ESTALO ILUMINATIVO
Desde
que perdeu a companheira num grave acidente de automóvel, ficou assim introspectivo
e com ar de velho filósofo.
Passava
a maior parte do tempo lendo os escritores russos, especialmente Leon Tolstoi,
do qual já tinha lido todas as traduções para o idioma português, inclusive
duas vezes o clássico “Guerra e Paz”.
Raramente
era visto conversando com alguém, e quando o fazia, esforçava-se para não falar
de si próprio.
Tencionava
escrever um livro, um romance ambientado no século XVIII. Disse-me, certa vez,
que apenas aguardava o "estalo iluminativo" para dar o pontapé
inicial ao seu ambicioso projeto literário.
Acerca
do tal "estalo iluminativo", explicou-me ele que seria o momento
propício, e que tal conceito não estava sujeito à sua própria vontade,
acrescentando ainda que não poderia ser traduzido por palavras.
Antes
do falecimento da mulher era um homem verdadeiramente distinto, o tipo a quem se pode de fato
atribuir o rótulo de “popular”, um frequentador contumaz de botecos e um grande
apreciador dos destilados, especialmente o bom vinho aguardentado Vermute.
Não
se sabe exatamente se a metamorfose porque passou fora consequência da dor pela
perda da esposa ou se o simples resultado de ponderações filosóficas que fizera
acerca da morte e da vida. Essa incerteza vinha da constatação de ter ele
vivido um relacionamento deveras conturbado, em contínuas brigas e até uma
separação prolongada de dez meses. Acrescente-se a isto o inusitado flagrante,
no qual fora visto, uma semana após o óbito da mulher, com uma morena de
encantador requebro.
Atualmente
vive dos aluguéis de três casas herdadas da família. Antes era funcionário
público concursado, trabalhando como escriturário numa das repartições do
Estado, até o falecimento do pai.
Mora
numa casa simples de um modesto bairro da cidade, porém muito bem cuidada e
elegantemente mobiliada. Visitas por lá geralmente só em datas especiais, como
no Natal, quando dá estadia a uns parentes vindos do Rio Grande do Norte.
Há
alguns dias encontrei-o num ônibus. Ia ao médico. Sofria de gastrite nervosa e
tinha frequentes crises de renite alérgica. Conversamos pouco. Perguntei-lhe se
tinha intenção de contrair um novo matrimônio, ao que ele respondeu que sim,
mas não por hora.
—
Ainda aguardo aquele "estalo iluminativo" — disse-me com certo tom de
galhofa.
Convidei-o
para almoçar no domingo em minha casa. Não houve qualquer evasiva. Aceitou de
pronto o convite e despedimo-nos.
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Não
veio ao almoço. Ligou-me para pedir desculpas e para justificar as razões da
ausência. Dizia que estava preso a um relevante projeto. Indaguei-lhe então se
se tratava daquele romance. Sorrindo, disse que sim, que se tratava de um
“romance”.
É
o “estalo iluminativo”! pensei intrigado.
Equivoquei-me.
Era o casamento do nosso filósofo com uma senhora de origem russa, viúva e
vinte anos mais velha do que ele. Amanhã seguirão de lua de mel para Moscou.
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