2/03/2019

Mistérios (Conto), de Iba Mendes


MISTÉRIOS 

Sempre fora avesso a superstições e via as crendices populares como coisa de gente ignorante e sem instrução. Agora, porém, passando bem ali no Viaduto do Chá, sente-se como que atraído pela movimentação das videntes, que deitam suas cartas e adivinham o futuro dos passantes. Três ciganas com suas bocas reluzentes de ouro aproximam-se dele e lhes oferecem prazenteiras para ler sua mão. Um tanto vacilante em seu ceticismo, pensa por um momento em ceder aos insistentes apelos daquelas profetisas de rua; logo, porém, dissuade-se pela lembrança de Carl Sagan e do seu “O Mundo Assombrado pelos Demônios”. Tomado de agitada confusão, declina da sedutora oferta e sai andando imerso em conjecturas existenciais, invocando mentalmente a Hamlet, o qual fez notar a Horácio que há mais coisas no céu e na terra do que sonha as vãs filosofias humanas. Enche-se então de curiosidade e se convence que nada há a perder em... ademais, ninguém precisa ficar sabendo...

Ao retornar, já no fim da tarde, passa pelo mesmo viaduto, ficando estacionado ali a espiar mais uma vez as cartomantes debaixo de seus imensos guarda-sóis. Permanece assim parado por alguns minutos, quando uma delas, notando seu aparente estado de inquietação, manda-o aproximar fazendo um sinal com a mão, ao que ele atende de pronto.

— Sente-se... Noto que o senhor parece muito desejoso por conhecer o seu futuro, estou certa disso?

— Creio que sim — respondeu ele olhando desconfiado para os lados, como se tivesse receoso de ser notado por algum conhecido.

— Vejamos então o que dizem os búzios...

Após uma breve invocação aos orixás, a vidente toma os búzios, fricciona-os mansamente, erguendo as mãos até a fronte e movimentando-as de um lado para o outro. Em seguida esparrama os objetos sobre uma pequena mesa, mantendo o olhar fixo no seu cliente, o qual se mostra a todo tempo alerta e apreensivo.

— Hum... hum... Aqui diz que o senhor está arrostado com dois grandes problemas, um na área financeira e o outro na esfera amorosa... Os búzios têm razão?

Dominado por uma força nova e misteriosa, ele a encarou espantado e confirmou que sim, que de fato estava passando por grandes dificuldades financeiras, e que no âmbito amoroso as coisas iam de mal a pior.

— Os búzios revelam ainda — continua a vidente — que muito em breve sua vida passará por grandes transformações. Até lá — arremata como que perscrutando os pensamentos do homem — mantenha a serenidade de espírito e busque urgentemente apegar-se com os orixás.

Num suspiro aliviado, ele tira uma nota de cinquenta reais, e dá-lha com um sorriso expansivo no rosto. Ela também sorri com um ar de quem ganhara o dia. O valor combinado pelo serviço era de vinte reais.

— Venha mais vezes — despede-se a adivinha como se quisesse vê-lo no dia seguinte.

Abrimos aqui um parêntese para esclarecer que o nosso homem estava separado há seis meses da mulher, com a qual pretendia reatar a relação. Ela, porém, já aspirava novos ares e vivia feliz ao lado de outro, um baiano que conhecera ainda quando era solteira e com o qual tencionava ir ao altar pela segunda vez. É preciso esclarecer ainda que ele trabalhava numa repartição pública do Estado, nomeado há dois anos por influência de um parente, amigo de um deputado. Uma vez que este saíra derrotado na última eleição, vivia na expectativa de ser exonerado, o que lhe trazia grandes inquietações.

Não demorou muito e as mudanças começaram a cair sobre ele como as tempestades de verão. Não se sabe, porém, se foram o resultado dos búzios por influência dos orixás, ou se mera consequência do acaso conforme Sagan. O fato é que perdera o emprego e amargara o desgosto de ver a mulher contrair segundas núpcias com o esbelto nordestino.

“...muito em breve sua vida passará por grandes transformações...”

Enquanto andava, pensou nas palavras da cartomante e vislumbrou mentalmente nelas um poderoso mistério. Ela previu que ocorreriam mudanças, entretanto não especificou se seriam boas ou ruins. Eis aí tudo.

Se lhes não baixavam os orixás, descia-lhe sobre ele Hamlet: “Há mais coisas no céu e na terra do que sonha o nosso ceticismo”. Foi assim que se lhe brotou um desejo ardente em consultá-la só mais uma vez... Sim, pois, que perdia ele se...

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