

Em direção ao abismo
A vida não é prêmio, nem castigo,
A vida é pura e simplesmente a vida.
A vida é pura e simplesmente a vida.
Luís Delfino
De repente
começou a pensar nas coisas da vida. Até então, vivia a tranquilidade dos
amantes felizes, que se amam intensamente sem conhecer a etimologia de Eros. Ao
saber da morte de alguém, de um parente, amigo ou conhecido, conformava-se resignadamente
sem questionar os desígnios da existência humana, atribuindo a Deus o destino
dos homens.
— É a vontade
de Deus — dizia com passiva resignação.
Adaptava-se às
circunstâncias e se submetia à sorte com a igual naturalidade de quem fuma um
charuto de Havana, com a diferença que este ver esvair a fumaça com a mesma
angústia dos poetas e dos filósofos.
Quando morreu
sua mãe, chorou todas as lágrimas de um bom filho, porém, logo se consolou como
se consolam todos os mortais. Não fez desse drama um postulado filosófico, nem
tentou extrair dele qualquer reflexão epistemológica, ontológica ou ética.
— Deus assim o
quis — consolava-se assim em total submissão
à Divina Providência.
Foi a leitura
de um clássico russo, de autoria do célebre escritor Liev Tolstói, que fez
despertar nele um novo ímpeto filosófico. Se não seguia a Damasco, chegava a
Estagira. Enquanto ali a revelação cegara os olhos do apóstolo, aqui se abriria
a visão do filósofo. De uma hora para outra passou questionar tudo e a todos, a
querer saber as razões disso, as causas daquilo, o porquê de existirmos, de
onde viemos, para onde iremos, enfim, passou a discorrer e raciocinar sobre
quaisquer assuntos, inclusive sobre o nada absoluto. Com o tempo tornou-se
pessimista e se embrenhou em Schopenhauer.
Plus ultra!
Queria ir além
do senso comum. Todavia, não ambicionava encontrar a fórmula da vida, nem
tencionava inventar um medicamento sublime, um emplastro anti-hipocondríaco,
destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade. Queria apenas entender a
vida na sua essência, compreender o homem na sua origem...
Foi assim nessa
busca sedenta que se entregou de corpo e alma aos estudos, lendo tudo, de
Platão a Paulo Coelho... Em Drummond descobriu que a vida é vontade de morrer;
em Jean Paul-Sartre, um pânico num teatro em fogo; em Shakespeare, uma história
contada duas vezes; em Erasmo de Rotterdam, uma peça de teatro; no Talmude, a
sombra de um pássaro que nos sobrevoa; na Bíblia, um vapor que aparece por um
pouco, e depois se desvanece. Etc. etc. etc. Ao cabo de rigorosa investigação
filosófica, concluiu que não sabia nada e se embrenhou por fim no ceticismo.
Embora não
duvidasse da existência de um ser supremo, não podia conceber uma divindade
conceitualmente religiosa, criada pelas conveniências dos séculos, padronizada
pela força dos homens, e enraizada nas mentes pelo estigma do pecado e do medo.
— Acredito no
Deus de Espinosa — dizia acrescentando à fala o dístico latino: Deus sive natura! Todavia, não punha em
discussão a existência divina, que considerava uma questão inútil, não obstante
discutível do ponto de vista filosófico. Foi exatamente isso que externou num
debate, quando lhe pediram uma prova científica da existência de Deus:
— Qual a
lógica mais razoável — objetava com acentuada ironia — provar Deus ou deixar
que ele mesmo se faça provar? Por que essa imperiosa necessidade de se
prová-lo, supondo que ninguém lhe tenha perguntado se deseja ser provado? Aos de tendências religiosas, continuava: — Por
que não estabelecer a fé como único parâmetro para se chegar a ele? E aos que o
contestavam, arrematava por fim: — Por que não deixar que o fluir do tempo o
conduza ao mar do esquecimento?...
Assim ia ele
sempre metido em debates e controvérsias filosóficas. Se isso lhe trouxe fama e
prestígio, rendeu-lhe também muitos inimigos e bastante dor de cabeça.
Fugit irreparabile tempus.
Com o andar
dos anos, porém, o tédio e o abatimento bateram à porta do nosso filósofo. Sentiu
então saudades dos tempos de outrora, quando sua única preocupação com a vida
era vivê-la na sua simplicidade. Agora estava completamente imerso num oceano
de perguntas sem respostas. Tinha a chave na mão, mas não havia portas para
abri-la. Queria ir à Pasárgada, mas esquecera do endereço. Restava-lhe, pois,
mergulhar cada vez mais fundo, mais fundo, mais fundo...
...mesmo sabendo
que seguiria em direção do abismo.
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