ó de casa”.
Abre-mo um negro velho, ocupado em
abanar feijão no terreiro.
— O patrãozinho é lá em cima, na casa
grande.
Dirijo-me para lá, depois de entregue
o cavalo, e subo a escadaria de pedra fronteiriça ao casarão senhorial.
Um grupo de crianças brincava por
ali, em torno duma fogueirinha de cavacos fumarentos.
— Fumaça para lá, santinha para cá!
Ao avistarem-me calaram-se e fugiram,
com exceção da mais taluda, que permaneceu no lugar, esfregando os olhos avermelhados
e lacrimosos do fumo.
— Papai está?
Estava e ia chamá-lo, respondeu, esgueirando-se
pela casa adentro.
As outras, com o dedinho na boca,
vi-as a me espiarem da porta, à qual logo assomou esbelta menina aí entre catorze
e dezesseis anos, de avental azul e corada como quem esteve a lidar em forno.
— Faça o favor de entrar! — disse-me
com linda voz, sorridente, de passo que seus olhos vivos todo me examinavam de alto
a baixo, num relance. — Sente-se e espere um bocadinho.
— A menina é filha do...
— Não, senhor. Prima. Mas moro aqui
desde que morreram meus pais.
— Tão nova e já órfã!...
— De pai e mãe. Tinha seis anos quando
os perdi na febre amarela de Campinas. O primo trouxe-me de lá e...
Aqui rangeu a porta e enquadrou-se
nela o dono da casa. Reconhecemo-nos incontinenti, com igual espanto.
— Bruno! — berrou ele. — Que milagre!
— E tu, Fausto, onde te vim desentocar,
eu que esperava ver surgir um matutão desconfiado!
Abraços, explicações, perguntas atropeladas.
Fausto não cessava de admirar a coincidência.
— Há quantos anos não nos vemos? Dez,
no mínimo...
— Desde a opa da colação de grau.
Como passa o tempo!... Pois, meu caro, prendo-te por cá. Já não te vais daqui sem
conhecer o meu seio de Abraão e matar bem matadas as saudades.
Durante estas expansões a menina do
avental não arredou pé da sala, e eu volta e meia regalava meus olhos na linda criatura
que ela era.
Fausto, percebendo-o, apresentou-ma.
— Laurita, minha prima...
— Já nos conhecemos — disse eu.
— Donde? — exclamou Fausto surpreso.
— Daqui mesmo, de há cinco minutos.
— Farsista! Olha, Laura, vê lá que
nos tragam o café para aqui.
A menina ao retirar-se pôs no andar
esse requebro que o instinto aconselha às moças na presença de um homem casadouro.
— Galantinha, hein? — disse Fausto,
mal se fechou a porta.
— Linda! — exclamei, carregando com
fúria o i. — Que frescura! Que corado!
— O corado corre à conta do forno.
Estão lá todos a assar bolinhos de milho. Não conheces minha mulher? Família Leme,
da Pedra Fria. Casei-me logo depois de formado, e aqui vivo alternando seis meses
de roça com outros tantos de capital.
— Excelente vida! É o sonho de toda
gente.
— Não me queixo, nem quero outra.
— Colheste, então, o pomo da felicidade?
Fausto não respondeu, e como o café
entrasse no momento a conversa mudou de rumo. Trouxe-o Laura, com bolinhos quentes.
— Estou adivinhando, dona Laurita,
que este foi enrolado pelas suas mãos! — galanteei, tomando um deles.
— Qual? — acudiu a menina. — Esse
que tem marca de carretilha?
— Sim!
— Justamente os que têm marca são
de Lucrécia...
— Ora você — cascalhou Fausto —, a
confundir as artes da prima com as da preta!
— Os meus são estes — disse Laura,
apontando os não carretilhados.
— Realmente, a diferença é enorme.
Novo “pizzicato” da menina.
— Pois a massa é a mesma e tudo tempero
de Lucrécia...
Fausto pôs fim aos meus desazos convidando-me
para sair.
