11/24/2018

Amnésia (Conto), de Iba Mendes


AMNÉSIA 

Nasceu minutos antes de o Repórter Esso anunciar: "E atenção! acaba de suicidar-se em seus aposentos, no Palácio do Catete, o Presidente Getúlio Vargas". Era o dia 24 de agosto do ano de 1954, uma terça-feira fria e de aspecto melancólico.

Toda a gente que estava em casa, quando ele nasceu, rejubilou como se ali estivesse o futuro Nobel em Medicina. O pai, médico cardiologista, não cabia em si de felicidade. Era o filho almejado, robusto como o pai, e belo como a mãe. Se o casal já era feliz, o filho veio trazer-lhes novas alegrias, e a paz doméstica transformou-se em promessa de perenidade.

Filho único, a criança crescia entre a brandura do pai e a rigidez da mãe. Enquanto um mimava, o outro disciplinava, e assim nesse contrapeso de conceitos díspares ia se formando o caráter e a educação do menino.

Até completar dezesseis anos, todo ele respirava uma saúde de ferro, e, ao menor sinal de moléstia, um simples resfriado, uma tosse passageira, um espirro vulgar, era de pronto submetido a uma rigorosa análise anatômica e outros cuidados relacionados à higiene e à alimentação. O pai era seu médico exclusivo, era quem fazia os diagnósticos, quem lhe aplicava injeções e quem lhe medicava.

Nestes termos estavam as coisas, quando o rapaz, completados dezessete anos de idade, passou a apresentar sintomas de uma moléstia neurológica desconhecida, uma perturbação que lhe afetava a memória e que o fazia esquecer-se de sua própria idade. Lembrava-se de tudo. Aliás, para qualquer outra coisa tinha o que se convencionou denominar de "memória de elefante". Era extremamente aplicado à Matemática e sabia de cor toda a Tabela Periódica. Todavia se lhe perguntasse que idade tinha, ficava indiferente e distraído, como se lhe tivesse pedindo para decifrar o Manuscrito Voynich. É preciso acrescentar ainda que os efeitos desta misteriosa amnésia não se restringiam apenas a si próprio; em vez disso, afetava também sua percepção acerca da idade alheia, e de tal modo que não conseguia atinar mentalmente sobre a diferença de idade entre um bebê e um ancião.

O pai, que atribuía à Medicina dotes quase divinos, envidou todos os esforços a fim de descobrir a causa e a cura para tão terrível mal. Foram dias difíceis e desalentadores. Sentia-se ele impotente, e culpava-se pelo malogro dos seus esforços, como se o simples fato de ser médico o tornasse obrigado a curar o filho. Por fim, resignou-se melancolicamente à fatalidade da doença, conformando-se com a dura tarefa de dirimir os seus efeitos sobre o jovem.

A primeira batalha foi contra o amor, e revelou-se um estrondoso fracasso. O filho, agora com vinte e um anos, entregou-se a uma tresloucada paixão por uma mulher dezessete anos mais velha. A preocupação dos pais, no entanto, não era propriamente com a desproporção das idades de ambos, mas com a feiúra da futura nora. Na opinião da mãe, a mulher era excepcionalmente feia, feia de uma maneira constrangedora. A batalha fora, enfim, vencida pelo filho, que se casou com vinte e três anos de idade. Deu-se isso no ano de 1977.

Para espanto de todos, e mais ainda da mãe, o casamento revelou-se ao longo dos meses um oásis de felicidade. Esta, para não admitir que se equivocara, e num orgulho que lhe era bem peculiar, explicava que tudo isso se devia à própria enfermidade do filho, que o tornava incompetente para julgar a fealdade da mulher. Seja como for, o fato é que viviam em harmonia, combinavam-se e amavam-se como dois namorados que se amam pela primeira vez. Dois anos depois, em 1979, após uma gestação sofrida, teve a mulher o primeiro e único filho. Foi por essa mesma época que o pai do rapaz, já velho, adoecera gravemente do coração, vindo falecer no início do ano seguinte.

Os anos passavam e a velhice seguia-lhe no encalço trazendo consigo todos os seus dissabores. Ele, embora visse estampados diante de si os sinais do tempo: a cabeça meio calva e já embranquecendo, os olhos um tanto sombrios, a vista cansada, fraquejando aqui e ali, e reclamando de tudo e de todos, ainda assim não tinha consciência da sua própria ancianidade. A moléstia era, por assim dizer, o seu grande consolo, a ilusão que o fazia habituar-se à imobilidade da sepultura.

Era começo de inverno do ano de 2015. O dia estava frio e cinzento. Acordou sorumbático e sem nenhum plano. A manhã, que era de domingo e já estava chuvosa, ainda mais o entristeceu. Sentou-se na cama apoiando as costas na cabeceira e, por alguns instantes esteve a meditar sobre o sonho que tivera. A mulher, que nesse tempo orçava perto dos 80 anos, levantara-se mais cedo, fizera o café e o aguardava como de hábito na cozinha. Súbito, ergueu-se ele da cama. Em pé, diante do espelho mirou-o maquinalmente e, num salto para trás, deixou-se cair numa poltrona, apavorado e todo trêmulo, enquanto procurava certificar-se se de fato estava acordado ou sonhando. Ergueu-se novamente e encarou o espelho mais uma vez. Viu-se ali tal qual era: um velho sexagenário. Desesperado correu até a cozinha, e o que lá encontrou era a prova cabal de que havia recuperado a memória.

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