3/06/2019

Mário de Andrade: artista e amigo



Mário de Andrade: artista e amigo

Não é fácil escrever-se sobre um homem como Mário de Andrade, muitos dias depois de sua morte. Não porque falte o que dizer sobre esse homem extraordinário, esse artista luminoso, esse amante enternecido de todas as coisas da vida, mas exatamente porque todos sabiam o que ele era e tudo quanto ele era já ficou dito. Sua vida, que foi um exemplo de luta pela recuperação e estabilização de todos os valores humanos — estéticos e emocionais — , despertos ou desprezados, e que foi, ao mesmo tempo, uma perpétua interrogação, uma perpétua pesquisa, incontida procura, representou, durante de um quarto de século, o espetáculo edificante de existência construtiva, a ser mostrado à sua geração e à geração que teve a felicidade e o orgulho de conhecê-lo.

Numa hora em que tanta coisa se perde, em que tantas coisas destruídas precisam ser restauradas, a morte de Mário de Andrade aparece-nos como uma espécie de sabotagem do destino aos esforços desesperados de todos nós. Porque ele não foi apenas o escritor, o pensador, o artista, de imaculada pureza intelectual: foi o mestre, o guia, o amigo que esclarecia, acolhia e plantava — com a magnífica generosidade do apóstolo e a serena magnificência do semeador. E foi, sobretudo, um homem que sabia coisas — até mesmo essa coisa dificílima que é a arte de ser amigo.

Para uma ideia às futuras gerações do que Mário de Andrade representou como cultura e inteligência, falarão, melhor do que qualquer louvação crítica, suas obras que abrangem quase todas as formas da atividade intelectual e que o colocam entre os que contribuíram, em vida, para a perpetuidade do espírito sobre a Terra. É preciso, porém, que essas mesmas gerações não ignorem a expressão afetiva de sua passagem, a significação fraterna de sua presença — e disso diria tudo uma antologia em que ficasse reunido todo o material necrológico com que o país inteiro chora a sua partida.

Nessas crônicas de jornal, curtas ou longas e todas elas sinceras, ao lado do escritor Mário de Andrade, avulta a figura do homem Mário de Andrade — acolhedor, compreensivo e fraterno. E é esse homem que precisa ficar nítido, para os outros homens que hão de vir.

Creio que todos nós havíamos recebido um dia antes, dois dias antes, três dias antes de sua morte (e houve até quem recebesse um dia depois) uma carta amiga desse homem prodigiosamente epistolar e afetivo. Sem o saber, despedia-se de todos nós e a todos deixava clareado um caminho, no estímulo de um encorajamento ou no esclarecimento de uma restrição.

Não mentia aos jovens, porque não meneia a si próprio — e ele era a perpétua juventude do espírito, uma força ativa da vida em luta contra a morte da alma. Não mentia à crença dos que criam nele — porque foi ele próprio uma expressão viva de fé, dentro do conformismo e da mole indiferença de uma parcela grande de seus contemporâneos. Não mentia à vida, à verdade e à beleza invencíveis da vida, porque foi, acima de tudo, o paladino da beleza e da verdade — seu mestre e seu discípulo, seu animador e seu soldado.

Não passou. Ficou nas letras e nas artes de seu povo, ficou no coração de seus amigos — vivo, generosamente vivo. Recebeu para partilhar; sempre esteve a serviço de "um resultado humano". E na hora da prestação de contas, na hora final de sua vida transitória, após essa sucessão de vidas que o levará à vida definitiva, cuja primeira etapa tão bem soube marcar aqui e a que todos atingiremos, mais tarde ou mais cedo, poderá dizer na serena dignidade de sua grande conquista: "Minha vida terrena não foi uma inutilidade. Não foi um traço apagado no conjunto. Teve sentido".

Sim. Sua vida teve sentido. Sentido humano e sentido estético. E é essa a sua maior glória.

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MARIA JACINTHA
Revista Walkyrias, junho de 1945.
Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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