2/03/2019

O último adeus (Conto), de Iba Mendes



O ÚLTIMO ADEUS

Sentado numa cadeira estilo “Luís XV” o ancião fumava seu velho cachimbo de barro, pensando na vida e nas mulheres que havia amado. Não foram muitas, mas o bastante para prolongadas digressões e refletidas baforadas.

Havia quinze anos que perdera sua última esposa. De lá para cá se manteve todo o tempo como um verdadeiro celibatário. Acerca disso dizia aos mais íntimos que não tinha idade nem paciência para uma "nova empreitada".

— Mulher é um bicho muito bom, mas dá um trabalho! — costumava pilheriar assim com os amigos.

Sua opção pela autoclausura não se deveu, entretanto, à ausência de oportunidades. Ao contrário, desde sua viuvez muitas foram as pretendentes, algumas das quais, diga-se de passagem, na chamada “flor da idade”.

Não teve filhos. Quanto a isto costumava brincar, parafraseando Machado de Assis, nas suas “Memórias Póstumas”:

— Não tive filhos, e não transmitirei a nenhuma criatura o legado do meu cachimbo.

Morava sozinho numa pequena casa na esquina de uma das mais antigas ruas da cidade. Foi ali que conheceu seu último e verdadeiro amor. Foi ali que o perdeu para sempre. E era ali onde desejava permanecer até o seu derradeiro adeus.

Recebia poucas visitas, e tinha a seu favor uma saúde rara para a idade. Quando lhe perguntavam se nutria o hábito de ir aos médicos, respondia que fora apenas três vezes, e acrescentava rindo às escancaras:

— Mas foi no enterro deles!

Não frequentava nenhuma religião, embora tivesse na Bíblia o seu livro de cabeceira. Possuía também uma pequena biblioteca com cerca de duzentos livros, dos quais a obra completa de Machado de Assis e Manuel Bandeira. Aliás, sobre o autor de “Dom Casmurro”, dizia que depois das Escrituras era ele sua grande fonte de inspiração.

Não gostava de televisão, conquanto nutrisse de inestimável apreço pelo rádio, principalmente pelas programações com músicas do seu tempo:

— Não para lembrar o passado — explicava — mas para comemorar o presente, as coisas boas da vida, como o meu café e o meu cachimbo.

Nunca fora visto queixando-se ou lastimando-se por algum desregramento cometido nos tempos de outrora. Repetia sempre, fazendo uso do poeta, “que seus ombros não podiam suportar o passado”.

— Deixo minhas culpas para vocês que se incomodam tanto com elas — gracejava aos seus questionadores.

Com o correr do tempo acostumou-se a esquecer de seus próprios aniversários, e já não se importava com a idade ou com a morte.

— Depois dos oitenta, o que vier é lucro! — dizia com muito bom humor.

***

Era domingo de um deslumbrante ensolarado. Neste dia, como era seu costume, foi à feira pública se distrair e comprar algumas coisas. Comprou apenas um par de sapatos.

— É uma nova namorada? — indagou num tom espirituoso o dono da banca.

— Nada, vou fazer uma viagem longa, muito longa! — replicou com aquele seu riso singular e espontâneo.

Sentindo sua ausência, dias depois alguns amigos bateram à sua porta, que estava apenas encostada. Chamaram-no várias vezes pelo nome, porém não houve resposta. Entraram assustados. Sobre uma mesinha de mogno na cozinha havia um rádio ligado, que naquele instante tocava “A Volta do Boêmio”, de Nelson Gonçalves. Percorreram cada recinto da casa. Não encontram sinal de vida. Ao desligar o aparelho, notaram sobre ele o seu velho cachimbo e um pedaço de papel de pão com o seguinte trecho de um conhecido poema de Manuel Bandeira:

“Vou-me embora pra Pasárgada,
Lá tenho a mulher que eu quero,
Na cama que escolherei”...

Este foi este seu último adeus.

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