11/24/2018

A vaca na sala (Conto), de Iba Mendes


A VACA NA SALA

Acordou com a luz do sol entrando pela frincha da janela do quarto. 

Sentia-se moído e sonolento. Tinha dormido mal toda a noite e tivera pesadelos horríveis, sendo que o último permanecia impregnado na sua memória como se fossem trechos de uma ficção de H. G. Wells ou como se constituísse cenas fantásticas de uma trama de Steven Spielberg.

Há um ano que morava sozinho ali, uma vez que a mulher o havia abandonado para ir viver com os pais no interior.

Aprontou-se em poucos minutos e ia descendo às escadas apressadamente quando, estupefato, avistou lá de cima uma vaca deitada bem ao pé do último degrau, na sala. O animal parecia dormir, pois tinha os olhos cerrados, não obstante se mexesse de um lado para o outro com a respiração ofegante, como se também tivesse sonhando pesadelos.

Aquela circunstância lhe era tão extraordinária que por alguns instantes acreditou tratar-se do prolongamento de seus delírios noturnos. Então pouco a pouco foram-se-lhes reproduzindo na memória todos os detalhes do terrível pesadelo. Lembrou-se que era um enorme centauro com rosto e torso de mulher, cujos seios, sangrando, arrastavam-se pelo chão, sendo sugados com voracidade por dois grandes répteis, os quais se contorciam de fome e soltavam uivos dilacerantes.

Perplexo e tomado por um sentimento de terror permaneceu ali imóvel e sem saber que fizesse. Ao cabo de alguns minutos despertou de sua imobilidade, girou em torno de si mesmo, dirigindo-se em seguida ao quarto, onde ficou andando de um lado para o outro como se tivesse perdido o juízo. Seu corpo suava e tremia. Ficou pálido. Sua pressão aumentou.

Assim esteve durante algum tempo, quando, de súbito, retornou novamente em direção à escada, na expectativa de que a suposta ilusão se lhe desvanecesse da vista. Ao voltar os olhos para a sala, notou porém que a vaca ainda estava lá e que já não dormia mais. O ruminante, notando a presença dele, fitou-lhe seus grandes olhos e soltou um pequeno mugido que o fez afastar apavorado.

Visivelmente atordoado, por ali permaneceu mais algum tempo imerso num emaranhado de pensamentos confusos, quando, já resignado, conscientizou-se de que a vaca não era fruto da sua imaginação. Ela de fato existia e estava ali afrontando sua capacidade de raciocínio, limitando sua locomoção e desafiando o seu apurado senso de lógica.

Que havia de fazer?

Tomado de uma terrível sensação de impotência, não conseguia aventar nenhuma ideia ou ação que pudessem culminar num desfecho para aquela bizarra situação.

De repente passou a resmungar palavras sem nexos como se tivesse imitando o ruminar do próprio bicho, o qual se mantinha todo o tempo deitado e de olhos arregalados, ignorando completamente toda aquela intimidação. Descalçando um sapato do pé, ameaçou lançá-lo abaixo, mas logo freou seu ímpeto agressivo diante da passividade do grande mamífero.

Contida a fúria momentânea, sentou-se no topo da escada onde se conservou em total silêncio por alguns minutos. Nisso a vaca levantou-se e ele, num salto para trás, ergueu-se também. Em pé, passou então a acompanhar fixamente cada movimento do animal, o qual, depois de um breve lapso de tempo, desapareceu por inteiro do seu campo de visão.

Sentindo-se aliviado, voltou correndo ao quarto para pegar a pasta e a chave do carro. À porta do aposento estancou atônito ao ver diante de si a mesma vaca, deitada ao pé da cama e dando mama a dois pequenos bezerros.

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