
A Indesejada
Conta-se que a
morte bateu à porta de um homem no seu aniversário de quarenta e um anos de
idade. Ela, porém, não apareceu em seu aspecto convencional, com o rosto pálido
e disforme, os olhos fechados, coberta com um manto e levando na mão uma foice.
Em vez disso, veio aos modos de uma dama romanesca, trajada de um vestido
branco, de finíssima cambraia, que lhe envolvia sensualmente o corpo, cujos
contornos pareciam refletir as pinturas renascentistas.
Ao abrir a
porta, o homem olhou-a de cima para baixo e esfregou os olhos como se duvidasse
do que via, e ficou ali parado e surpreso a olhar alguns segundos para a
ilustre visitante. Mesmo hesitando, pediu-lhe que entrasse e lhe ofereceu uma
cadeira. A mulher entrou, sentou-se, olhou em volta de si, sorriu e suspirou um
hálito fresco com sabor de avelã.
Visivelmente atordoado,
ele perguntou-lhe como se chamava, de onde viera e qual o motivo de tão
imprevisível visita, ao que ela respondeu que tinha por nome Indesejada, que
viera de uma terra distante e que estava ali para levá-lo consigo:
— A carruagem
está nos esperando, apronte-se depressa! — e apontou para fora, onde se via um
ostentoso veículo aparelhado por quatro cavalos alados, semelhantes aos das
antigas mitologias.
O homem cuidou
está sonhando ou enlouquecendo, então se aproximou e tentou tocá-la, ao que ela
deixou-se tocar: era com efeito de carne e osso!... Ficou estático e terrivelmente
assombrado.
O que
significava tudo aquilo?
Com as pernas
trêmulas e o coração acelerado, ele perdeu o sentido e desfaleceu no chão frio.
Quando acordou achou-se sentado na carruagem, ao lado da bela mulher, que
fustigava sem piedade os animais, para que corressem mais depressa.
— Depressa!...
Depressa!...
Os olhos dele
pareciam saltar-lhes das órbitas, tamanho era o pavor que sentia. Ela,
entretanto, procurou acalmá-lo segurando-lhes delicadamente as mãos e as
acarinhando, ao mesmo tempo em que cantava uma suave melodia, que se fazia
ecoar pelo espaço adentro. Foi quando ele percebeu que viajava acima das nuvens
e que havia perdido de vista a terra. O medo agora se diluía numa sensação
estranha e maravilhosa.
Já então
sereno, disparou mais e mais perguntas, uma atrás da outra, tão confuso estava.
Indagou acerca de qual o sentido de tudo aquilo, sobre o que exatamente queria
dele e para onde estava o levando, entre muitos outros questionamentos.
— Logo
saberás, respondeu ela sorrindo, enquanto tangia com açoites os cavalos
voadores e escorregava velozmente pela atmosfera.
Algumas horas
depois adentraram num local de denso luzeiro, tão forte era a luz que lhes
ofuscavam a vista. Em todo esse tempo a misteriosa mulher apertava-lhes as
mãos, sem nunca soltá-las. Por alguns instantes, foi ele tomado por desejos
sensuais lúbricos, voluptuosos e avassaladores... Tentou agarrá-la, beijá-la,
mas ela o afastou soltando-lhes as mãos e dizendo:
— Ainda não é
chagado o momento, meu amor!... Esperai, esperai...
Disse isso tão
docemente que os olhos dele pareciam refletir as estrelas; o seu coração
alegrou-se sobremaneira com tais palavras e se lhes aplacaram da mente os
impulsos libidinosos.
Já se havia
passado muito tempo desde que iniciara aquela jornada, de modo que tinha
perdido a noção do próprio tempo e não podia atinar cronologicamente sobre os
últimos acontecimentos. A certa altura do caminho, sentiu sono e dormiu como se
estivesse em rota para o paraíso. Sonhou que era um sultão árabe e que chegara
ao seio de Alah, onde uma multidão de virgens o aguardavam com esplendorosos
adornos de pérolas e todas sedentas de amor.
