

Peregrinando no Hades
Estava naquele
instante da vida em que o homem se vê diante de uma encruzilhada existencial,
quando se desponta em seu turvo horizonte um emaranhado de dúvidas que o faz
questionar tudo e todos. É quando ele sente, tal qual Hamlet, que há mais
coisas no céu e na terra do que sonha a nossa vã filosofia.
Até ali, fora
um amante contumaz da libertinagem e do prazer. Acreditava que a satisfação dos
desejos era em si mesma o princípio e o fim de uma vida bem-aventurada. Quando
lhe perguntavam se era feliz, dizia que a felicidade era a própria infelicidade
do homem, pois o tornava submisso a uma busca impossível de ser alcançada. O
que verdadeiramente importava, concluía quase em êxtase, eram os momentos que
tornavam a vida menos afortunada, e isso podia estar numa banal garrafa de rum,
numa simples xícara de café ou mesmo num beijo de uma mulher feia.
Até ali, nunca
havia se preocupado com questões metafísicas ou transcendentais. Encarava a
morte como encarava a própria vida, isto é, como parte de um processo natural,
do mesmo modo como se dava com as andorinhas e os cogumelos. Agora, porém,
sentiu uma poderosa impulsão ao que transcendia para além dos limites da
normalidade ou do puramente biológico. Preocupava-o, agora, as controvérsias
acerca da existência divina, os assuntos relacionados à imortalidade da alma,
os grandes dogmas das religiões, os enigmas que assombram os homens, enfim,
tudo aquilo porque até não nutria qualquer interesse. Todavia, entre todas
essas questões o que mais lhe intrigava e o que mais obstinava sua curiosidade,
eram as doutrinas que versavam sobre o misterioso inferno. O assunto de tal
modo o impressionava que pactuou com ele sua própria conversão: abraçaria a
religião que melhor lhe expusesse a doutrina do hades, o tenebroso subterrâneo
dos mortos. A isto ele denominou de "a busca da suprema verdade", que
seria o desfecho místico que faria sua alma "repousar em pastos
verdejantes", sem se preocupar com mais nada.
Durante cincos
longos anos peregrinou o nosso homem por um rosário de religiões. Na igreja
pentecostal fora advertido de que o inferno era um lugar tenebroso, habitado
pelo diabo e seus anjos, onde o tormento não cessa um só instante e onde serão
lançados todos os ímpios que não se arrependeram de seus pecados. Na Igreja
Católica, foi informado que as almas dos que morrem em estado de pecado mortal
seguem imediatamente após a morte ao inferno, onde sofrerão as penas do fogo
eterno, de modo que, uma vez lançadas na escuridão eterna, não poderão jamais
receber perdão para os pecados que cometeram aqui na terra. No Espiritismo
aprofundou-se nos estudos das doutrinas de Allan Kardec, e aprendeu que o
inferno está em qualquer lugar onde houver almas atormentadas, o que equivale
dizer que não existe um local específico de sofrimento eterno, o qual esteja
reservado aos espíritos imperfeitos, local este que algumas vertentes dessa
religião dão o nome de "umbral", cuja origem está nos escritos do
grande médium Chico Xavier. No judaísmo ficou sabendo que não existe
propriamente uma doutrina sobre o céu e o inferno, e que a ênfase fundamental
da crença recai sobre o mundo em que se vive, pois é somente aqui que podemos
exercer o nosso livre arbítrio; é onde decidimos acerca do bem e do mal e sobre
o que queremos para nós mesmos e para aqueles que nos cercam. No islamismo foi
advertido que a morte representa a passagem do homem para outro estágio de
vida, onde aguardará o grande Dia do Juízo, quando só então cada um saberá se
irá para o paraíso ou se para o inferno. Seria assim uma espécie de "plano
intermediário", que não é exatamente nem o céu nem o inferno. No temível
Dia do Juízo, quando Allah julgar cada um conforme suas obras, então haverá a
recompensa final. Os que se fizeram merecidos, isto é, os justos, estes serão
galardoados com o paraíso; já os infiéis, ou seja, os que não obraram conforme
a retidão e a justiça, esses serão lançados no fogo do inferno, onde
permanecerão eternamente. No Budismo, que é fortemente influenciado pelos
preceitos hinduístas, fora instruído que a alma, ao desprender-se do corpo, adentra
numa espécie de túnel luminoso. Ali ela vai encontrar vários portais, que são
os compartimentos do desejo, do medo, do prazer, da ambição, do ódio, entre
outras sensações, e onde permanecerá o tempo necessário conforme o modo em que
vivia enquanto estava encarnada, ou seja, enquanto estava no seu estado de
consciência individual. Uma pessoa, por exemplo, que se apegou tenazmente à
gula, ficará mais tempo no portal destinado aos alimentos. Superada a sua
compulsão, ela se libertará daquele local e seguirá então seu processo
reencarnatório, até atingir, por fim, o Nirvana.
Enfim, deu por
concluída sua longa peregrinação ao "inferno". Agora, eis que ali,
sozinho no quarto, a mirar o teto, com a cabeça entre as mãos, tinha ao redor
de si um amontoado de folhas com anotações confusas, algumas das quais
realçadas com duplos círculos e rubros traços; dispersos sobre a cama, via-se
alguns luxuosos exemplares de livros sagrados, incluindo aí o Alcorão Sagrado
no original árabe e a tradução latina da Bíblia feita por São Jerônimo; e,
sobre uma velha estante de madeira, sobressaía uma grande ampulheta de puro
mogno, de cuja âmbula superior escorria uma areia fina e azul; tudo isso
reunidos entre si parecia destinados a uma mesma finalidade, e de tal modo que
deixava o ambiente imerso numa áurea do puro mistério, ao mesmo tempo em que
tornava a ocasião inevitavelmente propensa ao grande e esperado epílogo. Teria,
enfim, chegado a uma decisão?
Bruscamente
voltou a si como se houvesse decifrado um enigma sagrado. Em movimentos
rápidos, recolheu de sobre a cama as escrituras santas e reuniu numa só pasta
toda mixórdia de papéis. Em seguida, dirigiu-se ao armário e retirou dentre
seus preciosos souvenires, sua velha e elegante Remington Star, uma raridade
datada de 1969, a qual ganhara do pai pouco antes do seu falecimento. Posta
esta sobre a mesa, sentou-se, fechou os olhos e, num lampejo quase profético, começou
a escrever impetuosamente como se tivesse alcançado o sétimo céu:
ESTATUTO DOUTRINÁRIO DA NOVA IGREJA MUNDIAL
CAPÍTULO 1: O Inferno...
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