11/03/2018

A Indesejada (Conto), de Iba Mendes



A INDESEJADA


Conta-se que a morte bateu à porta de um homem no seu aniversário de quarenta e um anos de idade. Ela, porém, não apareceu em seu aspecto convencional, com o rosto pálido e disforme, os olhos fechados, coberta com um manto e levando na mão uma foice. Em vez disso, veio aos modos de uma dama romanesca, trajada de um vestido branco, de finíssima cambraia, que lhe envolvia sensualmente o corpo, cujos contornos pareciam refletir as pinturas renascentistas.

Ao abrir a porta, o homem olhou-a de cima para baixo e esfregou os olhos como se duvidasse do que via, e ficou ali parado e surpreso a olhar alguns segundos para a ilustre visitante. Mesmo hesitando, pediu-lhe que entrasse e lhe ofereceu uma cadeira. A mulher entrou, sentou-se, olhou em volta de si, sorriu e suspirou um hálito fresco com sabor de avelã.

Visivelmente atordoado, ele perguntou-lhe como se chamava, de onde viera e qual o motivo de tão imprevisível visita, ao que ela respondeu que tinha por nome Indesejada, que viera de uma terra distante e que estava ali para levá-lo consigo:

— A carruagem está nos esperando, apronte-se depressa! — e apontou para fora, onde se via um ostentoso veículo aparelhado por quatro cavalos alados, semelhantes aos das antigas mitologias.

O homem cuidou está sonhando ou enlouquecendo, então se aproximou e tentou tocá-la, ao que ela deixou-se tocar: era com efeito de carne e osso!... Ficou estático e terrivelmente assombrado.

O que significava tudo aquilo?

Com as pernas trêmulas e o coração acelerado, ele perdeu o sentido e desfaleceu no chão frio. Quando acordou achou-se sentado na carruagem, ao lado da bela mulher, que fustigava sem piedade os animais, para que corressem mais depressa.

— Depressa!... Depressa!...

Os olhos dele pareciam saltar-lhes das órbitas, tamanho era o pavor que sentia. Ela, entretanto, procurou acalmá-lo segurando-lhes delicadamente as mãos e as acarinhando, ao mesmo tempo em que cantava uma suave melodia, que se fazia ecoar pelo espaço adentro. Foi quando ele percebeu que viajava acima das nuvens e que havia perdido de vista a terra. O medo agora se diluía numa sensação estranha e maravilhosa.

Já então sereno, disparou mais e mais perguntas, uma atrás da outra, tão confuso estava. Indagou acerca de qual o sentido de tudo aquilo, sobre o que exatamente queria dele e para onde estava o levando, entre muitos outros questionamentos.

— Logo saberás, respondeu ela sorrindo, enquanto tangia com açoites os cavalos voadores e escorregava velozmente pela atmosfera.

Algumas horas depois adentraram num local de denso luzeiro, tão forte era a luz que lhes ofuscavam a vista. Em todo esse tempo a misteriosa mulher apertava-lhes as mãos, sem nunca soltá-las. Por alguns instantes, foi ele tomado por desejos sensuais lúbricos, voluptuosos e avassaladores... Tentou agarrá-la, beijá-la, mas ela o afastou soltando-lhes as mãos e dizendo:

— Ainda não é chagado o momento, meu amor!... Esperai, esperai...

Disse isso tão docemente que os olhos dele pareciam refletir as estrelas; o seu coração alegrou-se sobremaneira com tais palavras e se lhes aplacaram da mente os impulsos libidinosos.

Já se havia passado muito tempo desde que iniciara aquela jornada, de modo que tinha perdido a noção do próprio tempo e não podia atinar cronologicamente sobre os últimos acontecimentos. A certa altura do caminho, sentiu sono e dormiu como se estivesse em rota para o paraíso. Sonhou que era um sultão árabe e que chegara ao seio de Alah, onde uma multidão de virgens o aguardava com esplendorosos adornos de pérolas e todas sedentas de amor.

