2/03/2019

Tentação (Conto), de Iba Mendes


TENTAÇÃO

Insistia muito para que ele não fosse. Argumentava ter tido pressentimentos ruins durante toda à noite. Dizia ainda que tivera sonhos horríveis, e que por isso ele deveria adiar a viagem, pelo menos por hora.

— Era como se fosse a própria voz de Deus pedindo para que você, meu amor, desistisse dessa tresloucada viagem. Não vá, por favor! — implorava ansiosa ao marido, o qual se mantinha irresoluto na sua decisão de partir ainda naquele mesmo dia.

— Que besteira é essa agora, querida? Pressentimentos? Ora, não estamos mais na Idade Média. Sossegue, é só uma viagem.

Então tentou consolá-la, acariciando-a no rosto com uma das mãos.

Almoçou ele foi arrumar as malas. Duas apenas. O suficiente para quinze dias fora de casa. Casmurra ela recusou-se a ajudá-lo.

— Não, não vou concorrer para essa loucura — resmungava andando de um lado para o outro e toda aflita.

— Pois então deixe que eu mesmo as arrume. Vá descansar um pouco... Vá!... Você precisa descansar... Que coisa!

Triste e desconsolada a mulher recolheu-se ao quarto, fechando violentamente a porta. Com os olhos arrasados de lágrimas, ali se ajoelhou ao pé da imagem de uma santa, suplicando-lhe com a alma toda contrita:

— Oh, minha Virgem Santa, livrai meu esposo de todo o mal. Protegei-o das astutas ciladas do maligno. Não permita, minha boa Senhora, não permita que ele seja induzido à tentação da carne...

Permaneceu por cerca de uma enclausurada naquele aposento, na esperança de que o marido, comovido com sua dor, abrisse mão voluntariamente de seu projeto. Entretanto, passado algum tempo, caiu em si que ele não cederia aos seus rogos e que sua atitude só fazia piorar todo aquele drama. Então numa quase resignação, abandonou a clausura para tentar convencê-lo, ainda que pela última vez, a desistir da viagem.

— Se você renunciar a este seu louco intento, prometo-lhe um filho ainda para os próximos meses. Está bom assim?

Aqui, é preciso esclarecer que, embora já estivessem casados há quatro anos, não tinham ainda filhos. A razão incidia sobre um suposto trauma que ela passou a manifestar logo após o falecimento da única tia durante um parto. Justificava ainda que não estava psicologicamente preparada para tamanha responsabilidade. E acrescentava que era preciso aguardar só mais um pouco. E sempre as mesmas desculpas. Ele, contudo, não aceitava tais argumentos, considerando-os como palavras evasivas e desprovidas de qualquer sentido lógico. Em consequência disso, muitas vezes ameaçou pedir divórcio, porém jamais seguiu adiante em tal resolução. Temia algum efeito negativo que lhe fizesse se sentir culpado ou que lhe causasse um póstumo desgosto; ademais, nutria grandes esperanças que de um momento para outro ela mudaria de ideia, afinal, pensava, fazer um filho não era assim tão complicado como fazer uma viagem à lua. Fosse como fosse, era melhor deixar as coisas como estavam. E assim resignou-se passivamente, dando por esquecido o assunto.

A proposta da mulher, agora, parecia-lhe tão absurda que por alguns instantes manteve-se em profundo silêncio, como se não estivesse acreditando no que ouvia daquela linda boca. Logo, porém, adiantou alguns passos e, após um gesto de desdém, respondeu com um sorriso sarcástico:

— Ora, ora, então acabou o trauma?

Neste instante as lágrimas brotaram dela copiosas e desesperadas, e ele deixou-se comover aproximando-se e apertando-a fortemente nos braços, ao mesmo tempo em que prometia encurtar a viagem para uma semana.

— Apenas uma semana, tudo bem assim?

Um abraço prolongado selou as pazes entre casal, e um beijo ardente fez apaziguar no coração dela a agitação e a dúvida.

— Parto amanhã, tudo bem?

Ela compreendeu que era amada por ele, e se enfronhou num silêncio resignado.

Chegado o momento da partida, era visível o contraste que se apresentava nos semblantes de ambos. Enquanto ela se mostrava triste e ansiosa, ele afetava uma alegria misturada de expectativas. Trocaram ainda algumas palavras, e despediram-se.

Quando, porém, ele ia adentrando no veículo, um grito de sufocado e choroso ecoar.

— Estarei rezando por você, meu amor. Deus há de livrá-lo da tentação!...

Esta última palavra chegou-lhe aos ouvidos confusa e sem qualquer nexo. Não queria ela dizer “perigo”? Lembrou-se então de uma passagem da Bíblia, a qual discorre sobre a fraqueza da carne e acerca da necessidade da vigilância para se vencer a tentação. “Bobagem”, concluiu mentalmente e acelerou o carro.

A semana passou como uma eternidade. Era visível o estado de ansiedade com que ela o esperava. Há dois dias que não conseguia falar-lhe ao telefone, o qual dava sempre ocupado. Pensamentos tenebrosos invadiam sua mente confusa. Nesta angústia, recorreu novamente à santa. Apelou ainda a outros santos. Rezou o padre-nosso: “E não nos deixeis cair em tentação”... E chorou o resto do dia...

Havia preparado um almoço todo especial para sua chegada, exatamente aquilo de que ele mais gostava. Até comprou um vinho importado e um disco de bolero argentino. Agora, porém, na sacada do apartamento, mirava o horizonte tomada de todos os desesperos. De repente ouviu tocar o telefone. Era o marido que avisava sobre um incômodo imprevisto que lhe forçava a adiar a viagem. Não explicou, todavia, de que se tratava o adiamento. Ficou apenas no “imprevisto” e no silêncio do telefone.

Essa última semana passou ainda mais desesperadora: comia mal, dormia mal, chegou ao extremo de aumentar a dose do tranquilizante.

No telefone, ele não falava agora em imprevistos. Dizia apenas que os negócios se avolumaram e que por isso deveria adiar mais uma vez o seu retorno. Contudo, prometia, jurando, que voltaria sem falta dentro de quinze dias.

E, de fato ele cumpriu o prometido. Quinze dias depois regressou. O apartamento estava vazio. Havia sujeira por toda a parte. Algumas luzes estavam acesas. Observou contas atrasadas sobre a mesa, notou a geladeira desligada e sentiu sair de dentro dela um insuportável cheiro de comida em putrefação; muitas roupas espalhadas pelo chão; a Bíblia aberta no Salmo 91; a imagem da santa quebrada; a cama desarrumada e com um dois travesseiros; no espelho o desenho de um coração flechado feito com batom vermelho.

Com as pernas trêmulas e o coração acelerado, ele anda de um lado para outro, gesticulando e murmurando palavras soltas, sem conseguir atinar com a causa de tão caótico cenário. Um turbilhão de dúvidas assalta-lhe a mente. Liga para o porteiro do prédio, que afirma ter visto a mulher, dias antes, saindo com duas malas, acompanhada por um homem alto, com paletó e barbudo.

—Não vi mais nada — garantiu o atento vigilante.

Trôpego, ele dirige-se à sacada do prédio. Lá de cima contempla o infinito ensolarado. Nenhuma nuvem sombreia o céu azul. Fixa em seguida o olhar para baixo. O chão está pálido como a morte. Caem-lhes os óculos... O céu escurece...

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