
ATRASADO
Era
a primeira vez que chegava atrasado à empresa. Por essa razão, sentia-se
transtornado.
O
episódio, posto que banal, transformou-se para ele numa espécie de mácula, uma
nódoa que jamais poderia ser apagada do seu invejável currículo. Julgava-se o
tempo todo culpado e demonstrava uma perturbação não habitual, a qual, por seu
ineditismo, logo chamou a atenção dos colegas.
Interpelado
se estava com algum problema, limitou-se a dizer que apenas se sentia cansado e
que não dormira bem àquela noite:
–
Um calor insuportável e ainda não chove — tentava assim legitimar seus novos
modos excêntricos.
Esteve
deste jeito o dia todo, cabisbaixo, quieto e introspectivo; não almoçou nem
tomou seus cafezinhos costumeiros.
–
Está doente? — perguntou-lhe o gerente, com ares de preocupação.
–
Não, senhor. Tive uma noite péssima, um calor insuportável — repetia agora
ainda com mais ênfase.
Findo
o expediente retirou-se apressadamente sem se despedir dos colegas e sem aquela
habitual passagem pelo barzinho da esquina.
Em
casa desabou no sofá, exausto e tomado de um profundo desânimo. Com o olhar
fixo no teto era como se estivesse vislumbrando o buraco negro da sua própria
alma inconsolada e abatida.
Sobre
ele, sabe-se que morava sozinho desde os trinta anos de idade. Embora orçasse
agora pelos seus quarenta, não havia ainda pensado em matrimônio. Queria
dedicar-se integralmente à sua profissão, e o casamento, com a iminente
possibilidade de filhos, poderia fazer minar seus objetivos profissionais.
Dentre
as muitas metas que estabelecera para sua vida, uma delas dizia respeito
exatamente à pontualidade. Acreditava que um bom funcionário para ser bom
mesmo, deveria ser preciso nos horários, tão rigoroso quanto o grande relógio
de Londres. Agora, porém, havia interrompido uma sequência linear de assiduidade
de mais de cinco anos. Não podia mais voltar atrás. Em consequência disso
passou a culpar-se o tempo todo, como se tivesse cometido um grave crime para o
qual se seguiria uma severa pena.
Até
aquele fatídico dia, nada lhe acontecera que pudesse ser motivo para um atraso.
A empresa estava localizada apenas a dois quarteirões de sua casa, de modo que ia
andando todos os dias e de tal modo que sempre chegava meia hora antes do
início do expediente. Também nunca precisou faltar por problemas de saúde. A esse
respeito tinha, como diz o jargão popular, uma saúde de ferro. No mais, tudo
corria em perfeita ordem, dentro da mais completa rotina. Apenas os
despertadores não haviam tocado naquela manhã, embora tivesse intercalado dois
alarmes com intervalo de dez minutos de um para outro. Por qual razão tal coisa
veio acontecer?
O
tempo todo questionava a si mesmo dos motivos que levaram os relógios a parar.
Por mais que se esforçasse, não conseguia aventar uma hipótese meramente
física, algo intrínseco ao próprio mecanismo indicador das horas. No seu âmago,
sentia-se como se tivesse transgredido o sexto mandamento sagrado, ou como se
fosse o autor de um crime hediondo.
O
relojoeiro não encontrou nenhum defeito nos aparelhos, que pareciam trabalhar
em perfeita harmonia. Tal constatação fez emergir do seu mais profundo íntimo os
antigos fantasmas da infância. Então pensou em muitas coisas, e se convenceu
que ali andou pondo o dedo alguma entidade sobrenatural. Sim, talvez algum
espírito desencarnado viera lhe cobrar alguma dívida passada, encontrando nos
ponteiros dos relógios o seu ponto fraco.
A
esta fatal constatação seguiram-se algumas reações imediatas: na quinta-feira foi
até um terreiro de umbanda, onde levou algumas oferendas a Ossaim, recebendo da
mãe de santo as boas energias do orixá; na sexta compareceu a um culto
pentecostal, submetendo-se a uma sessão de descarrego, para a libertação dos
encostos e outros agentes do mal; e, por último, foi no domingo à missa da
Matriz, participando com extrema consternação do corpo e do sangue de Cristo. Sentia-se,
enfim, redimido de quaisquer faltas cometidas, incluindo aí a culpa que há dias
lhe oprimia e que tanto lhe causava desgosto. “Vida nova”, dizia mentalmente, tomando
de apoio suas velhas crenças.
Na
manhã do dia seguinte, depois de uma noite em plena paz com a consciência, os
alarmes soaram como de hábito, com a mesma pontualidade do famoso relógio londrino.
Levantou-se e seguiu à risca sua rotina costumeira. Não queria que nada desse
errado. Saiu cantarolando em inglês. Sentia-se feliz e revigorado!
No
caminho encontrou um velho que caminhava lentamente com os olhos baixos. Este
perguntou-lhe as horas, foi quando percebeu que havia esquecido o relógio.
–
Desculpe-me, esqueci o relógio — respondeu com um sorriso ríspido e forçado.
Essa
era a primeira vez que esquecia o relógio. O evento, igualmente banal, fê-lo
estremecer. Deliberou então retornar correndo a casa a fim de buscá-lo.
Encontrou-o em cima da pia com os ponteiros parados. Correu-lhe então um frio
por toda a espinha e arrepiaram-se-lhes os pelos. Um turbilhão de pensamentos
aflorou-lhe a mente intranquila. Por trás deles, pairavam entidades espirituais
querendo atormentar-lhe a vida, tirar-lhe a paz... Via-se, pois, no fundo do
abismo da desgraça. Então pensou em rezar, pedir socorro aos santos, ler o
Salmo 91... Porém, não lhe restava tempo. Estava atrasado...
Saiu
de casa ofegante, desesperado e correndo de um lado para outro da rua. Esbarrou
num homem e escapou de cair num buraco.
Ao
dobrar a esquina mirou bem o relógio e notou que os ponteiros voltaram a correr
normalmente. Sentiu-se mais uma vez aliviado e respirou fundo. Em seguida,
porém, desesperou-se ao se dar conta que estava atrasado... Muito atrasado...
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