2/03/2019

Um sonho estranho (Conto), de Iba Mendes


UM SONHO ESTRANHO 

Teve um sonho estranho!...

Mas era apenas um sonho, e sonhos só devem fazer sentido para as gentes supersticiosas ou para os devotos de Freud, o que de modo algum era o seu caso.

Ora, não era a primeira vez que tivera um sonho assim tão excêntrico e cheio de mistério! Há uns três meses sonhara que carregava um enorme caramujo nas costas, e que rastejava sobre espinhos toda banhada em sangue. Noutra ocasião, sonhou que vivia uma personagem de um dos livros do escritor Franz Kafka, aquela espécie de barata humana da “Metamorfose”, que metaforicamente representa o ser humano em situação degradante perante o seu oposto. E mais recentemente sonhou que era Carmen Miranda e que estava sentada completamente nua sobre o Cristo Redentor, no Corcovado. Portanto, não havia qualquer razão para atribuir a este sonho um caráter singular. Era só mais um entre tantos outros que já tivera e que certamente ainda haveria de tê-los. Fugazes devaneios da mente. Fantasias e nada mais.

Pela manhã, arrumou-se e saiu para o trabalho como sempre fazia: sem nenhuma preocupação ou cuidados adicionais... Não se benzeu, não pediu proteção aos santos, nem leu o Salmo 91.

Entretanto, à medida que seguia para a parada do ônibus, sem que se desse conta, veio-lhe repentinamente à memória um caso contado por uma senhora num programa de televisão, em que ela dizia ter sonhado com a morte do marido num acidente de automóvel, e que o funesto acontecimento veio a confirmar-se logo no dia seguinte e em circunstâncias bem semelhantes às de seu própria quimera. Daí vieram outras recordações análogas. Lembrou-se de um filme antigo que assistira com o seu primeiro namorado, uma comédia dramática intitulada de “A Ciência dos Sonhos”, em que imaginação e realidade se mesclavam e se confundiam, e que agora parecia fazer-lhe algum sentido.

Como era de hábito, entrou numa banca de jornal para comprar sua revista semanal, e não resistiu ao sedutor colorido de um opúsculo que tinha por título “O maravilhoso livro dos sonhos”. Comprou-o, esquecendo-se de levar o seu tradicional periódico.

Mal entrou no coletivo e foi direto ao misterioso livrinho. Abriu-o procurando no índice o vocábulo pertinente ao que sonhara à noite. Nem havia lido uma página e estremeceu. Era  como se novamente tivesse acordando daquele terrível pesadelo. Trêmula e pálida, rasgou-o em pedaços, procurando em vão olvidar de sua mente o que acabara de ler.

Na empresa, não conseguia pensar em mais nada. O sonho parecia incendiar sua mente como sarça ardente, e de tal modo que se sentia como estivesse ficando louca. Era como se vivenciasse ali seu terrível desvario noturno. Levantando-se de súbito saiu desesperada e sem avisar a ninguém. O que queria mesmo era chegar logo em casa, deitar-se e esperar findar aquele dia fatídico.

Chegou esbaforida e assustada. Mal entrou atirou-se sobre o sofá, onde adormeceu com a fronte dolorida e tomada por uma ideia fixa que não conseguia dispersar da mente.

Antes da meia-noite acordou aos gritos e suando em bica. Sentia-se opressa, como se estivesse na iminência de ser atacada por um malfeitor oculto. Correu depressa às portas e janelas, para garantir que realmente estavam fechadas. Repetiu isso várias vezes em grande desespero.

Acordados pela persistente balbúrdia, alguns vizinhos dirigiram-se até à casa e chamaram-na pelo seu nome. Ela, porém, não respondia. Bateram na porta várias vezes, mas em vão. A mulher não abria. Ouviam-se apenas sons estridentes e confusos, como se fossem os berros de um animal acuado diante de seu violento predador.

O dia amanheceu com uma viatura da polícia na calçada. Dentro de casa havia um silêncio sepulcral. Ouviu-se a aproximação de uma sirena: era uma ambulância. Desceram dois homens vestidos de branco, os quais, juntamente com um policial arrombaram a porta. Entraram... Subiram às escadas... Empurram a porta do quarto... Lá estava ela deitada sobre a cama, com os olhos esbugalhados, a cabeça raspada e toda nua, completamente nua, do mesmo modo como aparecera no seu estranho sonho...

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