2/16/2019

O cético (Conto), de Iba Mendes



O CÉTICO 

Repentinamente e sem qualquer razoável explicação passou a manifestar um pavor obsessivo pelo inferno, e de tal modo que a simples flama de uma vela causava-lhe um calafrio por todo o corpo, ao que se seguiam uma súbita alteração dos batimentos cardíacos e uma prolongada secura na boca.

Com o decorrer dos meses entrou a sofrer de pirofobia, que é o medo mórbido do fogo. Não suportava cenas de incêndio, e qualquer sinal de fumaça ou mesmo uma simples fagulha de um rojão eram para ele como se fossem chispas incandescentes a alertar-lhe sobre o fatal destino dos miseráveis pecadores.

Não foi por outra razão que abdicou de ser bombeiro, que era uma tradição na família e também o grande sonho do pai. Imaginava incêndios infernais devorando suas carnes, enquanto sirenes atordoantes anunciavam a chegada do juízo final.

Desconhece-se a exata razão que fez despertar nele todo este sentimento de angústia e pavor pelas chamas. Suspeita-se que principiou quando ainda era meninote, lá pelos cincos anos de idade, com as histórias da Literatura de Cordel, que sua avó lhe contava todos os dias antes de dormir. Também entram nesse imbróglio de hipóteses as aulas dominicais de catecismo, com as quais aprendeu acerca da condenação eterna dos ímpios no lago de fogo e enxofre, onde estão a besta e o falso profeta. Acrescente-se ainda a todo esse emaranhado de especulações o seu grande fascínio por filmes de suspense e terror, especialmente aqueles produzidos pelo grande cineasta Alfred Hitchcock.

Triste, exausto, aborrecido, empenhou-se com muito afinco na superação do singular problema. E para isso principiou pelos divãs nos consultórios psiquiátricos. Sem lograr quaisquer resultados práticos, buscou em seguida o auxílio das religiões, das seitas secretas, das igrejas pentecostais, dos despachos nas encruzilhadas, das sessões espíritas, dos rituais mágicos dos anjos, das cartas de tarô, da meditação transcendental, entre muitos outros ramos da mística universal. Mas tudo foi em vão. O medo das labaredas infernais perseguia-o à mercê de todo o seu esforço para se livrar dele. Por último, entregou-se de corpo e alma ao ceticismo. Foi quando passou a ler os filósofos existencialistas e niilistas. Em uma semana deglutiu toda a obra de Friedrich Nietzsche. Debruçou-se ainda sobre Charles Darwin e outros cientistas da vertente evolucionista. Leu seguidamente três vezes “O Mundo Assombrado pelos Demônios”, de Carl Sagan, com o qual se rendeu por inteiro ao novo ateísmo.

Sentia-se, por fim, livre dos grilhões do inferno, inteiramente liberto do poder dantesco do fogo. Uma vez livre de Deus, pensava com um suspiro aliviado, não restaria mais nenhuma razão para se preocupar com o diabo, e menos ainda com o inferno e tudo o que a ele se relacionava.

Era pois preciso comemorar tão grande libertação. Foi com este fim que convidou os melhores amigos da faculdade para um baile à fantasia, a ser realizado na mansão de um abastardo tio, que lhe cedera de bom grado o imóvel, com a única condição de que o devolvesse na ordem exata em que lhe foi entregue. O mesmo tio, por quem nutria grande devoção, financiou o evento. Era ele um próspero comerciante da cidade, proprietário de uma grande madeireira e fabricante de móveis para uso doméstico.

A solenidade foi batizada de “a bacanália”, em referência à celebração realizada na antiga Roma, em honra a Baco, o inventor mitológico do vinho. Formalizou-se a regra pela qual fosse barrada a entrada de quem não estivesse devidamente vestido a caráter. A criatividade era livre...

***

Veio a noite do baile. Tem-se início à “bacanália”. O primeiro a chegar é um homem da caverna, seguido de uma bruxa e de um vampiro. O anfitrião está elegantemente vestido de bombeiro, e sua namorada de uma sedutora deusa grega. Vieram em seguida Homer Simpson, Bob Esponja e a Mulher-Gato. Adiante chegaram a Chapeuzinho Vermelho, o Chapeleiro Louco, a Noiva Cadáver, entre outros ilustres personagens da imensa fauna televisiva e cinematográfica.

Deu meia-noite. O ambiente está euforicamente animado. Bebidas, som estonteante, gemidos sussurrantes, gritos e explosões de risos fazem realçar o aspecto carnal de um bacanal dionisíaco.

— À liberdade, à liberdade! — grita o bombeiro com um copo na mão, enquanto é voluptuosamente beijado pela sua encantadora divindade grega.

Lá fora chove muito. Um forte barulho provocado por uma descarga elétrica faz apagar a luz do recinto... Mais gritos e mais gargalhadas... A festa prossegue dionisiacamente alucinante... Um enorme trovão rolou nos ares...

Alguém bate à porta. O anfitrião vai atender. Abre-a e, súbito, dá de cara com o Capeta, que traz consigo numa mão um tridente e na outra uma tocha acesa. Um intenso calafrio corre-lhe por todo o corpo. O coração dispara... A boca seca... Suor cai-lhe em baga pela testa... Tremendo e todo pálido, sai em disparada debaixo da chuva... Os raios cortam os céus... O cético desaparece na escuridão...

É o recomeço do seu inferno...

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