PEREGRINANDO NO HADES
Estava
naquele instante da vida em que o homem se vê diante de uma encruzilhada
existencial, quando se desponta em seu turvo horizonte um emaranhado de dúvidas
que o faz questionar tudo e a todos. É quando ele sente, tal qual Hamlet, que
há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa vã filosofia.
Até
ali, fora um amante contumaz da libertinagem e do prazer. Acreditava que a
satisfação dos desejos era em si mesma o princípio e o fim de uma vida
bem-aventurada. Quando lhe perguntavam se era feliz, dizia que a busca desesperada
pela felicidade era a própria infelicidade do homem, pois o tornava submisso a algo
impossível de ser alcançado. O que verdadeiramente importava, concluía quase em
êxtase, eram os momentos que tornavam a vida menos afortunada, e isso podia
estar numa conversa banal de botequim, numa simples xícara de café ou ainda num
beijo de uma mulher feia.
Até
ali, nunca havia se preocupado com questões metafísicas ou transcendentais.
Encarava a morte como encarava a própria vida, isto é, como parte de um
processo natural, do mesmo modo como se dava com as andorinhas e os cogumelos.
Agora, porém, sentiu uma poderosa impulsão ao que transcendia para além dos
limites da normalidade ou do puramente biológico. Preocupava-o, doravante, as controvérsias
acerca da existência divina, os assuntos relacionados à imortalidade da alma,
os grandes dogmas das religiões, os enigmas que assombram os homens, enfim,
tudo aquilo porque até então não nutria qualquer interesse. Todavia, entre
todas as questões que se elevavam acima do homem, a que mais lhe intrigava e a
que mais lhe obstinava a curiosidade, eram as doutrinas que versavam sobre o
misterioso inferno. O assunto de tal modo o impressionava que pactuou com ele
sua própria conversão: abraçaria a religião que melhor lhe expusesse a doutrina
do hades, o tenebroso subterrâneo dos mortos. A isto ele denominou de "a
busca da suprema verdade", que seria o desfecho místico que faria sua alma
"repousar em pastos verdejantes", sem se preocupar com mais nada.
Durante
longos anos peregrinou o nosso homem por
um rosário de religiões. Na igreja pentecostal fora advertido de que o inferno
era um lugar tenebroso, habitado pelo diabo e seus anjos, onde o tormento não
cessa um só instante e onde serão lançados todos os ímpios que não se arrependerem
de seus pecados. Na Igreja Católica, foi informado que as almas dos que morrem
em estado de pecado mortal seguem imediatamente após a morte ao inferno, onde
sofrerão as penas do fogo eterno, de modo que, uma vez lançadas na escuridão
eterna, não poderão jamais receber perdão para os pecados que cometeram aqui na
terra. No Espiritismo aprofundou-se nos estudos das doutrinas de Allan Kardec,
e aprendeu que o inferno está em qualquer lugar onde houver almas atormentadas,
o que equivale dizer que não existe um local específico de sofrimento eterno, o
qual esteja reservado aos espíritos imperfeitos, local este que algumas
vertentes dessa religião dão o nome de "umbral", cuja origem está nos
escritos do grande médium Chico Xavier. No judaísmo ficou sabendo que não
existe propriamente uma doutrina sobre o céu e o inferno, e que a ênfase
fundamental da crença recai sobre o mundo em que se vive, pois é somente aqui
que podemos exercer o nosso livre arbítrio; é onde decidimos acerca do bem e do
mal e sobre o que queremos para nós mesmos e para aqueles que nos cercam. No
islamismo foi advertido que a morte representa a passagem do homem para outro
estágio de vida, onde ele ficará aguardando o grande Dia do Juízo, quando só
então cada um saberá se irá para o paraíso ou se para o inferno. Seria assim
uma espécie de "plano intermediário", que não é exatamente nem o céu
nem o inferno. No temível Dia do Juízo, quando Allah julgar cada um conforme
suas obras, então haverá a recompensa final. Os que se fizeram merecidos, isto
é, os justos, estes serão galardoados com o paraíso; já os infiéis, ou seja, os
que não obraram conforme a retidão e a justiça, esses serão lançados no fogo do
inferno, onde permanecerão eternamente. No Budismo, que é fortemente
influenciado pelos preceitos hinduístas, fora instruído que a alma, ao
desprender-se do corpo, adentra numa espécie de túnel luminoso. Ali ela encontrá
vários portais, que são os compartimentos do desejo, do medo, do prazer, da
ambição, do ódio, entre outras sensações, e onde permanecerá o tempo necessário
conforme o modo em que vivia enquanto estava encarnada, ou seja, enquanto
estava no seu estado de consciência individual. Uma pessoa, por exemplo, que se
apegou tenazmente à gula, ficará mais tempo no portal destinado aos alimentos. Superada
a sua compulsão, ela se libertará daquele local e seguirá então seu processo
reencarnatório, até atingir, por fim, o Nirvana.
Enfim,
deu por concluída sua longa peregrinação ao "inferno". Agora, eis que
ali, sozinho no quarto, a mirar o teto, com a cabeça entre as mãos, tinha ao
redor de si um amontoado de folhas com anotações confusas, algumas das quais
realçadas com duplos círculos e rubros traços; dispersos sobre a cama, via-se
alguns luxuosos exemplares de livros sagrados, incluindo aí o Alcorão Santo no original árabe e a tradução latina da Bíblia feita por São Jerônimo; e,
sobre uma velha estante de madeira, sobressaía uma grande ampulheta de puro
mogno, de cuja âmbula superior escorria uma areia fina e azul; tudo isso
reunidos entre si parecia destinados a uma mesma finalidade, e de tal modo que
deixava o ambiente imerso numa áurea do puro mistério, ao mesmo tempo em que
tornava a ocasião inevitavelmente propensa ao grande e esperado epílogo. Teria,
enfim, chegado a uma decisão final?
Bruscamente
voltou a si como se houvesse decifrado um enigma sagrado. Em movimentos
rápidos, recolheu de sobre a cama as escrituras santas e reuniu numa só pasta
toda mixórdia de papéis. Em seguida, dirigiu-se ao armário e retirou dentre
seus preciosos souvenires, sua velha e elegante Remington Star, uma raridade
datada de 1969, a qual ganhara do pai pouco antes do seu falecimento. Posta
esta sobre a mesa, sentou-se, fechou os olhos e, num lampejo quase profético,
começou a escrever impetuosamente como se tivesse alcançado o sétimo céu:
ESTATUTO
DOUTRINÁRIO DA NOVA IGREJA MUNDIAL
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