11/05/2018

Além da Taprobana (Conto), de Iba Mendes



ALÉM DA TAPROBANA 

“As armas e os Barões assinalados
Que da Ocidental praia Lusitana
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram...” 

Estava lendo Camões quando o telefone tocou. Era uma voz feminina. Falava baixinho e dizia que tinha algo importante para me dizer e implorava para que apenas a escutasse. Acrescentou ainda que não queria conselhos nem dinheiro emprestado, nem qualquer outra coisa.

— Apenas me escute — repetia com voz temerosa, como se estivesse acabado de encontrar o gigante Adamastor.

Neste momento estava eu além da Taprobana, seguindo por mares nunca dantes navegados e já chegando ao Cabo das Tormentas. Um tanto confuso e espantado, indaguei do seu nome, ao que ela disse que eu saberia mais adiante pelo próprio teor da conversa, e instava que contava muito com minha compreensão, suplicando para que não desligasse o telefone, pois se tratava de algo do meu interesse, e me pedia antecipadas desculpas por qualquer incômodo, e repetia que assim procedia apenas por se tratar de um assunto de excepcional relevância.

Tentei acalmá-la, dizendo que por mim estava tudo bem, e fiz-me envolver pela misteriosa voz desta musa secreta, prontificando-me a ser todo ouvidos. Ela me agradeceu a paciência, insistindo mais uma vez para que não fosse interrompida.  Então principiou a falar...

Há vinte anos que nos conhecemos, quando ainda éramos estudantes na Faculdade de Letras. Isso era lá pelo ano de 1995. Lembro-me de você como se fosse hoje. Era magro, tinha um nariz aquilino, os cabelos lisos e longos, o queixo partido e um par de olhos penetrantes como punhais. Ah, quanto tempo!

Lembra-se daquele dia em que nós dois, ambos eufóricos, declamávamos Os Lusíadas em voz alta lá na Praça do Relógio? Você lia uma estrofe e eu outra, até nos cansarmos de tanto ler. Depois íamos para a lanchonete e nos esquecíamos das aulas. Ah, doces lembranças!

Você me chamava de Terpsícore, pois gostava de me ver dançar, e dançávamos juntos, e ríamos juntos e nos transbordávamos de louca paixão. Então você me beijava deliciosamente, e me abraçava cheio de poesia, e me recitava poemas, e me prometia eterno amor. Queria tanto que se lembrasse desses nossos momentos!...

Por fim, trago à memória o nosso último encontro. Lembra? Você estava ansioso e confuso, pois era seu último dia na faculdade. Notei ainda que se encontrava um pouco triste, embora nada dissesse sobre a razão daquela tristeza. De minha parte, estava transbordando de felicidade por sua causa. Ah, quanta expectativa nutria dentro de mim!...

Chorei muito quando me disse que iria visitar seus pais. Não obstante me afiançasse que voltaria em breve, ainda assim chorei... Sim, chorei, chorei muito... Alguma coisa dentro de mim parecia dizer que era o fim de tudo, que depois daquele dia não nos veríamos mais. E foi com esse pressentimento ruim que nos despedimos. Você lá se foi para nunca mais voltar, nem sequer me deu notícias. Por quê? Isso eu nunca soube.

Há dois meses encontrei por acaso uma de nossas amigas dos tempos de faculdade, que deu notícias suas e me cedeu o seu telefone. Queria que soubesse que, passados vinte longos anos, ainda o amo profundamente, e talvez até mais do que antes. Se isso é loucura, vá lá, que seja! O fato é que o amo. Sim, o amo como se o tempo não tivesse passado... Mas, qual a relevância dessa absurda confissão? Bem, estou desenganada pela Medicina. Tenho ainda alguns meses de vida, talvez uns dois ou três, foi o que me disseram os médicos. Quisera muito vê-lo antes de partir. Esse é meu anseio supremo. Sei que deve ter suas ocupações, mas...

Interrompi a conversa prometendo vê-la imediatamente ainda no dia seguinte. Ela me agradeceu chorando...

E lá fui navegando na minha triste nau a ver minha antiga Terpsícore... Será que dançava ainda? Será que ainda lia o grande poeta de Portugal?

Estava tomado de estranhos sentimentos. O remorso corroía minha alma, e cheguei a sentir vergonha de mim mesmo. Nada podia justificar tão prolongado silêncio. Sentia-me como se estivesse navegando em rota oposta aos dos lusíadas, indo de Melinde à Mombaça. O Velho do Restelo parecia me interpelar, tentando convencer-me a não prosseguir viagem, e me acusava de vil infâmia. Por um breve instante pensei em desistir daquele louco intento, em abster-me de vê-la... No entanto, após ferrenha luta comigo mesmo, triunfei sobre o vil tentador e seguir avante com o socorro das musas.

Ela me esperava à porta. Estava linda, apesar dos seus quarenta e três anos de idade. Trajava um vestido longo e todo azul. Não se mostrava triste. Ao contrário, estava radiante e parecia espargir luz pelos olhos, e sorria como uma noiva que ansiosa aguarda o nubente no altar.

Entrei. Havia flores por toda a casa, flores de vários tipos e matizes. Repentinamente passei a escutar uma deliciosa melodia. Era o Danúbio Azul. Então de repente ela veio até mim dançando freneticamente, e girava de um a outro lado, e erguia as mãos para o alto, e suspirava, e murmurava expressões de amor... Sem dizer nada, sem lembrar o passado, sem pedir desculpas, tomei-a pela cintura, beijai-a escandalosamente, e dançamos como dois jovens bailarinos, e nos amamos pela noite adentro...

Pela manhã acordei como se estivesse na Ilha dos Amores. Ela, porém, já não estava mais ali: tinha ido ao Concílio dos Deuses...

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