

AS MÃOS ENORMES
Até
então nunca havia cogitado a possibilidade de ser traído. Para ele, traição era
coisa que se dava apenas com os outros: com os vizinhos, com os colegas de
serviço, nas novelas, nos filmes e nos livros, como é o caso daquela famosa
história contada por Machado de Assis.
—
A mim não me engana — disse certa vez, referindo-se a personagem machadiana Capitu,
que supostamente teria traído o Casmurro.
Em
dez anos de casado nunca nutriu qualquer ciúme da mulher, que sempre se mostrou
acima de qualquer suspeita, de índole inquestionável e irrepreensível nos modos
de lidar com os outros homens. Por isso orgulhava-se dela, por quem mantinha
uma fidelidade quase canina.
—
Por esta eu ponho não só a mão, mas todo o corpo no fogo! — costumava pilheriar
com os amigos quando o assunto recaía sobre a infidelidade feminina.
Agora,
porém, pela primeira vez, acendia-se-lhe uma brasa viva na cabeça, que o fazia
despertar do sono e lhe tirava o sossego. No entanto, a razão desta
desconfiança não se gerou de alguma cena suspeita, nem adveio da constatação de
algum ato indecoroso da companheira. Em vez disso, surgiu de um sonho banal que
tivera um mês atrás e que se repetira mais uma vez na última noite.
No
sonho a mulher aparecia em ato libidinoso, num carro, com um sujeito barbudo e
de mãos enormes e peludas. Este lhe mirava com um olhar sarcástico, ao mesmo
tempo em que sorria maliciosamente pelos cantos da boca. O sonho lhe pareceu
sórdido, e aquelas mãos tão grandes! Encasquetou-se sobremaneira com isso, e
não pensava mais em mais nada.
Todavia,
não narrou os seus sonhos à mulher nem a mais ninguém. Mas a partir dali passou
a vigiá-la, a questioná-la sobre isso e aquilo, a aborrecê-la pelas mais
ínfimas banalidades. Se ela ia ao mercado, debruçava-se à janela para espiá-la
e, se porventura demorasse, ia atrás e aplicava-lhe os piores desaforos. Queria
saber quem era Fulana, o que fazia Sicrana, onde morava Beltrana etc.
Ela,
sentindo-se sufocada, inquiriu-lhe acerca das razões porque agia daquela
maneira. Não podia compreender porque de uma hora para outra ele passasse se
comportar como um adolescente imaturo e sem qualquer pudor.
—
Ora, onde já se viu isso?!
Ele então replicava que tinha suas justas razões e que estas, por si mesmas, eram suficientes para justificar todas as suas suspeitas.
—
Sim, estou de olho em você! — ameaçava-a o tempo todo como se tivesse na
iminência de lhe desvendar um insidioso crime.
Agora,
na última noite e pela terceira vez, o obsceno sonho viera a lhe atormentar o
espírito. Lá estava o homem com suas mãos desmesuradas e repletas de pelos, e
estas o apertavam pelo pescoço até fazê-lo perder a respiração. Acordou
sobressaltado, respingando suor e todo entregue ao desespero. Olhou rapidamente
para o lado e deu pela falta da esposa. Desceu as escadas correndo e gritando o
nome dela.
Na
sala encontrou somente o silêncio, um silêncio vasto, enorme, transcendente,
apenas realçado pelo insistente tic-tac de um velho relógio de parede. Desesperado
abriu a porta da rua e deu de cara com um automóvel, que dali partia em alta
velocidade. Com as pernas trêmulas, vacilaram-lhe os joelhos e deixou-se cair
na calçada, de onde passou a mirar fixamente o veículo em movimento, como se
nele seguisse o homem de mãos enormes, o qual certamente iria acariciar os
seios frondosos de sua companheira, exatamente como acontecera no sonho...
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