Acordou
sozinho em meio a uma névoa densa, baixa e fechada; ao longe avistou uma fonte
luminosa que propagava raios por todos os seus arredores; mais adiante
contemplou uma espécie de catedral imensa, em cuja abóboda havia uma enorme
tocha de fogo que se irradiava para fora e dentro do edifício. Enquanto se dirigia
ao local, ouviu ele uma afinada orquestra, que tocava majestosamente o Bolero de Ravel.
Estava enfim
extasiado!
Entrou no
templo e ficou maravilhado com o que ali viu. Não podia calcular a quantidade
de congregados que por todo o recinto se aglomeravam, mas notou que os assentos
estavam ocupados tanto por homens, como por mulheres e também crianças, todos
usando uma vestimenta longa e branca, e distinguiu alguns dos rostos.
Reconheceu a mulher de um vizinho, com quem teve uma ligeira aventura amorosa e
a qual falecera de um ataque fulminante, enquanto ia encontrá-lo nos porões de uma
velha fábrica abandonada. Ela o observava com um olhar sonso e sorriu-lhe piscando
os olhos. Bem atrás da mulher estava o antigo patrão, um comerciante idoso de
olhar carrancudo e amargurado, o qual fora assassinado por um funcionário, que
o havia empurrado sobre os trilhos de um trem. Do lado oposto a estes, identificou
um amigo dos tempos de infância, um garoto de dez anos de idade, o qual tinha sido
atropelado por um automóvel enquanto brincava com os amigos na rua. O menino
ria e acenava-lhe com uma das mãos. Distinguiu ainda muitas outras pessoas, foi
quando caiu em si que todos os que reconhecera estavam mortos e então aventou a
ideia de que poderia estar morto também. No entanto, não podia atinar com alguma
convicção se ali era o céu, se o purgatório ou se alguma região do tenebroso inferno.
Ficou ainda mais confuso, e tremia. Neste instante o ambiente foi tomado por um
silêncio sepulcral. Apareceram então um homem e uma mulher que o conduziram até
à entrada principal do templo. Súbito, soou a solene marcha nupcial de Félix
Mendelssohn. No altar estava ela, a Indesejada, sorrindo e toda vestida de
preto.
— Vem, meu
amor, vem!... — balbuciava com uma voz doce e sensual. — Vem, vem, saciemo-nos
de amores...
Um frio
correu-lhe a espinha, ao mesmo tempo em que era tomado por uma emoção
desarranjada, mesclada de temor e prazer.
Um sacerdote, um
idoso vestido de túnica longa e roxa, mirava-o com um olhar austero e
perscrutador. Do seu lado direito estava uma mulher alta segurando na mão uma
balança toda de ouro; do lado oposto desta, um homem, igualmente alto, sustinha
na cabeça um imenso livro com todas as páginas em branco. Bem atrás havia uma
anciã aparentando mais de cem anos de idade, que portava sobre o ombro esquerdo
uma enorme ampulheta, que reluzia como um facho de luz. Um grupo de sete
crianças cercava a noiva e lançava sobre ela pétalas de rosas vermelhas. A mulher
sorria e dançava de felicidade...
— Aproxime-se
o noivo! — conclamou aquele que ministrava a cerimônia.
Ao acercar-se
do altar, a Indesejada tomou-lhes as mãos e ambos ficaram defronte ao prelado,
que lhes entregou as alianças... Após um breve e protocolar sermão, declarou-os
este mulher e marido.
Beijaram-se!...
Finda a
solenidade, seguiu o casal até a carruagem, que os conduziu ao cimo de uma
montanha coberta por espesso nevoeiro. Fazia frio e ventava muito. De lá ele curvou-se
e contemplou a terra... Inclinou-se mais e reconheceu a cidade onde vivia; logo
em seguida avistou a rua em que morava... Por fim, fixou o olhar com admiração na
casa onde habitava. Notou grande movimentação dentro dela: pessoas saíam e
pessoas entravam. Alguns choravam, outros cochichavam, uma mulher caía desmaiada.
Daí a pouco notou sair dali um caixão, e os seus olhos o seguiram até o velho cemitério.
Alguém levantou a tampa do ataúde: lá estava ele, morto, prestes a ser
sepultado. Assustado, ele vira-se para o lado e fixa o olhar na feliz esposa,
que lhe toma as mãos e salta no precipício. Lá embaixo, deixava-se cair a
última pá de cal sobre o defunto...
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