— Estás muito xucro no galanteio.
Vem daí ver a criação, que é o melhor. Saímos e percorremos toda a fazenda, o chiqueirão
dos canastrões, o cercado das aves de raça, o tanque dos Pekins; vimos as cabras
Toggenburg, o gado Jersey, a máquina de café, todas essas coisas comuns a todas
as fazendas e que no entanto examinamos sempre com real prazer.
Fausto era fazendeiro amador. Tudo
ali demonstrava largo dispêndio de dinheiro sem a preocupação da renda proporcional;
trazia-a no pé de quem não necessita da propriedade para viver.
Ao jantar apresentou-me sua mulher.
Não condisse com o molde que cá tenho
de boa mulher a esposa do meu amigo. De feições duras, olhar de ave de rapina, nariz
agudo, era positivamente feia e provavelmente má.
Compreendi o caso do meu Fausto: casara
rico. A fazenda viera-lhe às mãos por intermédio da esposa.
Na presença dela Fausto mudava de
tom. De natural brincalhão, embezerrava-se numa sisudez que me era estranha; isso
me disse que casaram os bens, os corpos, mas não as almas.
Também Laurita se coibia, e as crianças
mostravam um odioso bom comportamento de meter dó. A mulher gelava-os a todos com
o olhar duro e mau de senhora absoluta.
Foi um alívio o erguer-nos da mesa.
Fausto lembrara um giro pelos cafezais e como já estivessem arreadas as cavalgaduras
partimos. Sem demora voltou o meu amigo à expansibilidade anterior, com a alegre
despreocupação dos anos acadêmicos. A conversa correu por mil veredas e por fim
embicou para o tema casamento.
— Aquele nosso horror à coleira matrimonial!
Como esbanjávamos diatribes contra o amor sacramento, benzido pelo padre, gatafunhado
pelo escrivão... Lembras-te?
— E estamos a pagar a língua. É sempre
assim na vida: a libérrima teoria por cima e a trama férrea das injunções por baixo.
O casamento!... Não o defino hoje com o petulante entono de solteiro. Só digo que
não há casamento — há casamentos. Cada caso é um caso especial.
— Tendo aliás de comum — disse eu
— um mesmo traço: restrição da personalidade.
— Sim. É mister que o homem ceda cinquenta
por cento e a mulher outros tantos para que haja o equilíbrio razoável a que chamamos
felicidade conjugal.
— “Felicidade conjugal”, dizes bem,
restringindo com o adjetivo a amplidão do substantivo.
A vista do cafezal interrompeu-nos
as confidências. Era setembro, e o aspecto das árvores estrelejadas de florinhas
dava uma sensação farta de riqueza e futuro. Corremo-lo em parte, gozando o “prazer
paulista” de ver ondular por espigões e grotas a onda verde-escura dos cafeeiros
alinhados.
— No teu caso — perguntei —, foste
feliz?
— Não sei. Cedi os cinquenta, e espero
que minha mulher imite a minha abnegação. Ela, porém, mais tenaz, embirra em não
chegar a tanto: procuramos o equilíbrio ainda...
— E Laura? — perguntei estouvadamente...
Fausto voltou-se de golpe, ferido
pela pergunta. Encarou-me a fito, vacilante em revelar-me o fundo de sua alma. Depois,
como atravessássemos um sombrio trecho de caminho, com barrancos acima, avencas
viçosas, samambaias e begônias agrestes, disse, apontando para aquilo:
— Sabes o que é uma face noruega?
Cá tens uma. Não bate o sol. Muita folha, muito viço, verdes carregados, mas nada
de flores ou frutas. Sempre esta frialdade úmida. Laura... é como um raio de sol
matutino que folga e ri na face noruega da minha vida...
Calou-se, e até à casa não mais pronunciou
uma só palavra. Compreendi a situação do meu querido Fausto, e não lhe invejei as
riquezas adquiridas por semelhante preço.
