

Amnésia
Nasceu minutos
antes de o Repórter Esso anunciar:
"E atenção! acaba de suicidar-se em seus aposentos, no Palácio do Catete,
o Presidente Getúlio Vargas". Era o dia 24 de agosto do ano de 1954, uma
terça-feira fria e de aspecto melancólico.
Toda a gente
que estava em casa, quando ele nasceu, rejubilou como se ali estivesse o futuro
Nobel em Medicina. O pai, médico cardiologista, não cabia em si de felicidade.
Era o filho almejado, robusto como o pai, e belo como a mãe. Se o casal já era
feliz, o filho veio trazer-lhes novas alegrias, e a paz doméstica
transformou-se em promessa de perenidade.
Filho único, a
criança crescia entre a brandura do pai e a rigidez da mãe. Enquanto um mimava,
o outro disciplinava, e assim nesse contrapeso de conceitos díspares ia se
formando o caráter e a educação do menino.
Até completar dezesseis
anos, todo ele respirava uma saúde de ferro, e, ao menor sinal de moléstia, um
simples resfriado, uma tosse passageira, um espirro vulgar, era de pronto
submetido a uma rigorosa análise anatômica e outros cuidados relacionados à
higiene e à alimentação. O pai era seu médico exclusivo, era quem fazia os
diagnósticos, quem lhe aplicava injeções e quem lhe medicava.
Nestes termos
estavam as coisas, quando o rapaz, completados dezessete anos de idade, passou
a apresentar sintomas de uma moléstia neurológica desconhecida, uma perturbação
que lhe afetava a memória e que o fazia esquecer-se de sua própria idade.
Lembrava-se de tudo. Aliás, para qualquer outra coisa tinha o que se convencionou
denominar de "memória de elefante". Era extremamente aplicado à
Matemática e sabia de cor toda a Tabela Periódica. Todavia se lhe perguntasse
que idade tinha, ficava indiferente e distraído, como se lhe tivesse pedindo
para decifrar o Manuscrito Voynich. É
preciso acrescentar ainda que os efeitos desta misteriosa amnésia não se
restringiam apenas a si próprio; em vez disso, afetava também sua percepção
acerca da idade alheia, e de tal modo que não conseguia atinar mentalmente
sobre a diferença de idade entre um bebê e um ancião.
O pai, que
atribuía à Medicina dotes quase divinos, envidou todos os esforços a fim de
descobrir a causa e a cura para tão terrível mal. Foram dias difíceis e
desalentadores. Sentia-se ele impotente, e culpava-se pelo malogro dos seus
esforços, como se o simples fato de ser médico o tornasse obrigado a curar o
filho. Por fim, resignou-se melancolicamente à fatalidade da doença,
conformando-se com a dura tarefa de dirimir os seus efeitos sobre o jovem.
A primeira
batalha foi contra o amor, e revelou-se um estrondoso fracasso. O filho, agora
com vinte e um anos, entregou-se a uma tresloucada paixão por uma mulher
dezessete anos mais velha. A preocupação dos pais, no entanto, não era propriamente
com a desproporção das idades de ambos, mas com a feiura da futura nora. Na
opinião da mãe, a mulher era excepcionalmente feia, feia de uma maneira
constrangedora. A batalha fora, enfim, vencida pelo filho, que se casou com vinte
e três anos de idade. Deu-se isso no ano de 1977.
Para espanto
de todos, e mais ainda da mãe, o casamento revelou-se ao longo dos meses um
oásis de felicidade. Esta, para não admitir que se equivocara, e num orgulho
que lhe era bem peculiar, explicava que tudo isso se devia à própria
enfermidade do filho, que o tornava incompetente para julgar a fealdade da
mulher. Seja como for, o fato é que viviam em harmonia, combinavam-se e
amavam-se como dois namorados que amam pela primeira vez. Dois anos depois, em
1979, após uma gestação sofrida, teve a mulher o primeiro e único filho. Foi
por essa mesma época que o seu velho pai adoecera gravemente do coração, vindo
falecer no início do ano seguinte.
Os anos
passavam e a velhice seguia-lhe no encalço trazendo consigo todos os seus
dissabores. Ele, embora visse estampados diante de si os sinais do tempo: a
cabeça meio calva e já embranquecendo, os olhos um tanto sombrios, a vista
cansada, fraquejando aqui e ali, e reclamando de tudo e de todos, ainda assim
não tinha consciência da sua própria ancianidade. A moléstia era, por assim
dizer, o seu grande consolo, a ilusão que o fazia habituar-se à imobilidade da
sepultura.
Era começo de
inverno do ano de 2015. O dia estava frio e cinzento. Acordou sorumbático e sem
nenhum plano. A manhã, que era de domingo e já estava chuvosa, ainda mais o
entristeceu. Sentou-se na cama apoiando as costas na cabeceira e, por alguns
instantes esteve a meditar sobre o sonho que tivera. A mulher, que nesse tempo
orçava perto dos 80 anos, levantara-se mais cedo, fizera o café e o aguardava
como de hábito na cozinha. Súbito, ergueu-se ele da cama. Em pé, diante do
espelho mirou-o maquinalmente e, num salto para trás, deixou-se cair numa
poltrona, apavorado e todo trêmulo, enquanto procurava certificar-se se de fato
estava acordado ou sonhando. Ergueu-se novamente e encarou o espelho mais uma
vez. Viu-se ali tal qual era: um velho sexagenário. Desesperado correu até a
cozinha, e o que lá encontrou era a prova cabal de que havia recuperado a
memória.
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