
O CÉTICO
Repentinamente
e sem qualquer razoável explicação passou a manifestar um pavor obsessivo pelo
inferno, e de tal modo que a simples flama de uma vela causava-lhe um calafrio
por todo o corpo, ao que se seguiam uma súbita alteração dos batimentos
cardíacos e uma prolongada secura na boca.
Com
o decorrer dos meses entrou a sofrer de pirofobia, que é o medo mórbido do
fogo. Não suportava cenas de incêndio, e qualquer sinal de fumaça ou mesmo uma
simples fagulha de um rojão eram para ele como se fossem chispas incandescentes
a alertar-lhe sobre o fatal destino dos miseráveis pecadores.
Não
foi por outra razão que abdicou de ser bombeiro, que era uma tradição na
família e também o grande sonho do pai. Imaginava incêndios infernais devorando
suas carnes, enquanto sirenes atordoantes anunciavam a chegada do juízo final.
Como
já foi dito, desconhece-se a exata razão que fez despertar nele todo este
sentimento de angústia e pavor pelas chamas. Suspeita-se que principiou quando
ainda era pequenino, lá pelos cincos anos de idade, com as histórias da
Literatura de Cordel, que sua avó lhe contava todos os dias antes de dormir.
Também entram nesse imbróglio de hipóteses as aulas dominicais de catecismo,
com as quais aprendeu acerca da condenação eterna dos ímpios no lago de fogo e
enxofre, onde estão a besta e o falso profeta. Acrescente-se ainda a todo esse
emaranhado de especulações o seu grande fascínio por filmes de suspense e
terror, especialmente aqueles produzidos pelo grande cineasta Alfred Hitchcock.
Triste,
exausto, aborrecido, empenhou-se com muito afinco na superação do singular transtorno.
E para isso começou pelos divãs e nos consultórios psiquiátricos. Sem lograr
quaisquer resultados práticos nas brenhas freudianas, buscou em seguida o
auxílio das religiões, das seitas secretas, das igrejas pentecostais, dos
despachos nas encruzilhadas, das sessões espíritas, dos rituais mágicos dos
anjos, das cartas de tarô, da meditação transcendental, entre muitos outros
ramos da mística universal. Mas tudo isso foi em vão. O medo das labaredas
infernais perseguia-o à mercê de todo o seu esforço para se livrar dele. Por
último, entregou-se de corpo e alma ao ceticismo. Foi quando passou a ler os
filósofos existencialistas e niilistas. Em uma semana deglutiu toda a obra de
Friedrich Nietzsche. Debruçou-se ainda sobre Charles Darwin e outros cientistas
da vertente evolucionista. Leu seguidamente três vezes “O Mundo Assombrado
pelos Demônios”, de Carl Sagan, com o qual se rendeu por inteiro ao novo
ateísmo.
Sentia-se,
por fim, livre dos grilhões do inferno, inteiramente liberto do poder dantesco
do fogo. Uma vez livre de Deus, pensava com um suspiro aliviado, não restaria
mais nenhuma razão para se preocupar com o diabo, e menos ainda com o inferno e
com tudo o que a ele se relacionava.
Era,
pois, preciso comemorar tão grande libertação!
Foi
com este fim que convidou os melhores amigos da faculdade para um baile à
fantasia, a ser realizado na mansão de um abastardo tio, que lhe cedera de bom
grado o imóvel, com a única condição de que o devolvesse na ordem exata em que
lhe foi entregue. O mesmo tio, por quem nutria grande devoção, financiou o badalado
evento. Era ele um próspero comerciante da cidade, proprietário de uma grande
madeireira e fabricante de móveis para uso doméstico, o qual encontrou no
sobrinho o filho que não quis ter tido.
A
solenidade foi batizada de “a bacanália”, em referência à celebração realizada
na antiga Roma, em honra a Baco, o inventor mitológico do vinho. Formalizou-se
a regra pela qual fosse barrada a entrada de quem não estivesse devidamente
vestido a caráter, ou seja, quem não estivesse caracterizado por alguma
fantasia. A criatividade, porém, era livre...
***
Chegou,
enfim, a tão ansiada noite do baile. Tem-se início à “bacanália”. O primeiro a
chegar é um homem da caverna, seguido de uma bruxa e de um vampiro. O anfitrião
está elegantemente vestido de bombeiro, e sua namorada de uma sedutora deusa
grega. Vieram em seguida Homer Simpson, Bob Esponja e a Mulher-Gato. Adiante
chegaram a Chapeuzinho Vermelho, o Chapeleiro Louco, a Noiva Cadáver, entre
outros ilustres personagens da imensa fauna televisiva e cinematográfica.
Deu
meia-noite. O ambiente está euforicamente animado. Bebidas, som estonteante,
gemidos sussurrantes, gritos e explosões de risos fazem realçar o aspecto
carnal de um bacanal dionisíaco.
—
À liberdade, à liberdade! — grita o bombeiro com um copo na mão, enquanto é
voluptuosamente beijado pela sua encantadora divindade grega.
Lá
fora chove muito. Um forte barulho provocado por uma descarga elétrica faz
apagar a luz do recinto... Mais gritos e mais gargalhadas... A festa prossegue
dionisiacamente alucinante... Um enorme trovão rolou nos ares e uma tempestade rebentou
sobre o recinto.
Alguém
bate à porta. O anfitrião vai atender. Abre-a e, súbito, dá de cara com o
Capeta, que traz consigo numa mão um tridente e na outra uma tocha acesa. Um
intenso calafrio corre-lhe por todo o corpo. O coração dispara... A boca
seca... O suor cai-lhe em baga pela testa... Tremendo e todo pálido, sai em
disparada debaixo da chuva... Os raios cortam os céus... O cético desaparece na
escuridão...
É o recomeço do seu inferno...
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...