Deixei o Paraíso, que assim se chamava
a fazenda, com três impressões na alma: deliciosa, a da menina dos bolinhos, no
seu avental azul, corada como as romãs; penosa, a da megera entrevista na criatura
feia e má, rica o suficiente para adquirir marido como quem adquire um animal de
luxo. A terceira não a define aí qualquer adjetivo espipado — complexa, sutil em
demasia para caber em moldes vulgares. Era o vago pressentir duma equação sentimental
cujos termos — o raio de sol, a face noruega e o meu Fausto — vagamente perambulavam
dentro da minha imaginativa, às cabriolas.
Nunca tornei àquelas bandas, nem o
acaso me fez encontradiço com qualquer das três personagens.
Este mundo, entretanto, é uma bola
pequenina. Volvidos vinte anos estava eu parado diante duma vitrina no Rio de Janeiro
quando alguém me cutucou as costelas.
— Tu, Fausto!
— Eu, sim, Bruno!
Envelhecera Fausto quarenta anos naqueles
vinte de desencontro, e o tempo murchara-lhe a expansibilidade folgazã. Enquanto
palestrávamos, uma a uma subiam-me à tona da memória as cenas e pessoas do Paraíso,
a fascinante Laurita à frente. Perguntei por ela em primeiro.
— Morta! — foi a resposta seca e torva.
Como nas horas claras do verão nuvem
erradia tapando a súbitas o sol põe na paisagem manchas mormacentas de sombra, assim
aquela palavra nos velou a ambos a alegria do encontro.
— E tua mulher? Os filhos?
— Também morta, a mulher. Os filhos,
por aí, casados uns, o último ainda comigo. Meu caro Bruno, o dinheiro não é tudo
na vida, e principalmente não é para-raios que nos ponha a salvo de coriscos a cabeça.
Moro na rua tal; aparece lá à noite que te contarei a minha história — e gaba-te,
pois serás a única pessoa a quem revelarei o inferno que me saiu o Paraíso...
Eis o que ouvi:
— Quando a febre amarela em Campinas
orfanou Laurita, eu, como o parente melhor condicionado, trouxe-a a morar conosco.
Tinha ela cinco anos e já prenunciava nas graças infantis a encantadora menina que
seria.
“Eu estava casado de fresco e errara
no casamento. Minha mulher — não o suspeitaste naquele jantar? — era uma criatura
visceralmente má.
“O ‘má’ na mulher diz tudo; dispensa
maior gasto de expressões. Quando ouvires de uma mulher que é má, não peças mais:
foge a sete pés. Se eu fora refazer o Inferno, acabaria com tantos círculos que
lá pôs Dante, e em lugar meteria de guarda aos precitos uma dúzia de megeras. Haviam
de ver que paraíso eram, em comparação, os círculos...
“Confesso que não casei por amor.
Estava bacharel e pobre. Vi pela frente o marasmo da magistratura e a vitória rápida
do casamento rico. Optei pela vitória rápida, descurioso de sondar para onde me
levaria a áurea vereda. O dote, grande, valia, ou pareceu-me valer, o sacrifício.
Errei. Com a experiência de hoje agarrava a mais reles das promotorias. O viver
que levamos não o desejo como castigo ao pior celerado.”
— A face noruega!...
— Era exata a comparação, gélida como
nos corria o viver conjugal no período em que, iludidos, contemporizávamos, tentando
um equilíbrio impossível.
Depois tornou-se-nos infernal.
“Laura, à proporção que desabrochava,
reunia em si quanta formosura de corpo, alma e espírito um poeta concebe em sonhos
para meter em poemas. Conluiava-se nela a beleza do Diabo, própria da idade, com
a beleza de Deus, permanente — e o pobre do teu Fausto, um exilado em fria Sibéria
matrimonial, coração virgem de amor, não teve mão de si, sucumbiu. No peito que
supunha calcinado viçou o perigosíssimo amor dos trinta anos.
