1/04/2019

Mário Pederneiras, o poeta da cidade (Crítica Literária)



Mário Pederneiras, o poeta da cidade

Eu sempre tive, pela poesia de Mário Pederneiras, o amor, o carinho e a predileção que, além das coisas literárias, só voto às mulheres bonitas.

E não é sem razão que nutro pelo poeta carioca, tão amargurado em sua vida cheia de tropeços, a mais viva e leal simpatia, feita da admiração que nos devem merecer os que, embora bracejando no meio da tormenta, ainda sabem erguer os olhos para a luz esplêndida das estrelas...

O que encanta e prende a atenção, de início, em Mário Pederneiras, é a simplicidade e singeleza extremes de sua maneira de versejar. Na verdade, nin­guém mais do que ele apurou a clareza e espontaneidade de expressão.

O trago característico, ou, por assim dizer, o que ocupa lugar de acentuado realce, em sua poesia, talvez seja a calmaria, a paz de espírito, o recolhi­mento da alma... Todos os seus versos respiram um ambiente tranquilo, sossegado, feito de mansidão e de bonança. Não foi, como tantos outros, um torturado, um demônio com centelhas de gênio, assaltado, a cada passo, pelas visões dantescas do ignoto da dúvida.

Goteja, a cada instante, de seu estro delicado, o voo gracioso da borboleta multicor, varando o roseiral para sorver todo o perfume e todo o néctar da flor.

Ocupou-se sobremaneira em celebrar, em versos de inefável beleza, a paisagem urbana, com suas ruas amigas, seus logradouros românticos, suas ár­vores evocatórias...

A cidade onde abriu os olhos para as belezas do mundo, foi o seu amor maior, o seu cuidado de sem­pre, a sua constante preocupação...

Era feliz com ela, quando a via alegre e satisfeita; com ela soluçava, partilhando a sua dor, quando, acaso, à surpreendia merencória. Foram, afinal de contas, dois bons amigos, leais, sinceros e verdadeiros, esse poeta quase esquecido e essa terra gloriosa, tecida por mãos de fada e banhada por sol de ouro...

Certo, entre a cidade que o Rio foi ontem, e a cidade que é hoje, vai uma enorme distância... A distância que separa a gralha, do pavão; o pobre, do rico; o vagalume, da estrela...

Naquele tempo, a capital do país dormia o seu largo sonho remansoso de adolescente linda e ingênua. Vestia o seu vestidinho de chita, que lhe caía até os pés, envolvendo-lhe, pudicamente, a ponta do tornozelo, não usava rouge e não aparava cabelos...

Depois... com os anos... se foi vendo ao espelho e não mais quis saber do vestido modesto, das cores naturais e do cabelo crescido... Passou a copiar figurinos franceses e americanos, e toda ela se perfumou com as essências caras e se enfeitou com joias de alto preço...

Agora... o Rio ó este milagre, como uma visão de sonho, que todos nós vemos e admiramos: a arquitetura colonial, trocou-a pelo esplendor dos arranha-céus, e deixou de lado as ruelas tortuosas, pelo brouhaha das avenidas largas e magníficas.

Finalmente, surgiu o rádio, que, mais eficiente talvez do que a poesia, espalha pelas cinco partes do mundo as graças e os encantos insuperáveis da Cidade Maravilhosa...

***

Mário Pederneiras apareceu no meio literário da capital da República, com um livro de poesias, Agonia. Era então o tempo em que a poesia, com Mallarmé e Verlaine, em França, e, no Brasil, com Cruz e Sousa e seus epígonos, acabara de passar por uma revolução que escandalizara os velhos parnasianos, amantes do verso brunido e requintado.

As cinzas desse imenso braseiro ainda estavam acesas, inflamadas, crepitantes, e o livro de Mário Perneiras, obedecendo, em parte, aos métodos da nova escola, provocou celeuma, merecendo os aplausos de uns e o sorriso cético de outros.

Mais tarde, outros volumes vieram, já estranhos, diferentes, sem os excessos e o gongorismo do primeiro. Sua poesia agora é melancólica, sentida, trazendo um grande desengano. E é por isso que Histórias do meu casal, Ao leu do sonho e á mercê da vida e, por fim, o Outono, a que o autor, prevendo morte próxima, lhe chamou o Canto do cisne, são de sentimento tão humano, tão pungente...

Em Histórias do meu casal há um soneto delicioso, merecia ser lido, senão decorado, pelos amantes boa poesia:

Fica distante da cidade e em frente
À remansosa paz de uma enseada,
Esta dos meus romântica morada
Que olha de cheio para o sol nascente.

Árvores dão-lhe a sombra desejada
Pela calma feição de minha gente,
E ela toda se ajusta, ao som dolente
Dos cânticos que o mar lhe chora à entrada.

dentro o teu olhar de calmos brilhos,
Todo o meu bem e todo o meu empenho,
E a sonora alegria de meus filhos.

Outros que tenham com mais luxo o lar,
Que a mim me basta, Flor, o que aqui tenho,
Árvores, filhos, teu amor e o mar.

Vivia assim, o poeta, satisfeito e feliz com a alegria radiosa de Lia e Luzia, dois pedacinhos encantadores de gente, filhos da sua ternura, quando a morte os arrebata para longe de seus olhos.

É então que se opera uma transformação repen­tina na poesia de Mário Pederneiras. Já agora ele não mais se sentirá feliz, na quietude do lar, com cantigas do mar chorando à porta.

Encontramos, depois, na segunda parte de Histórias do meu casal, intitulada Vale da Ventura, as primeiras notas daquela tristeza que o devia acompanhar até a sepultura:

Ninguém mais viu aquela gente obscura,
No pequenino vale da ventura...

***

Mário Pederneiras!

A tua cidade hoje cresceu, é grande, é moça e é bonita. Contudo, jamais poderá esquecer-se de ti, que foste, verdadeiramente, o seu melhor cantor, nem daqueles lindos versos em que derramaste toda a tua ternura por ela.

Que queres tu, oh, minha terra linda!
De luz que não se acaba e céu que se não finda!
Se orgulhoso prefiro
Tudo que vem de ti,
Tudo que sei que é teu?
E na rude emoção do meu Verso proclamo
A beleza imortal da terra em que nasci,
Em que vivo e que amo!
E, demais, quem não ama a terra em que nasceu?


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ÁLVARO MARINHO REGO
Revista "Fon-Fon", 1 de fevereiro de 1936.
Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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