Acordou sozinho em meio a uma névoa densa, baixa e fechada; ao longe avistou uma fonte luminosa que propagava raios por todos os seus arredores; mais adiante contemplou uma espécie de catedral imensa, em cuja abóboda havia uma enorme tocha de fogo que se irradiava para fora e dentro do edifício. Enquanto se dirigia ao local, ouviu uma afinada orquestra, que tocava majestosamente o Bolero de Ravel.

Estava, enfim, extasiado!

Entrou no templo e ficou maravilhado com o que ali viu. Não podia calcular a quantidade de congregados que por todo o recinto se aglomeravam, mas notou que os assentos estavam ocupados tanto por homens, como por mulheres e também crianças, todos eles usando uma vestimenta longa e branca, e distinguiu alguns dos rostos. Reconheceu a mulher de um vizinho, com quem tivera uma ligeira aventura amorosa e a qual falecera de um ataque fulminante, enquanto ia encontrá-lo nos porões de uma velha fábrica abandonada. Ela o observava com um olhar sonso e sorriu-lhe piscando os olhos. Bem atrás da mulher estava o antigo patrão, um comerciante idoso de olhar carrancudo e amargurado, o qual fora assassinado por um funcionário, que o havia empurrado sobre os trilhos de um trem. Do lado oposto a estes, identificou um amigo dos tempos de infância, um garoto de dez anos de idade, o qual tinha sido atropelado por um automóvel enquanto brincava com os amigos na rua. O menino ria e acenava-lhe com uma das mãos. Discerniu ainda muitas outras pessoas, foi quando caiu em si que todos os que reconhecera estavam mortos e então aventou a ideia de que poderia estar morto também. No entanto, não podia atinar com alguma convicção se ali era o céu, se o purgatório ou se alguma região do tenebroso inferno. Ficou ainda mais confuso, e tremia. Neste instante o ambiente foi tomado por um silêncio sepulcral. Apareceram então um homem e uma mulher que o conduziu até à entrada principal do templo. Súbito, soou a solene marcha nupcial de Félix Mendelssohn. No altar estava ela, a Indesejada, sorrindo e toda vestida de preto.

— Vem, meu amor, vem!... — balbuciava com uma voz doce e sensual. — Vem, vem, saciemo-nos de amores...

Um frio correu-lhe todo o corpo, ao mesmo tempo em que era tomado por uma emoção desarranjada, mesclada de temor e prazer.

Um sacerdote, um idoso vestido de túnica longa e roxa, mirava-o com um olhar austero e perscrutador. Do seu lado direito estava uma mulher alta segurando na mão uma balança toda de ouro; do lado oposto desta, um homem, igualmente alto, sustinha na cabeça um imenso livro com todas as páginas em branco. Bem atrás havia uma anciã aparentando mais de cem anos de idade, que portava sobre o ombro esquerdo uma enorme ampulheta, que reluzia como um facho de luz. Um grupo de sete crianças cercava a noiva e lançava sobre ela pétalas de rosas vermelhas. A mulher sorria e dançava de felicidade...

— Aproxime-se o noivo! — conclamou aquele que ministrava a cerimônia.

Ao acercar-se do altar, a Indesejada tomou-lhe as mãos e ambos ficaram defronte ao prelado, que lhes entregou as alianças... Após um breve e protocolar sermão, declarou-o este mulher e marido.

Beijaram-se!...

Finda a solenidade, seguiu o casal até a carruagem, que os conduziu ao cimo de uma montanha coberta por espesso nevoeiro. Fazia frio e ventava muito. De lá ele curvou-se e contemplou a terra... Inclinou-se mais e reconheceu a cidade onde vivia; logo em seguida avistou a rua em que morava. Por fim, fixou o olhar com admiração na casa onde habitava. Notou grande movimentação dentro dela: pessoas saíam e pessoas entravam. Algumas choravam, outras cochichavam, uma mulher caía desmaiada. Daí a pouco notou sair dali um caixão, e os seus olhos o seguiu até o velho cemitério. Alguém levantou a tampa do ataúde: lá estava ele, morto, prestes a ser sepultado. Assustado, ele vira-se para o lado e fixa o olhar na feliz esposa, que lhe toma as mãos e salta no precipício. Lá embaixo, deixava-se cair a última pá de cal sobre o defunto...

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