“O vê-la deslizando por ali como a
fada mimosa da triste mansão, ora a florir um vaso, ora a ameigar os pequenos, já
curando os doentes pobres da fazenda, sempre irradiando beleza, felicidade e graça,
foi-se-me tornando a razão do viver. Todas as generosidades e todas as coragens
dos anos adolescentes borbulharam em meu peito. Compreendi a minha desgraça: era
um cego a quem restituíam os olhos e que, deslumbrado, via do fundo de um cárcere,
através das reixas encruzadas, a aurora, a luz, a vida, tudo inacessível... Vitimava-me
a pior casta de amor — o amor secreto...
“Correram meses.
“Ao cabo, ou porque me traísse o fogo
interno ou porque o ciúme desse à minha mulher uma visão de lince, tudo leu ela
dentro de mim, como se o coração me pulsasse num peito de cristal. Conheci, então,
um lúgubre pedaço de alma humana: a caverna onde moram os dragões do ciúme e do
ódio. O que escabujou minha mulher contra os ‘amásios’!
“A caninana envolvia no mesmo insulto
a inocência ignorante e a nobreza dum sentimento puríssimo, recalcado no fundo do
meu ser.
“Intimou-me a expulsá-la incontinenti.
Resisti.
“Afastaria Laura, mas não com a bruteza
exigida e de modo a me trair perante ela e todo mundo. Era a primeira vez que eu
depois de casado resistia, e tal firmeza encheu de assombro a ‘senhora’. Tenho cá
na visão o riso de desafio que nesse momento lhe crispou a boca, e tenho na alma
as cicatrizes das áscuas que espirraram aqueles olhos.
“Apanhei a luva.
“Estas guerras conjugais portas adentro!...
Não há aí luta civil que se lhes compare em crueza. Na frente de estranhos, de Laura
e dos filhos, continha-se. Maltratava a pobre menina, mas sem revelar a verdadeira
causa da perseguição. A sós comigo, porém, que inferno!
“Durou pouco isso. Escrevi a parentes,
e dava os primeiros passos para a arrumação de Laura, quando...
“Não te recordas do bosque de pinheiros
plantados em seguimento ao pomar?”
— O pinhal d’Azambuja!
— Foi o nome que lhe pus, como andassem
uns lagartões, seus fregueses, a me pilharem as capoeiras. Esse pinhal era o passeio
favorito de Laura.
Emboscava-se nele com um livro, ou
com a costura, e dessa arte sossegava um momento da inferneira doméstica.
“Um dia em que saí à caça, menos pela
caçada do que para retemperar-me da guerra caseira na paz das matas, ao montar a
cavalo vi-a dirigir-se para lá com o cestinho de costura.
“Demorei-me mais do que o usual, e
em vez de paca trouxe uma longa meditação desanimadora, feita de papo acima, inda
me lembro, sob a fronde de enorme guabirobeira.
“Ao pisar no terreiro vi as crianças
a me esperarem na escada, assustadinhas.
“— Papai, não viu Laura?
“— Laura?...
“Estranhei a pergunta, e mais ainda
vendo aproximar-se a velha Lucrécia, que disse:
“— Não vá ter acontecido alguma para
nhá Laurita, patrão! Saiu cedo, antes do café, já é quase noite e nada de voltar.
“— A senhora... — comecei eu a perguntar
não sabia ainda o quê.
“— Sinhá está no quarto. Andou pelo
pomar, voltou e se trancou por dentro.
Não quer enxergar ninguém, parece
que comeu cobra...
“O coração palpitou-me violento e
saí em procura de Laurinha. Indaguei no terreiro: ninguém a vira. Lembrei-me do
pinhal e organizei uma alvoroçada batida ao bosque. Com fachos incendidos de galhaça
morta quebramos a escuridão reinante.
“Nada!
“Eu desanimava já de encontrá-la por
ali, quando um capataz, desgarrado à frente, gritou:
“— Está aqui um cestinho!
“Corremos todos. Estava lá o cestinho
de costura e, mais adiante... o corpo frio da menina.
“Morta, a bala!
“A blusa entreaberta mostrava no entresseio
uma ferida: um pequeno furo negro donde fluía para as costelas fina estria de sangue.
Ao lado da mão direita inerte, o meu revólver.
“Suicidara-se...
“Não te digo o meu desespero. Esqueci
mundo, conveniências, tudo, e beijei-a longamente entre arquejos e sacões de angústia.
“Trouxeram-na a braços. Em casa minha
mulher, então grávida, recusou-se a ver o cadáver com pretexto do estado, e Laura
desceu à cova sem que ela por um só momento deixasse a clausura. Note você isto:
minha mulher não viu o cadáver da menina.
“Dias depois humanizou-se. Deixou
a cela, voltando à vida do costume, muito mudada de gênio, entretanto. Cessara a
exaltação ciumosa do ódio, sobrevindo em lugar um mutismo sombrio. Pouquíssimas
palavras lhe ouvi daí por diante.
“A mim o suicídio de Laura, sobre
sacudir-me o organismo como o pior dos terremotos, preocupava-me como insolúvel
enigma.
“Não compreendia aquilo.
“Suas últimas palavras em casa, seus
últimos atos, nada induzia o horrível desenlace. Por que se mataria Laura? Como
conseguira o revólver, guardado sempre no meu quarto, em lugar só de mim e de minha
mulher sabido?
“Uma inspeção nos seus guardados não
me esclareceu melhor; nenhuma carta ou escrito indicioso.
“Mistério!
“Mas correram os meses e um belo dia
minha mulher deu à luz um menino.
“Que tragédia! Dói-me a cabeça o recordá-la.
“A velha Lucrécia, auxiliar da parteira,
foi quem veio à sala com a notícia do bom sucesso.
“— Desta vez foi um meninão! — disse
ela. — Mas nasceu marcado... “— Marcado?
“— Tem uma marca no peito, uma cobrinha-coral
de cabeça preta. “Impressionado com a esquisitice, dirigi-me para o quarto. Acerquei-me
da criança e desfiz as faixas o necessário para examinar-lhe o peitinho. E vi...
vi um estigma que reproduzia com exatidão o ferimento de Laurinha: um núcleo negro,
e a ‘cobrinha’, uma estria abaixo.
“Um raio de luz inundou-me o espírito.
Compreendi tudo. O feto em formação nas entranhas da mãe fora a única testemunha
do crime e, mal nascido, denunciava-o com esmagadora evidência.
“— Ela já viu isto? — perguntei à
parteira.
“— Não! Nem é bom que veja antes de
sarada.
“Não me contive. Escancarei as janelas,
derramei ondas de sol no aposento, despi a criança e ergui-a ante os olhos da mãe,
dizendo com frieza de juiz:
“— Olha, mulher, quem te denuncia!
“A parturiente ergueu-se de golpe,
recuou da testa as madeixas soltas e cravou os olhos no estigma. Esbugalhou-os como
louca, à medida que lhe alcançava a significação. Depois ergueu-se de golpe, e pela
primeira vez aqueles olhos duros se turvaram ante a fixidez inexorável dos meus.
Em seguida moleou o corpo, descaindo para os travesseiros, vencida.
“Sobreveio-lhe uma crise à noite.
Acudiram médicos. Era febre puerperal sob forma gravíssima. Minha mulher recusou
obstinadamente qualquer medicação e morreu sem uma palavra, fora as inconscientes
escapas nos momentos de delírio...”
Mal concluíra Fausto a confidência
daqueles horrores, abriu-se a porta e entrou na sala um rapazinho imberbe.
— Meu filho — disse ele. — Mostra
a Bruno a tua cobrinha.
O moço desabotoou o colete; entreabriu
a camisa. Pude então ver o estigma. Era perfeita a ilusão: lá estava a imagem do
orifício aberto pelo projétil e do fio de sangue escorrido.
— Veja você — concluiu o meu triste
amigo — os caprichos da natureza...
— Caprichos de Nêmesis... — ia eu
dizendo, mas o olhar do pai cortou-me a palavra: o moço ignorava o crime de que
fora ele próprio o eloquente delator.
---
Transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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